Por Bolívar Torres
O editor e pesquisador Leonardo d’Ávila chegou à obra de
Gramiro de Matos graças a um esforço coletivo da Universidade Federal de Santa
Catarina para reler autores que poderiam ser identificados como
pós-tropicalistas. O autor baiano, que participou tardiamente do movimento
junto com Waly Salomão, Torquato Neto e outros, andava completamente esquecido.
Nos anos 1970, ele lançou livros elogiados pela crítica,
como “Urubu-Rei” e “Os morcegos estão comendo mamãos maduros”, que desafiavam a
leitura por seu experimentalismo intransigente. Em seguida, foi estudar em
Portugal e saiu do radar. O livro do autor que d’Ávila reedita agora, pela Cultura
e Barbárie, é uma obra obscura e rara do autor, “A conspiração dos Búzios”.
Publicada originalmente em 1978, só havia ganho até então uma versão artesanal.
Gramiro, inclusive, andava tão esquecido que nem mesmo seus
amigos próximos lembravam dele. O editor só conseguiu contatá-lo após uma busca
online – encontrou-o graças a um comentário que havia feito em uma reportagem
na internet. A partir daí, veio a ideia de relançar o livro, que acaba de
chegar às livrarias. Em entrevista ao jornal O Globo, Leonardo d’Ávila explica
a importância de recuperar a obra de Gramiro de Matos, quase 40 anos após seu
lançamento.
Depois da edição
original publicada de forma artesanal, o livro nunca mais foi reeditado? Qual
foi a repercussão do livro na época?
O livro foi publicado em 1978 apenas em uma edição artesanal
e pouquíssimo conhecida, a qual contou com uma capa magistral elaborada por
Mário Cravo Neto. Contudo, a raridade da edição não foi a única responsável
pela pouquíssima repercussão à época, haja vista que seus outros livros
publicados também não tiveram grandes tiragens e, mesmo assim, conseguiram
alguma visibilidade no cenário cultural brasileiro, como “Urubu-Rei”, de 1972.
Possivelmente, mais do que pela raridade do livro, a pouca difusão pode ter
ocorrido pelo fato do autor ter se afastado do Brasil e de seus meios
artísticos durante seu doutorado entre Portugal e a África de língua portuguesa
(1974-1978). No mais, à época da edição artesanal, o regime militar ainda
estava em plena vigência e, em momentos como aquele, a recepção de um livro,
ainda que não estivesse necessariamente impossibilitada, tornava-se muito
imprevisível. De qualquer modo, é interessante destacar como alguns elementos
do livro, a exemplo da descolonização e da menção de ideias de negritude, tenham
se dado em concomitância com os Cadernos Negros do grupo Quilombhoje, que
passou a reivindicar uma literatura afro-brasileira. Ainda que haja infinitas
diferenças entre a obra de Gramiro e a desses autores afro-brasileiros, não se
pode negar que são diferentes manifestações de uma mesma atmosfera cultural.
Portanto, mesmo que não tenha sido conhecido pelo leitor brasileiro nos anos
70, não seria possível dizer que "A Conspiração dos Búzios" foi um
trabalho isolado ou fora de contexto.
“Romance histórico” é
um termo correto para definir de “A conspiração dos búzios”?
A princípio, não seria possível reconhecê-lo enquanto tal.
Isso porque o autor não trata de personagens médios dentro de uma dinâmica
social que termina por tornar protagonista. Como retrata com minuciosidade os
heróis da Revolução dos Búzios (também conhecida como Revolução dos Alfaiates,
Conjuração Baiana, etc), haveria até certa tonalidade épica, a qual se desfaz
completamente quando surgem documentos oficiais do século XVIII ao lado de jogos
de adivinhações. Além disso, o próprio termo romance já seria impróprio quando
o livro apresenta divisões como um roteiro cinematográfico. Ainda assim, o
termo romance histórico é importante enquanto um fundamento paródico para essa
prosa fragmentária, própria de um contexto de contracultura. Há de se reforçar,
assim, o esforço jocoso para jogar com esse gênero literário. Entretanto, ainda
que haja paródia e certo formalismo na linguagem, a maior força da literatura
de Gramiro de Matos se dá na expressividade da fragmentação na língua, na
descrição dolorosa de violências que nunca se ausentaram da história do Brasil
e no choque de padrões estéticos mediante experimentação. Todos esses
desdobramentos na língua, nas narrativas históricas e nos gêneros literários
possuem uma inegável historicidade.
Antes de ir para a
África, qual era o lugar de Gramiro no movimento tropicalista?
Gramiro participou do movimento, mas foi um dos mais jovens
do grupo no Rio de Janeiro, sendo um autor que começou a publicar quando o
tropicalismo já estava em um momento de crise. Nesse aspecto, seu segundo
livro, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros, de 1973, já manifesta uma
linguagem mais marcada pela violência do que pela “curtição”. “Me segura q’eu
vou dar um troço”, de Wally, em grande parte, também possui essa
característica, a qual, aproximada a um trabalho igualmente complexo com a
língua, contribuiu para uma aproximação de ambos os autores pela crítica. O
trabalho mais significativo nesse sentido foi o de Silviano Santiago, que, em
Uma literatura nos trópicos, dedicou um capítulo aos “abutres” Wally e
Gramirão, tratando-os com igualdade de importância ou de valor. Ainda assim,
Gramiro foi considerado sempre o autor mais impenetrável por boa parte dos próprios
poetas marginais. Inclusive em uma rápida conversa que tive com Chacal no ano
passado, o poeta afirmou ter muita dificuldade para compreender Gramiro e que
não se identificava com tamanho experimentalismo. Por isso, Gramirão, como era
conhecido, teve um lugar de destaque no tropicalismo e na literatura marginal,
ainda que esse lugar tenha sido o de “autor incompreensível”, o que também pode
ter contribuído para a sua menor projeção, não apenas em relação ao público ou
à crítica, mas entre seus próprios companheiros. Possivelmente "A
Conspiração dos Búzios", escrito em uma prosa um pouco mais convencional,
poderá relativizar esse preconceito.
Gramiro de Matos com
uma amiga e Waly Salomão (à esquerda), nas Dunas da Gal, em Ipanema
A questão da língua
como forma de resistência, e a relação entre colonizadores e colonizados
através da língua, são importantes na obra de Gramiro, em especial na “Conspiração
dos Búzios”. Outros escritores de língua portuguesa foram tão longe quanto ele
nesse aspecto?
Em relação à criação artística, pode-se dizer que há outros
que se destacam tanto quanto ele. Isso porque as ex-colônias portuguesas foram
verdadeiras “Mecas” para a contracultura brasileira tanto quanto a Índia ou o
Marrocos o foram para a contracultura de outros países. Um dos maiores autores
a produzir na África uma arte dionisíaca – ou melhor, de Exu – foi José
Agrippino de Paula, cujas filmagens das danças de Maria Esther Stockler, se não
são representações do processo de descolonização, certamente são vestígios da
importância da contracultura enquanto um dispositivo de aproximação entre
Brasil e África nos anos 60 e 70. Já em relação a estudos acadêmicos, há, sim,
uma importância única da parte de Gramiro de Matos. Sua tese doutoral,
financiada pela Fundação Caloustre Gulbenkian, investigou os impactos da poesia
brasileira modernista dentro das literaturas de países africanos de língua
portuguesa e é razoavelmente conhecida por pesquisadores desse ramo de estudo.
Certamente os conceitos e métodos da literatura comparada mudaram bastante
desde aquela época e existem trabalhos mais detalhados sobre o mesmo tema.
Ainda assim, o trabalho de Gramiro é singular e insuperável no fato de haver
sido realizado em contato direto com poetas africanos em meio às próprias lutas
de descolonização.
Pretende editar
outros livros de Gramiro fora de catálogo?
“A Conspiração dos Búzios” era uma lacuna da obra de Gramiro
que necessitava passar por um processo de editoração e divulgação para ser
finalmente conhecida pelo leitor brasileiro. Há grande interesse no
relançamento de “Urubu-Rei” e de “Os morcegos estão comendo mamãos maduros”.
Tais edições certamente se justificariam pela própria possibilidade da inclusão
de textos que não fizeram parte daquelas edições, mas que compunham a coletânea
original. Ainda assim, as reedições teriam de respeitar o fato de Gramiro ser
um autor vivo, não sendo cabível enquadrar sua obra enquanto material de
arquivo ou edição crítica. No mais, o interesse renovado pelo sucesso de vendas
de Leminski ou Ana C., e seus laços com Gramiro, tanto ajudam quanto
comprometem a promoção de um escritor que ainda pode publicar novos textos.
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