Fevereiro
de 1984. A Philco resolveu compensar a segunda-feira gorda de carnaval dos
mensalistas nos fazendo trabalhar em regime de hora extra no sábado magro.
Ninguém protestou. Por volta das 18h do referido sábado, depois que deixei a
fábrica, resolvi passar no Top Bar para beber umas cervejas antes de ir pra
casa, lá em Adrianópolis. A cachorrada toda estava reunida no boteco: Lúcio
Preto, Nei Parada Dura, Frank Cavalcante, Luiz Lobão, Chico Porrada, Áureo
Petita, Rubens Bentes, Nego Walter, Mestre Louro, Chico Costa, Arlindo Jorge,
Jones Cunha, etc. Me aboletei na mesa do Ivan Chibata e ficamos conversando.
Estranhei o fato de ele estar de smoking branco, mas não disse nada. Devia ser
alguma moda entre os chefões do “jogo do bicho” da cidade.
Por
volta das 21h, quando me preparava pra ir embora, Ivan Chibata jogou a isca:
–
Poeta, estou com uma mesa para o carnaval no Clube da Caixa, que vai começar
daqui a pouco. Vou levar duas potrancas de parar o trânsito, uma loura e outra
morena. Estou precisando de um parceiro. Você não topa ir comigo nessa parada?
Não se preocupe com as despesas porque será tudo por minha conta...
Apesar
de já estar com a moringa cheia de álcool, tentei uma saída honrosa:
–
Bicho, eu agradeço o convite, mas fica pra outra oportunidade. Passei o dia
inteiro trabalhando, estou morto de cansado. Vou sair daqui direto pra casa
porque estou querendo mesmo é dormir...
Ele
meteu a mão no bolso do smoking, retirou uma minúscula pílula vermelha de um
pequeno estojo plástico e me passou:
–
Isso aí é um novo complexo de vitaminas e sais minerais, importado dos States.
Acaba na hora com qualquer cansaço, estresse ou mal estar. Experimenta...
Engoli
a pílula com um gole de cerveja e, alguns minutos depois, o cansaço realmente
havia passado. Desconfio que era anfetamina.
Ivan
Chibata sugeriu que eu deixasse meu Corcel II estacionado em frente da casa do
Simas, ali perto, e que fôssemos para o baile de carnaval no seu jipe Gurgel
Carajás (“igualzinho ao do coronel Khadaffi”, ele gostava de repetir,
orgulhoso). Foi o que fiz.
Algumas
horas depois, duas garotas fantasiadas de odaliscas desceram de um táxi em
frente ao Top Bar e se sentaram conosco. Elas eram realmente deslumbrantes. A
loura era uma espécie de Carla Perez no auge de sua forma física. O corpo
sinuoso da morena lembrava muito o da Suzana Alves (aka “Tiazinha”). Nem
preciso dizer que os machos do pedaço ficaram babando no colarinho.
Depois
de detonarmos mais meia dúzia de cervejas, embarcamos as duas meninas no jipe
do Khadaffi e nos mandamos para o Clube da Caixa. Em estado de graça, Ivan
Chibata começou a distribuir gorjetas cabulosas a começar pelos porteiros. Para
sermos tratados como verdadeiros marajás dentro do clube foi conta de
multiplicar. Um garçom e três seguranças ficaram permanentemente à nossa
disposição. E haja baldes de champanhe, doses generosas de uísque, caipifrutas
de todos os tipos e canapés variados sendo despejados a cada 15 minutos em
nossa mesa. Quando as duas odaliscas começaram a rebolar ao lado da mesa,
acompanhando as marchinhas de carnaval, me senti um autêntico califa de Bagdá.
Só
que algo de muito estranho estava acontecendo. Eu já havia detonado quase uma
garrafa de uísque e dezenas de caipifrutas, mas permanecia completamente
lúcido. Aquela anfetamina tinha parte com o cão. Por volta da 3h da madrugada,
dei um toque para o meu parceiro:
–
Vamos rebocar as meninas para um motel e seja o que Deus quiser...
Ivan
Chibata pediu a conta e, enquanto aguardava o retorno do garçom com a dolorosa,
as duas odaliscas foram ao banheiro. Ele me segredou:
–
Não vamos gastar dinheiro com motel não, poeta. Nós vamos pra casa da loura. A
casa tem dois quartos com ar-condicionado. Além disso, sou eu que banco o
aluguel e a despesa das duas. Você fica com a morena no primeiro quarto, depois
da sala de visitas, que eu vou pro segundo, lá perto da sala de jantar. Quando
o dia estiver amanhecendo, a gente se manda...
Não
discuti. As odaliscas voltaram pra mesa exatamente na hora em que Ivan Chibata
havia retirado uma bolada de dinheiro do bolso (em valores de hoje, talvez uns
R$ 15 mil) e começado a fazer o pagamento das despesas, em torno de R$ 3 mil.
Sim, os sujeitos do bar haviam metido a mão. Ivan Chibata nem ligou. Vai ver
que naquele dia tinha dado avestruz na cabeça e a banca dele havia lavado a
égua. Na sequência, ele colocou o resto da grana em um dos bolsos internos do
smoking, pegou delicadamente a loura pela mão, eu abracei a morena pela cintura
e saímos do clube, com os seguranças indo na frente abrindo caminho (a festa de
carnaval estava colocando gente pelo ladrão). Cada um deles recebeu R$ 500. O
Ivan Chibata estava mesmo em estado de graça.
Chegando
à casa da loura, ali na Rua Borba, nas proximidades do Terminal da
Cachoeirinha, o Ivan Chibata foi até a cozinha e voltou com duas latinhas de
Heineken. Fizemos um brinde rápido. Ele foi para um dos quartos com a loura e
eu entrei em outro com a morena. Eu já estava apenas de cueca e a morena só de
calcinha, no começo das preliminares, quando escutei um barulho de espelho
sendo quebrado e alguns gritos de pânico vindos dos fundos da residência.
De
repente, o Ivan Chibata dá duas batidas na porta do nosso quarto, que quase jogaram
a porta no chão, e dá um berro aterrorizante do corredor:
–
Vamos embora, poeta, que aquela vagabunda tentou me roubar. Eu estou indo ali
no carro pegar minha arma pra acabar com a folga dessas duas muquiranas...
Vesti
minha calça rapidamente, apanhei o tênis e a camisa com uma das mãos e fui ver
que merda era aquela. A morena saiu correndo só de calcinha para o quarto da
loura, que chorava copiosamente.
Ivan
Chibata estava transtornado, procurando freneticamente sua arma dentro do jipe
do Khadaffi. Enquanto eu acabava de me vestir na frente da casa da loura,
questionei:
–
Porra, bicho, que onda foi essa? Eu já estava quase faturando a menina...
–
Rapaz, eu fui pro banheiro urinar e quando saí vi a loura com o meu smoking na
mão. Ela só podia estar querendo me roubar. Vou matar as duas muquiranas!
Entrei
no jipe do Khadaffi e me sentei no banco do carona. Ivan Chibata, depois de
mais alguns minutos procurando inutilmente pela arma, deu partida no veículo e
saiu dirigindo em direção à Praça 14, até encontramos um bar aberto.
Aparentemente, seu ímpeto homicida estava de novo sob controle. Começamos a
beber e a conversar sobre a presepada. Eu não escondia o meu desapontamento: a
Tiazinha havia escapado entre os meus dedos por causa de uma simples paranoia
do meu parceiro. Aquilo era o fim do mundo.
Por
volta das 5h da manhã, o dono do bar avisou que estava fechando. Ivan Chibata
pagou a despesa e voltamos para a Cachoeirinha. Depois de muito rodar pelas
ruas desertas, resolvemos nos instalar em uma mesa no Bar da Dolores, que agora
estava instalado no cruzamento da Rua Tefé com a Castelo Branco, e só fechava
as portas com mandado judicial.
Eu
continuava puto. “Foda adiada é foda perdida”, já dizia Nei Parada Dura,
filosofando sobre a impossibilidade real de se recuperar aquele momento
perdido. Ivan Chibata não estava nem aí. Era difícil de entender como alguém
cheio da grana e com um carango nos trinques preferia amanhecer o dia num
boteco sórdido em vez de na cama de uma vadia.
Continuamos
enchendo a cara e conversando sobre futilidades, incluindo antigas partidas de
futebol da seleção brasileira. Meus pensamentos ainda focados na Tiazinha. Por
volta das 8h da manhã de domingo, com o sol já a pino, ele meteu a mão no
smoking, tirou duas cápsulas de “vitamina” e me ofereceu uma. Recusei. Ele
tomou as duas. Aí, como se estivesse lendo meus pensamentos, argumentou:
–
Meu poeta, eu sei que você ficou fissurado por aquela morena, mas, pô, a
parceira dela tentou me roubar... São duas muquiranas... Mas daqui a pouco, eu
vou te levar na casa da Mercinha, lá na Vila Felicidade, ali perto da Ceasa,
pra te apresentar umas comadres... Você vai ficar amarradão na Nara Bebezinha,
uma mulata de bunda de tanajura que é passista da Sem Compromisso...
–
Bom, se a gente se apressar talvez ainda dê tempo de pegar o motel Beira-rio
com a promoção de sábado... – ironizei.
–
Calma, poeta, você é muito apressado! – explicou ele, enquanto pedia mais uma
cerveja pra mesa. – Nós vamos pegar a Mercinha e a Nara Bebezinha em casa e aí
vamos comer uma caldeirada de tambaqui no Bar da Loura, ali no Tarumã, pra
recuperar as energias. De lá, a gente vai tomar um banho na Praia Dourada e
beber uísque com água de coco, acompanhado de isca de camarão sete-barbas
cozinhado no vapor. Por volta das quatro da tarde, a gente vai curtir o show do
Reginaldo Rossi no balneário Meu Xodó...
Comecei
a achar que o bicheiro havia enlouquecido. Meu único interesse imediato era
rechear um pastel de pelo, mas o cabra queria continuar farreando. Aquilo era
programa de índio. Me levantei da mesa, lhe dei um aperto de mão e um abraço,
agradeci pela noitada magnífica e fui embora, a pé, até a casa do Simas.
Chegando lá, encharcado de suor, entrei no carro e me mandei.
Na
segunda-feira à noite, relatando o ocorrido para a galera do Top Bar, Ivan
Chibata não perdoou:
–
Além de me abandonar em pleno tiroteio, o poeta é um incompetente. No lugar de
chamar um táxi pra eu pagar a corrida até a casa do Simas, ele preferiu subir a
pé essa ladeira da Tefé, debaixo de um sol senegalês. É um incompetente! O
poeta é um incompetente!
Uns
dois anos depois, eu encontrei casualmente a odalisca loura na quadra do GRES
Andanças de Ciganos e relembrei o quiproquó. Ela me explicou o ocorrido.
–
Sempre que o Ivan Chibata mistura “bolinha” com birita, ele cola o platinado.
Naquela noite, ele estava todo amoroso e gentil, dizendo que ia casar comigo,
essas coisas. Aí tirou o smoking, jogou no chão e entrou no banheiro para
urinar. Eu apanhei o smoking pra colocar no encosto de uma cadeira. Ele saiu do
banheiro, me viu colocando o smoking na cadeira e ficou doido! O sacana atirou
com violência a lata de cerveja no espelho da penteadeira, me deu uma tapa no
pé do ouvido e começou a me chamar de ladra... Depois, disse que ia pegar o
revólver no carro pra me matar... Coisa de louco, de doido varrido!... Ainda
bem que você levou ele embora...
Como
eu sempre havia suspeitado, deixei de finalizar a Tiazinha por uma simples
paranoia do meu parceiro. E como foda adiada é foda perdida, nunca mais tive
uma segunda chance. Rei das vitaminas importadas, o inesquecível Ivan Chibata
faleceu no início dos anos 90, vítima de cirrose hepática. Era um figuraço!
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