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sábado, outubro 24, 2015

Thiago de Mello: poesia a serviço da vida (4)


Nos anos seguintes, Thiago de Mello continua embrenhado na floresta e trabalhando febrilmente como um verdadeiro mouro. Nas palestras que realiza em escolas, associações de moradores, sindicatos e faculdades, ele enfatiza a necessidade de as pessoas exigirem cada vez mais dos políticos que seja colocado na ordem do dia o desenvolvimento sustentável, um desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades.

Ele implica possibilitar às pessoas, agora e no futuro, atingir um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais. Em resumo, é o desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro.

“Um desenvolvimento sustentável requer planejamento e o reconhecimento de que os recursos são finitos”, explicava Thiago de Mello. “Ele não deve ser confundido com crescimento econômico, pois este, em princípio, depende do consumo crescente de energia e recursos naturais. O desenvolvimento nestas bases é insustentável, pois leva ao esgotamento dos recursos naturais dos quais a humanidade depende”.

A partir de 1985, com a abertura política enfim conquistada pelo nosso povo e o advento da chamada Nova República, o Brasil entrou numa quadra saudável de sua história onde se vêem garantidos (embora ainda não respeitados em plenitude, como todos queremos) os direitos humanos fundamentais.

Liberto por isso das auto-impostas obrigações de partisan da democracia, o poeta ensarilhou momentaneamente as armas e pode voltar ao trato de sua lira, da qual emanam os belos acordes de “Num Campo de Margaridas” (1986). O livro é um canto de amor ao amor, uma louvação de paz e da fraternidade calorosa que deve existir entre os homens, para que eles mereçam um mundo melhor.

Os livros seguintes publicados por Thiago de Mello são de prosa: “Arte e Ciência de Empinar Papagaio” (1986), em que mostra as anotações que fez sobre a brincadeira ao longo de cinqüenta anos de apaixonada aprendizagem, “Amazonas, Pátria das Águas” (1987), em que demonstra a perfeita integração que havia – e corre o risco de desaparecer – entre o sistema fluvial do Amazonas e todas as formas de vida regional e o clima de todo o continente americano, “Notícia da Visitação que fiz no Verão de 1953 ao Rio Amazonas e seus barrancos”, (1989), em que recapitula uma pitoresca viagem feita de barco com seu amigo de infância Jari Botelho, “Manaus, Amor e Memória” (1989), um vigoroso painel dissertativo sobre pessoas, fatos e costumes da capital amazonense no início do século passado, “Amazônia, a Menina dos Olhos do Mundo” (1992), um brado de alerta e uma convocação irrecusável de que temos, todos, de arregaçar as mangas e engrossar as fileiras da resistência à sanha predatória dos novos bárbaros que querem transformar a Amazônia em um novo deserto, “O Povo Sabe o Que Diz” (1993), saborosa releitura dos ditos populares da região amazônica, e “Borges na Luz de Borges” (1993), que reúne duas entrevistas feitas por Thiago de Mello com Jorge Luis Borges, pouco antes de ele falecer. O trabalho havia sido encomendado pela TV Globo e visava jogar um pouco mais de luz no misterioso universo literário do escritor argentino.

Em 1993, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério de Relações Exteriores, Thiago de Mello foi convidado para reassumir o posto de adido cultural do Brasil no Chile. Era uma espécie de acerto de contas, já que o poeta ocupava aquele cargo quando eclodiu o golpe militar de 64.

“Thiago era adorado pelos meios culturais e políticos de Santiago. A ele nunca faltou coragem para receber de braços abertos os exilados brasileiros. Sua condição de adido cultural da embaixada e seu sentimento fraterno e democrático serviram de apoio a muitos de nós. Thiago morava na casa que era do Neruda (hoje é museu), o que já mostra o quanto ele era bem relacionado por lá. Foi em sua casa que conheci Salvador Allende”, recorda o ex-presidente FHC.


Thiago, que apesar dos quase 90 anos ainda continua trabalhando doze horas por dia para sobreviver com dignidade e decência, viu logo que seria impossível manter o Porantim do Bom Socorro enquanto estivesse morando em Santiago do Chile.

Ele, então, resolveu vender os imóveis, “no estilo porteira fechada, com tudo dentro”, para o Governo do Amazonas, cobrando um preço simbólico (menos de 10% do valor real das obras de arte ali coletadas). O secretário estadual de Fazenda da época, Sérgio Cardoso, com o aval do governador Gilberto Mestrinho, comandou as negociações.

Entre as exigências do poeta, uma declaração firmada em cartório de que o Governo do Estado se comprometia em manter “uma cuidadosa conservação do rico patrimônio ali representado, com destinação cultural a serviço do povo da região”.

A ideia do governador Gilberto Mestrinho era fazer do Porantim do Bom Socorro um campus avançado da Universidade de Tecnologia da Amazônia (Utam). Um amigo de Thiago de Mello, Bartolomeu Maranhão, ficou encarregado de vigiar o imóvel enquanto o governo não ocupasse definitivamente, de fato e de direito, a propriedade.

Três meses depois de Thiago ter partido para o Chile, e sem que recebesse um tostão pelos serviços de vigia, Bartolomeu foi dispensado da função por ordem expressa da Secretaria Estadual de Fazenda. O imóvel ficou abandonado.

Em 1994, uma galera de menores infratores, sob a desculpa esfarrapada de que usariam o local provisoriamente como curral de boi-bumbá, resolveu fazer do Porantim seu quartel-general. Foi como colocar uma milícia talibã, armada até os dentes, no templo de Angkor, no Camboja.

Em questões de dias, o trabalho primoroso de Suryavarman II, aliás, de Thiago de Mello, estava completamente destruído. Os museus e bibliotecas foram saqueados. A residência foi transformada em bordel e em ponto de encontro de viciados. Livros de arte foram queimados em substituição ao carvão comum. Mais de cem fitas cassetes, com cantos indígenas, foram utilizadas como “bole-bole”.

Duas esculturas de mestre Vitalino, que José Lins do Rego doou a Thiago, quando o escritor paraibano já estava em seu leito de morte, foram destruídas a marteladas. Um vitral em forma de rosácea com mais de 2 metros de diâmetro e 200 anos de história, que Thiago havia adquirido em Paris, foi transformado em vidro moído para cerol de papagaio.

Dezenas de lâminas policromáticas de Barbosa Rodrigues ganharam a destinação de papel higiênico. Textos manuscritos de Pablo Neruda viraram rabiola de carrapetas. Folhas de edições antigas foram encontradas nas bordas de fossas. Muitas pessoas viajavam de Manaus para Barreirinha exclusivamente para participar do botim. O Porantim do Bom Socorro virou uma terra de ninguém.

Em 1996, quando retornou a Barreirinha, Thiago de Mello ficou tão traumatizado com o que viu que nunca mais colocou os pés no lugar. Afinal de contas, ali estava depositada, praticamente, toda uma vida dedicada a tornar o mundo mais humano e o resultado tinha sido uma blitz arrasadora digna de animais irracionais.

“Na volta do Chile, sentei na calçada e chorei lágrimas de esguicho, como dizia Nelson Rodrigues. Como fizeram isso? Nunca mais piso aqui”, jurou Thiago. O mais revoltante disso tudo é que ninguém foi responsabilizado pelo desastre acontecido. Pior para os amazonenses, que se viram privados de desfrutar de um grandioso patrimônio artístico pacientemente coletado pelo poeta por mais de cinco décadas.

Nos anos 90, Lúcio Costa projetou uma nova casa, à beira do Paraná do Ramos, distante cerca de cinco quarteirões do porto fluvial de Barreirinha, e abusou da generosidade: uma cama pensada especialmente para o quarto do poeta harmonizava-se às medidas de uma janela, para que Thiago, deitado, pudesse ver o rio de sua aldeia. Foi nessa nova casa que ele passou a residir enquanto o Porantim do Bom Socorro, já totalmente desfigurado, continuava entregue às traças.


Eu, Dinari Guimarães e Thiago na casa do Paraná de Ramos

O primeiro trabalho que emerge dessa nova fase é o livro “De Uma Vez por Todas” (Bertrand Brasil, 1996), de verso e prosa, que conquista o Prêmio Jabuti no ano seguinte. “Este meu novo livro, que reúne verso e prosa, não é melhor nem pior do que os outros livros que escrevi”, avisou. “É, no entanto, um livro importante para os leitores que acompanham o meu trabalho há quase meio século, porque faço uma espécie de resumo da minha vida e um balanço do que fiz, vivi e escrevi”.

O livro celebrava, segundo Thiago, a coerência de não haver se afastado dos seus princípios nem como pessoa nem como escritor.

“De uma vez por todas” é dividido em seis partes. A poesia ocupa 80% das páginas e traz material fotográfico das várias fases da vida do poeta. Nele, Thiago de Mello fala também sobre as suas impressões a respeito do “outro lado do rio” (metáfora criada por ele para referir-se à morte). 


A apresentação do livro ficou a cargo do romancista, cronista e jornalista Carlos Heitor Cony:

Todas de uma vez. O novo livro de Thiago de Mello é uma suma não apenas de sua obra mas de sua vida. Os poemas da maturidade conservam a carga emotiva e humana de suas obras anteriores. Contudo, ele não se limita a um núcleo, quando, por exemplo, marcou o nosso tempo com poemas que fizeram a cabeça e o coração de duas gerações. Para citar um deles: seu antológico Estatutos do Homem, hoje traduzido em várias línguas, momento da resistência do povo brasileiro - e de qualquer outro povo – contra a opressão.

Em De uma vez por todas, Thiago de Mello cumpre com dignidade e beleza a sua missão. Isolou-se no chão onde nasceu, um chão encharcado de rios e florestas, onde pode captar a luxúria de um peixe-fêmea diante de um peixe-macho, ou – como acontece num dos melhores poemas de nossa língua - descreve o ato de amor entre duas aranhas.

Penetrando no átrio sombrio dos 70 anos, ele revisita o passado, tem as retinas fatigadas de tudo o que viu nas sete portas do mundo. Apesar disso, como ser humano que herdou o caudal dos grandes rios que regaram seu berço - ele continua o poeta da manhã e do canto.

De uma vez por todas, Thiago proclama seu amor à natureza e à liberdade. A nuvem se esgarça ao sabor do vento, perde sua claridade, transforma-se em tempestade. Já a palavra nuvem permanece intacta no texto: é eterna. Poucas vezes, e em grau tão verdadeiro, a literatura encontrou definição.

Destaque especial para a sucessão de seus amigos, daqueles que admirou e foi por eles admirado. O soneto de Pablo Neruda dedicado a Thiago é definitivo. Vago mago é praticamente intraduzível. E mesmo traduzido, necessita de um conhecimento prévio de Neruda e do próprio Thiago.

Misturando prosa e poesia, crônica e até anúncio imobiliário, o amazonense de Barreirinha, o cidadão do mundo, o personagem de nossa época, o poeta de A Canção do Amor Armado penetra na memória, obtendo a síntese do urbano e do telúrico, do lírico e do social. Comprometido com a sua terra e com a sua gente, de uma vez por todas Thiago de Mello assume a expressão de um poeta verdadeiramente universal.


Em 1998, Thiago de Mello publica dois novos livros, “Campo de Milagres” (Bertrand Brasil) e “Amazonas, águas, pássaros, seres e imagens” (Salamandra), que mereceram uma boa acolhida do escritor e crítico literário José Castello:

Muito preconceito e incompreensão cercam a vasta obra do poeta amazonense Thiago de Mello, de 73 anos. Antes de tudo, é reduzido, um tanto apressadamente, à figura do poeta engajado e sua poesia tomada, mais, como ideologia. Depois, numa época de sofisticação e rapidez, ele se mantém apegado aos temas primitivos e lentos do Baixo Amazonas, aos versos soltos e derramados e, apesar de ateu, a uma visão da poesia como milagre.

Thiago de Mello é um poeta na contramão da modernidade e isso bastaria para distanciá-lo de seus pares, mas há ainda um fator circunstancial a considerar: desde que retornou ao exílio, em 1978, voltou a viver na distante Barreirinha, pequena vila de 5 mil habitantes encravada no Baixo Amazonas, em pleno coração da floresta. Quando volta do sul do País, depois de voar até Manaus e de lá num pequeno avião até Parintins, o poeta ainda é obrigado a enfrentar uma longa viagem de barco, de mais de cinco horas, até chegar em casa.

Toda manhã, porque sofre de importantes complicações nas coronárias, Thiago dá uma longa caminhada solitária pela floresta, durante a qual recita em voz alta, para macacos, pássaros e o vento, versos de Manuel Bandeira e de Joaquim Cardozo. Apesar do difícil trajeto até sua casa e do peso da idade, não pensa em mudar-se de Barreirinha.

Há dois anos, seus leitores tiveram a impressão, errada, de que se preparava para retirar-se. Depois de ter avisado que De uma Vez por Todas, coletânea de verso e prosa lançada pela Civilização Brasileira em 1996, era seu último livro, Thiago de Mello lança duas novas obras.

Cara de índio, cabelos revoltos, bata branca, Thiago tem mesmo um jeitão de profeta, ou de místico, que contraria (superficialmente, pois ele se considera um utópico) seu perfil de artista ateu e de esquerda. Fala mansa, acentuada pela idade, olhar perdido e grandes silêncios dão a impressão de possuir conexões secretas com outros mundos que não podemos ver. Mas não foge da vida social. Não dispensa convites para seminários, palestras e eventos literários - acaba de participar do júri do prestigiado Prêmio Literário Casa de las Américas -, mas está sempre ansioso para voltar para o silêncio da floresta.

Além disso, participa intensamente da vida social de Barreirinha, onde há dois anos fundou um jogral, Os Companheiros da Esperança, com 18 jovens, que já tem um repertório de 25 poemas de Drummond, Pessoa, Cardozo, Cabral, Gullar e Bandeira. Mas Thiago não limita suas atividades aos entornos da floresta. No momento, ele se empenha na organização de um grande encontro sobre a Amazônia, patrocinado pela Soka Gakai Internacional, uma ONG japonesa, que deve ser realizado este ano em Manaus.

Depois de fazer uma cineangiografia em São Paulo, o poeta vai para o Chile, país em que viveu a maior parte dos seus nove anos de exílio, onde lançará a antologia de poemas Ainda É Tempo, a primeira integralmente selecionada e organizada por ele.

Quanto aos leitores brasileiros meio esquecidos da obra de Thiago, o melhor mesmo é ler Campo de Milagres, livro de poemas derramados e excessivos como ele mesmo, dedicados a amigos como Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, José Lins do Rego e ao pintor chileno Nemésio Antunez. O primeiro livro de Thiago, Silêncio de Pedra, é de 1951 e com Campo de Milagres um ciclo de 50 anos de poesia começa a fechar-se.

Não menos inspirado é Amazonas/Águas, Pássaros, Seres e Milagres, um belo livro fartamente ilustrado com reproduções dos trabalhos das bordadeiras do Baixo Amazonas. Os dois trabalhos guardam um espírito de balanço, de inventário, que começa a desaguar no livro de memórias que Thiago de Mello está escrevendo. Não memórias clássicas, mas um livro sobre as pessoas que conheceu, amou e que marcaram sua vida.


O também escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto foi outro que se derramou em elogios ao poeta amazonense:

Consagrado, por gente como Sérgio Milliet, Manuel Bandeira e Pablo Neruda, e por um grande número de leitores, como um de nossos mais importantes poetas líricos, Thiago de Mello sofre atualmente os preconceitos de uma crítica que se formou repetindo os ensinamentos tatibitates do formalismo mais estreito e irrelevante. 

Se o autor perdeu a espessura crítica, por ser este um campo dominado pelos chato boys paulistas e seus asseclas espalhados em todo o território nacional, ele mantém um horizonte de recepção muito estável num período em que a poesia brasileira se encontra sem leitores. A mesma crítica que, nos cadernos culturais, faz o sucesso de poetas irrelevantes, afugenta leitores que são drenados para obras menos mirabolantes. 

Thiago de Mello não faz sucesso nas altas rodas literárias de hoje, mas tem lugar cativo na preferência de um público de poesia que não aceita falsificações pretensamente cultas.

O novo livro do caboclo amazonense, Campo de milagres (Bertrand Brasil, 1998) contraria o desejo de silêncio que o poeta externou tanto no título de sua coletânea anterior como textualmente. O livro De uma vez por todas (Civilização Brasileira, 1996) era para ser a sua despedida da poesia e tinha um caráter de testamento poético, em que ele liquidava seus saldos como quem vende uma casa. 

Significativamente, num dos textos, Thiago de Mello colocava à venda a casa, na sua terra natal, onde reside atualmente. Ele, no entanto, retorna dois anos depois com um volume substancioso, sem fugir a uma justificativa: "Este livro de milagres cumpre um emocionado dever perante os leitores que gostam de mim, aos quais deixo entrever um certo lado meu (como todo mundo, tenho vários lados), que tem preferido viver à luz da sombra" (p.232). 

Tal depoimento revela algumas das bases criativas do autor. Primeiro, estamos diante de um poeta que vê a poesia como algo visceralmente relacionado ao emissor. Não a um sujeito unívoco, porque o autor se reconhece múltiplo, mas a uma de suas faces. Ao contrário do que papagueiam os pingentes da rarefação vanguardista, o eu poético não é, para ele, uma ficção lingüística. Segundo, a sua poesia tem um compromisso com os leitores, sendo uma forma de comunhão com eles. E, terceiro, ela circula dentro de um conceito de afetividade.

Identificado à legendária José Olympio e, depois do fechamento desta, à Civilização Brasileira, o poeta pertence a um período literário praticamente desaparecido no Brasil. Estas duas casas editoras criaram famílias de artistas, ligados principalmente ao pensamento de esquerda, que revolucionaram nossa cultura. Thiago de Mello formou sua sensibilidade artística dentro de um meio humano extremamente rico, ficando definitivamente marcado por uma poética da camaradagem. A poesia, para ele, é uma casa democraticamente aberta a todos, é um território do convívio na amizade e no amor. 

Não é à toa que um de seus livros se chama Poesia comprometida com a minha e a tua vida (Civilização Brasileira, 1975), expressando um sentimento de irmandade reforçado pela inclusão, no colofon de determinado volume, "do nome de todos que participaram na edição dos livros meus, do digitador ao revisor, do diagramador ao impressor, do capista ao encadernador" (Campo de milagres, p. 231). A partilha do poético é assim a grande marca deste cantor espontâneo, que viveu e continua vivendo em contato direto com as realidades do país, ao contrário da grande massa lírica de hoje, que revela um desdém retumbante pelo real ou uma visão ingênua de estrangeiro, de quem vê o país de uma latitude distante.

O poeta pode ser definido como antiquado, realmente o seu verso não busca o novo, mas principalmente pelo fato de revelar uma penetração em nossa realidade e num dado horizonte de recepção que não é mais comum. É um poeta à moda antiga, em que a formação intelectual só tinha sentido quando em contato direto com o mundo. Esta tradição se perdeu com a excessiva intelectualização do produtor contemporâneo, que se quer circulando apenas dentro de uma tradição cultural cosmopolita, ou seja, importada dos centros de prestígio.

É a reafirmação de sua poética da camaradagem que encontramos em Campo dos milagres, livro onde Thiago de Mello continua conversando amorosamente com artistas, pessoas do povo e com aqueles que ainda vivem em sua recordação. Penso realmente na idéia de conversa, ou seja, numa literatura sem pretensão de criar um fechamento de linguagem, impossibilitando o trânsito por ela. De um modo geral, o livro é composto por crônicas poéticas. Em muitos momentos, não nos sentimos diante de um objeto artístico, mas sim numa roda de amigos, ouvindo a voz do poeta. E esta espontaneidade é buscada com rigor:

"Trabalho com as palavras
como o carpinteiro, o ourives,
com a madeira e o metal.
Algum sonho, muito barro.
Paixão é imprescindível.
Não a devastadora,
que te priva dos sentidos,
da inteligência. Paixão:
fascinada encantação
que ponho em tudo que faço:
um guisado, uma canoa,
uma conversa amorosa; (p. 163)"

A ausência de posturas poéticas em sua linguagem cria a aproximação entre autor/leitor. É nesta característica que reside a beleza de sua poesia e a sua imprescindibilidade. O ofício de escrever é o mesmo de viver, segundo o poeta, ou de conviver, como prefere este crítico. Vários poemas são dedicados a amigos, alguns falecidos, cujas fotos aparecem nas páginas do livro. Esta presença de fotogramas de pessoas dá a medida de sua poesia, cujo centro é o homem.

A celebração da amizade é uma das faces de uma celebração maior, a da vida. Mesmo perdendo os amigos, mesmo sentindo a proximidade de sua própria morte, que o teria levado, no último livro, a desistir de publicar, não vencem sua capacidade infinita de viver. O poeta está entregue integralmente às aventuras e à emoção. É uma poesia sem o pessimismo paralisante, que continua acreditando que sempre é tempo de fazer as coisas. 

Isso não significa que ele fuja dos assuntos dolorosos, mas sim que os enfrenta com a arma do verso. Um bom exemplo desta disposição permanente é o poema "O Nemesio". Atendendo um chamado do pintor chileno Nemesio Antunez, que se sente morrer, o poeta parte para Santiago, levando sua solidariedade ao amigo.

Esta disposição faz com que Thiago de Mello esteja sempre em trânsito. Boa parte dos poemas foi escrita durante estes deslocamentos espaciais e logo depois de algum acontecimento. É nesse sentido que temos que entender o ofício de escrever como um ofício de viver. Seus poemas trazem a data e o local em que foram consumados, como uma forma de valorizar a experiência. O poeta escreve a partir do exercício pleno do agora, sem se acovardar diante do fim iminente ou dos problemas.

Campo de milagres (definição extraída de um poema de Bandeira para a vida) faz ecoar um grande número de escritores, revelando um autor que permanece atento ao mundo das letras. A grande diferença, em relação ao grosso de nossa atual produção, é que sua cultura literária foi posta a serviço de uma aproximação entre as pessoas e de uma vivência da realidade nacional, quando, habitualmente, ela só serve para criar distanciamentos que passam por cosmopolitismo.

Mesmo sendo produto do tempo da velhice, Campo de milagres reúne textos de um poeta em permanente amanhecer e que crê na afetividade. Não estou dizendo que a sua poética é um modelo a ser seguido, mas sim que é um exemplo que deve pesar na tradição lírica brasileira. Para que isso ocorra, será preciso desvestir os preconceitos de quase um século de frustradas tentativas cosmopolitas de vanguarda que pouco nos deixaram.

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