Em 1960, a editora José Olympio lançou “Vento Geral”, reunião
dos dois livros anteriores e mais os inéditos “Romance do Primogênito” (1952),
“O Andarilho e a Manhã” (1953), “Tenebrosa Acqua” (1954), “Toadas de Cambaio”
(1959) e “Ponderações que Faz o Defunto aos que lhe Fazem o Velório” (1960). O
livro conquistou o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. Em
paralelo à carreira literária e jornalística, Thiago dirigiu o Departamento
Cultural da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e, no final dos anos 50, foi
nomeado adido cultural da Embaixada do Brasil na Bolívia, onde conviveu com
poetas e romancistas de primeira linha, como Oscar Cerruto e Augusto Céspedes.
Poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura
e tradutor, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (foto) nasceu em Recife, no
dia 19 de abril de 1886, e mudou-se ainda jovem para o Rio de Janeiro. Em 1903,
transferiu-se para São Paulo, onde iniciou o curso de engenharia na Escola
Politécnica. No ano seguinte, abandonou os estudos por causa da tuberculose e
retornou para o Rio, onde escreveu poesia e prosa, fez crítica literária e deu
aulas na Faculdade Nacional de Filosofia. Por causa da doença, passou longos
períodos em estações climáticas no Brasil e na Europa. Entre 1916 e 1920,
perdeu a mãe, a irmã e o pai.
Em 1917, Manuel Bandeira publicou “A Cinza das Horas”, de
nítida influência parnasiana e simbolista. Dois anos depois, lançou “Carnaval”,
fazendo uso do verso livre. Já se mostrava um dos precursores da linha
modernista, e Mário de Andrade o chamaria de “São João Batista do modernismo
brasileiro”. Apesar disso, em 1922, por não concordar com a intensidade dos
ataques feitos aos parnasianos e simbolistas, não participou diretamente da
Semana de Arte Moderna (nem sequer viajou para São Paulo). No entanto, seu
poema “Os Sapos”, lido por Ronald de Carvalho na segunda noite do
acontecimento, provocou muitas reações. Nele, Bandeira se vale mais uma vez do
verso livre, principal característica de sua obra: “Enfunando os papos,/ Saem
da penumbra,/ Aos pulos, os sapos./ A luz os deslumbra./ Em ronco que aterra,/
Berra o sapo-boi:/ Meu pai foi à guerra!/ Não foi! – Foi! – Não foi!”
Com “O Ritmo Dissoluto” (1924) e “Libertinagem” (1930),
temos um poeta totalmente integrado no espírito modernista. “Libertinagem”
apresenta alguns poemas fundamentais para entender a poesia de Bandeira:
“Vou-me embora pra Pasárgada”, “Poética”, “Evocação do Recife” e outros.
Aparecem ali seus grandes temas: a família, a morte, a infância no Recife, os
indivíduos que compõem as camadas mais baixas da sociedade. Apesar dos amigos e
das reuniões na Academia Brasileira de Letras (para a qual foi eleito em 1940),
Manuel Bandeira viveu solitariamente. Apesar de ser um apaixonado pelas mulheres,
nunca casou: dizia que “perdeu a vez”. Morreu no dia 13 de outubro de 1968, aos
82 anos, de parada cardíaca – e não de tuberculose, a doença que o acompanhara
durante parte tão grande de sua vida.
Colaborador do jornal Folha de São Paulo, Manuel Bandeira
publicou naquele matutino, no dia 2 de abril de 1960, um artigo intitulado
simplesmente de “Vento Geral”:
A editora José Olympio
acaba de lançar o mais bonito volume de sua coleção de poesia com a edição de
Vento Geral de Thiago de Mello (a capa é um poema concreto). O poeta agora vai
ficar em pé nas estantes e decentemente vestido para a posteridade. Assim
posto, é possível que perca os complexos de cambaio e defunto, a que devemos,
aliás, algumas das toadas mais fortes e saborosas de nossa poesia. Atenção,
poeta! Fique fiel a si mesmo. Fiel ao seu ofício de amar – e amando, entreter /
o que tenho de mais meu / e mais de amargo: este jeito / cambaio e triste de
ser.
Quanto ao seu jeito de
ser defunto, não há nada que mudar. Em quatro poemas (“O morto”, “Salatiel”, “O
defunto” e “Ponderações que faz o defunto aos que lhe fazem o velório”) você
provou aos admiradores do grande poema do mesmo nome, obra de Pedro Nava, que o
tema é inesgotável, quando bem entendido, haja no poeta força bastante para a
estranha vocação de defunto. O defunto do Nava era amargo, sinistro,
cominativo, impudente; o de Thiago é um defunto conformado, a cuja “dura e doce
dor de existir se misturavam muitas auroras, muitos azuis, defunto bem
consciente de que o importante na vida, digamos o saldo da vida, é a lágrima fraterna
derramada com beleza”.
De Thiago escrevi uma
vez que é um grande poeta, um dos grandes poetas da sua geração e de qualquer
geração. Relendo essas minhas palavras, transcritas na orelha deste volume,
refleti comigo: terei exagerado? Mas logo depois me tranqüilizei lendo as de
Gilberto Freyre: elas dão-lhe um lugar de exceção entre os melhores poetas do
Brasil ao reconhecer na poesia do mestre de Vento Geral versos “que chegam a
ser pouco brasileiros pela sua densidade e concentração”.
A leitura dos poemas
posteriores à Lenda da Rosa, em especial as Toadas de Cambaio e as Ponderações,
me confirmou na verdade dos nossos juízos. Reencontrei em todos esses poemas o
mesmo personalíssimo caboclo pluvial, fluvial e aluvial dos livros anteriores,
com todos os seus toques e tiques (seu curioso processo de matizar a expressão
por meio de prefixos negativos: dizer, por exemplo, “desalegrias” em vez de
“tristezas”, o que implica que são tristezas de quem já teve alegrias).
Thiago, meu velho,
estou sentindo falta de Zé Lins neste teu grande momento. Estou sentindo a dor
de sabê-lo longe / de nosso convívio, longe / de nossa ternura, longe / de
nossas andanças, longe / de nossa conversa, longe, / longe, longe, muito longe.
Pablo Neruda e Thiago de Mello se conheceram em 1960, no Rio
de Janeiro, apresentados pelo escritor baiano Jorge Amado. Ao ser cumprimentado
por Pablo Neruda, Thiago de Mello teve a satisfação de ouvir dois de seus
poemas recitados pelo poeta chileno. O reencontro entre eles só foi acontecer
no Chile, no ano seguinte.
“Em 1961, fui nomeado adido cultural na Embaixada do Brasil
no Chile. Quando me encontrei novamente com Neruda, em Valparaíso, fui recebido
com muito carinho e ele me convidou a passar aquela noite em sua casa. No
domingo, passamos o dia todo juntos. Ele, então, me convidou para morar em sua
casa em Santiago, chamada La Chascona, uma bela residência, já que Neruda tinha
vocação para arquitetura. Era o seu grande sonho. Aceitei o convite. Eu pagava,
evidentemente, um aluguel simbólico de amigo pra amigo, e lá morei durante
quatro anos. Nosso exercício de amizade foi do grau mais elevado. Estávamos
sempre juntos, trocando ideias, viajando, cozinhávamos, brincávamos e
traduzíamos poemas um do outro”, recorda o poeta amazonense.
Até hoje, um dos grandes prazeres de Thiago de Mello é falar
sobre sua amizade com Neruda e do período de convivência estreita dos dois. De
acordo com o autor amazonense, era rotina para o poeta chileno escrever todos
os dias e, por aproximadamente seis meses, os dois trabalharam na mesma mesa,
juntos, um traduzindo os poemas do outro. É dessa época o início da tradução
feita por Thiago de Mello do livro “Los Versos Del Capitán”, que havia sido publicado
anonimamente em Nápoles, na Itália, em 1952.
Os versos do capitão são os versos
do amor intenso de Neruda por Matilde Urrutia, que então era sua amante secreta.
Em 1953, o poeta chileno começou a construir aquela casa de Santiago para
Matilde, e ali eles moraram juntos desde 1955, quando Matilde se converteu em
sua terceira esposa. La Chascona é uma palavra quéchua que significa “despenteada”
e a casa tinha esse nome em homenagem aos cabelos em eterno desalinho de
Matilde. “Participar da vida do Neruda, frequentar a intimidade do seu gênio
criador e a riqueza encantadora (e às vezes perturbadora, ninguém é santo) de
sua pessoa humana foi um precioso presente da vida”, diz Thiago.
Em 1964, o golpe militar no Brasil surpreende o poeta
amazonense no meio de uma nova tarefa literária: traduzir o livro “A Terra
Devastada e os Homens Ocos”, escrito por T.S. Eliot (1888-1965). Thiago de
Mello recorda bem daquele dia:
“Na noite de 31 de março, Salvador Allende, então senador,
me chama ao telefone e avisa que vem chegando com um aparelho de rádio potente,
para ouvir comigo o discurso de despedida de Jango lá de Brasília. Que estava
trazendo Neruda e o pintor Nemésio Antunez. Eram três pessoas do meu coração
que se queriam solidárias comigo naquele instante perverso, na La Chascona,
hoje sede da Fundación Pablo Neruda, onde o poeta quis que eu fosse morar assim
que cheguei ao querido Chile. Jango falou uns vinte minutos. Disse que ia
deixar o país e que não queria derramamento de sangue. Neruda, o meu querido
Paulinho, membro do Comitê Central do Partido Comunista do seu país, me olhou e
disse, pausado e grave: “Tu pueblo, compañerito, no va a salir a las calles.
Eso jamás pasará en Chile. El dia en que los militares intenten levantar la
cabeza, hasta las amas de casa saldrán a las calles, con sus escobas, en defensa
de la democracia”. Allende levantou-se: “Lo que yo siento es que ese golpe
militar en el Brasil va a desencadenar una ola de levantes en países de nuestra
América. Y hasta Chile podrá ser alcanzado”. Fiquei silencioso. Nem preciso
falar agora. A história já falou.
Neruda morreu no hospital 10 dias depois do golpe cruel de
Pinochet, em setembro de 1973, sem poder sequer recordar o seu comentário
daquela noite. Já Salvador morreu no palácio de La Moneda, bombardeado pelos
militares golpistas e a resistência civil tão planejada sequer “poude salir a la
calle”, devorada pela ferocidade dos primatas de Pinochet. Mas naquela noite de
31 de março ninguém sabia que esses acontecimentos terríveis iriam acontecer.
Lá pelo meio de abril, chegam à embaixada os jornais brasileiros.
Na primeira página do Correio da Manhã, exatamente no lugar em que Carlos
Heitor Cony, o meu companheiro da manhã, o primeiro intelectual brasileiro a se
erguer valente contra a degradação humana da tortura, publicara no dia 2 de
abril o seu famoso brado “A Salvação da Pátria”, valha-me Deus!, vem a foto de
Gregório Bezerra, o líder camponês, exibido nas ruas do Recife, descalço e só
de calção, todo arranhado, com uma grossa corda amarrada no pescoço, como se
fosse um bicho, puxado por um oficial do Exército brasileiro, em pé na traseira
de um jipe. Veio o primeiro ato institucional da Junta Militar. Arraes e Julião
presos em Fernando de Noronha. E o pior: muita gente boa aderindo. Não
conseguia dormir. Vergonha de minha pátria. Indignação moral. Eu precisava
fazer alguma coisa.
Já era maio quando a mala diplomática trouxe o jornal que
estampava a foto do escritor Astrogildo Pereira, o apaixonado machadiano ao
estudo de cuja obra dedicou desde adolescente a sua vida, também consagrada à
luta pelo fim das injustiças sociais, algemado num catre e sua vasta biblioteca
incendiada. Era manhã e também Allende e também Paulinho estavam comigo na La Chascona,
testemunhas de minha sofrida indignação moral: “Este Brasil não é o meu. A minha
pátria não tortura. Vou renunciar ao meu posto!”. Redigi o meu pedido e o
entreguei ao nobre embaixador Fernando Alencar, que, sem conseguir me demover,
teve que encaminhá-lo ao Itamaraty. Silêncio.
Aí por julho, de passagem por Santiago, o então chanceler
Vasco Leitão da Cunha, que uma noite antiga, na casa do poeta Augusto Frederico
Schmidt, se dissera leitor do meu “Vento Geral”, de passagem pelo Chile, também
em vão quis me dissuadir. Não devo deixar de contar que, na mesma noite em que
redigi a renúncia, escrevi o poema “Os Estatutos do Homem”, logo publicado no
suplemento literário do Correio da Manhã, dirigido por Álvaro Lins. Na véspera
do meu retorno ao Brasil, a televisão nacional do Chile, sob o controle dos
democratas cristãos do presidente Frei, me pergunta por que vou voltar ao
Brasil, onde os militares não me querem, quando o chanceler chileno, meu amigo
Gabriel Valdés, me oferecera um lugar no departamento cultural do seu próprio
Ministério? “Vou voltar para lutar
contra a ditadura”, respondi. Voltei e fui preso ao chegar ao Brasil, quando
ainda estava na porta do avião.”
A amizade com Manuel Bandeira também ficou seriamente
abalada dois meses depois do golpe de 1964, após a publicação do referido poema
“Os Estatutos do Homem”, hoje traduzido para mais de 30 línguas e incorporado
ao livro “Faz Escuro Mas Eu Canto” (Civilização Brasileira, 1965). O poema era
dedicado a Carlos Heitor Cony. Em 11 de junho, Bandeira enviou uma carta de
rompimento, em que defendia o golpe militar e repreendia Thiago pela dedicatória.
“Chorei quando ele me pediu por escrito que eu não o considerasse mais seu
amigo. Foi como se eu tivesse levado uma surra. Bandeira aproveitou para
machucar o Cony, o primeiro dos intelectuais brasileiros a escrever contra a
ferocidade dos militares”, lembra o poeta. “Devolva essa carta... Ela queimará
as suas mãos pelo resto da vida”, recomendou Neruda.
De volta ao país, em 1965, após renunciar à carreira
diplomática no Chile, Thiago e suas irmãs visitaram o poeta briguento, com o
qual costumavam participar de sessões musicais, e, num gesto de reconciliação, Manuel
Bandeira recitou de cor o “Poema Perto do Fim”, de “Faz Escuro Mas Eu Canto”.
Abraçado ao jovem poeta, sussurrou: “Esqueça aquela carta...”. Thiago esqueceu.
“Na verdade, havia aí um problema pessoal entre mim e
Bandeira”, revela Cony, ao relembrar o episódio. “Ele não rompeu com o Thiago
só por ideologia. Bandeira tinha sido padrinho de casamento de uma moça que se
separou do marido para casar comigo. Ele me chamou de canalha, uma coisa
violenta. Não respondi devido ao respeito que tenho pelo Bandeira, que considero
o melhor poeta brasileiro de todos os tempos”.
Naquele mesmo ano, durante uma nova prisão, Thiago
aproximou-se ainda mais de Cony – ambos “recém-chegados” de um protesto de artistas
e intelectuais contra a ditadura, em frente ao Hotel Glória, no dia de uma
conferência da Organização dos Estados Americanos, no Rio de Janeiro. No
quartel do Exército, o homem de Andirá queixou-se em dó de peito: “Sou índio,
preciso tomar banho de rio se não eu enlouqueço”. Levou duas semanas para sair
da prisão. “Eu morrendo ou o Thiago morrendo, o que sobreviver vai se sentir
muito órfão”, diz Cony. “Nós somos muito próximos, quase almas gêmeas”.
No ano seguinte, Thiago lança um novo livro, “A Canção do
Amor Armado” (Civilização Brasileira, 1966), que também é incensado pela
crítica. O poeta deixa de lado o canto pessoal, o lirismo individualista, para
assumir a condição de intérprete daqueles que amam a liberdade e lutam em nome
de valores humanos mais justos e generosos, e, por isso, pagam o preço do
cárcere, da proscrição e da angústia, enquanto aguardam, confiantes, os
primeiros sinais da aurora. Considerado um dos mais respeitáveis representantes
do pensamento conservador católico no Brasil, o advogado, jornalista e crítico
literário Alceu Amoroso Lima foi outro que se rendeu aos encantos da combativa poesia
de Thiago de Mello.
Alceu Amoroso Lima (foto) nasceu no dia 11 de dezembro de
1893, no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, e faleceu no dia 29 de
agosto de 1983, em Petrópolis (RJ). Consta que, ainda criança, era vizinho do
escritor Machado de Assis. Em 1913, formou-se em direito pela Faculdade do Rio
de Janeiro, viajando em seguida à França, onde continuou seus estudos. De volta
ao Brasil, trabalhou como advogado e passou a colaborar com o jornal “O
Crítico”, onde adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. Nos anos 1920,
converteu-se ao catolicismo, iniciando ampla militância como expoente do
pensamento católico. Foi diretor do Centro Dom Vital, que reunia lideranças da
Igreja católica. Participou ativamente dos movimentos sociais e políticos
brasileiros nos anos 1930, tornando-se um dos mais respeitáveis representantes
do pensamento conservador católico no Brasil.
Em 1935, Alceu Amoroso Lima tornou-se diretor da Ação
Católica Brasileira e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Trabalhou
também como jornalista e crítico literário. Publicou diversas obras em que
expôs seu pensamento, como “Introdução à Economia Moderna”, “Preparação à Sociologia”,
“No Limiar da Idade Nova” e “Idade, Sexo e Tempo”. Na década de 1940, Alceu
Amoroso Lima retomou suas concepções liberais, sem abandonar o catolicismo. Foi
professor de literatura brasileira na Faculdade Nacional de Filosofia e ajudou
a fundar a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Após o golpe
militar em 1964, teve uma postura atuante na defesa dos direitos humanos.
Publicou uma série de artigos contra a ditadura, valendo-se de seu prestígio
como intelectual. O renomado pensador católico foi o responsável pela
apresentação do livro “A Canção do Amor Armado”:
Thiago de Mello é, sem
a menor dúvida, um dos grandes poetas do nosso tempo. E dos mais típicos
representantes da chamada “geração de 45”, a que nasceu para as letras depois da
morte de Mário de Andrade. Estreou em 1951 e desde então sua poesia representa
aquilo que Mário de Andrade deixou como testamento: a necessidade de uma
participação do poeta na marcha do mundo, nos acontecimentos do mundo e mesmo
na reforma do mundo. Aquilo que Carlos Drummond de Andrade também disse na Rosa
do Povo.
Thiago de Mello cada
vez mais representa o poeta participante, como um Moacyr Félix, como um Eduardo
de Oliveira, o novo poeta negro. O drama do mundo cada vez mais capta sua
poesia, mas esta não perde, com isso, nada de sua tessitura alada. É uma poesia
verbalmente leve, delicada, sutil, mas sempre ligada a um profundo sentimento
interior, que ultimamente se torna cada vez mais transparente ao drama do mundo
moderno, como se nota claramente nos poemas do Faz Escuro Mas Eu Canto.
Esses exilados do
interior representam a nossa nova Canção do Exílio, e é de sua comparação com o
poema de Gonçalves Dias – que foi como que a primeira voz da poesia
intensamente brasileira – que melhor podemos entender o caminho que vai do
romantismo ao neomodernismo, que é também, como o próprio modernismo o foi, um
neo-romantismo. Ao passo que Gonçalves Dias pensava em si e sua pátria
longínqua, Thiago de Mello pensa na dor humana, na injustiça, na opressão, na
ausência de liberdade e, portanto, no que há de universal e de revolucionário
no momento atual de todo o mundo, do Brasil e de si próprio. Pois seus poemas
não se tornaram em nada sectários nem bombásticos com essa conversão crescente
ao social. Basta lembrar a imensa ternura dos versos dedicados ao nascimento do
seu filho Manuel ou à morte do seu amigo, o nosso José Lins do Rego.
Os versos de Thiago de
Mello constituem, sem a menor dúvida, a expressão mais transparente e bela,
significativa e profunda, não só de um poeta autêntico, mas de um momento
crucial da alma brasileira em sua fase decisiva da evolução de sua cultura.
Essa conversão social não o afastou de si mesmo. Apenas o Narciso Cego abriu os
olhos ao Vento Geral do mundo. Seu narcisismo era intransparente à sua própria
imagem: “Cego assim não me decifro / e ao imaginar-me sonhado / não me
completa: a ganância / de ser-me inteiro prossegue. / E paira – pânico mudo – /
entre o sonho e o sonhador”.
Agora sua “ganância de
ser-me inteiro”. Talvez por influência de Pablo Neruda, de quem se aproximou
durante sua permanência trienal do Chile, venceu o narcisismo e o vento geral o
levou ao próximo, à vida em contínua transformação, do mundo em mudança. E o
poeta se completou, sem perder em nada a sua angústia. Pois, ai dos poetas que
fecham totalmente o ciclo de sua vida. A poesia tem de ser sempre uma abertura
para o infinito. E a esperança que ressuma de seus poemas mais recentes do Faz
Escuro Mas Eu Canto bem mostra que a sua poesia não foi “apenas um erro no
pensamento de Deus”.
Ensaísta e jornalista, Otto Maria Karpfen (foto) nasceu em Viena,
Áustria, no dia 9 de março de 1900, e faleceu no dia 3 de fevereiro de 1978, no
Rio de Janeiro. Filho do advogado e pianista judeu Max Karpfen e da violonista
católica Gizela Schmelz Karpfen, Otto, aos 20 anos, ingressa na Faculdade de
Direito da Universidade de Viena, onde obtém, em 1925, o título de doutor em
letras e filosofia e começa a trabalhar como jornalista. Intelectual ativo, Otto
estuda ciências matemáticas em Leipzig, sociologia em Paris, literatura
comparada em Nápoles e política em Berlim. Tempos depois, por opor-se ao regime
nazista em ascensão na Alemanha, o jornalista é perseguido e foge, em 1938,
para a Antuérpia, Bélgica, onde trabalha no periódico Gazet van Atwerpen.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Otto viaja
para o Brasil, em 1939, e chega ao Paraná com sua mulher, a cantora lírica
Helena Karpfen. Alguns meses depois, o casal vai morar em São Paulo. Poliglota,
o homem que já sabia inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo,
catalão, galego, provençal, latim e servo-croata, em um ano aprendeu e dominou
o português, com muita facilidade devido ao conhecimento do latim e de outras
línguas derivadas do latim. Nesse meio tempo, Otto transforma seu sobrenome
original, Karpfen, em Carpeaux (francês) – ambos significam carpa –, por
considerá-lo mais prestigioso entre os intelectuais brasileiros. O casal
Carpeaux muda-se para o Rio de Janeiro em 1940.
Em 1941, precisando urgentemente de trabalho, Otto Maria
Carpeaux envia uma carta ao crítico Álvaro Lins, oferecendo um artigo sobre o
escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), que ele conhecera pessoalmente na
Europa. O artigo é aceito e Carpeaux passa a colaborar no jornal carioca
Correio da Manhã. Em 1942, ele torna-se diretor da biblioteca da Faculdade
Nacional de Filosofia, e publica seu primeiro livro em língua portuguesa, “A
Cinza do Purgatório”. Em 1944, assume a direção da biblioteca da Fundação
Getulio Vargas (FGV), cargo que ocupa até 1949. Sua maior e mais conhecida obra
é a “História da Literatura Ocidental”, escrita entre os anos de 1941 e 1947 e
publicada em oito volumes, entre 1959 e 1966.
A partir de 1950, Otto Maria Carpeaux trabalha como redator
editorialista do Correio da Manhã. É nessa função que ele conhece e se torna
amigo íntimo de Thiago de Mello. Em 1968, Otto anuncia o fim de sua carreira
literária e promete dedicar o resto de seus dias à luta política, fazendo
oposição ao regime militar instaurado no Brasil. Ele faleceu três meses depois
que o poeta amazonense retornou do exílio. Além da produção extensa de ensaios
sobre literatura, Otto publicou livros sobre música, história da arte e
política. Foi ainda redator e co-editor da Grande Enciclopédia Delta-Larousse e
colaborou na Enciclopédia Mirador Internacional. Em um artigo intitulado “O Companheiro Thiago
de Mello”, Otto Maria Carpeaux não poupou elogios ao poeta amazonense:
As poesias de Faz
Escuro Mas Eu Canto foram versos surpreendentes com que Thiago de Mello voltou
do Chile para entrar, com a cabeça, com o coração e com os punhos, na luta brasileira
destes nossos dias. Ainda, a angústia, esse anjo negro do poeta Thiago de
Mello, inspirava esse canto, envolvendo-o entre suas asas negras: Amor e Morte.
Mas já o poeta tinha encontrado a saída, justamente quando ela parecia fechada
para seu povo. A perda da liberdade abrira-lhe os olhos para a perda maior da
própria vida, para a miséria do pobre, para a ignomínia de uma estatística: da
mortalidade infantil. Inspirado pela desgraça geral, o individualista Thiago de
Mello lançou em Faz Escuro Mas Eu Canto seu grito de rebeldia. Numa paisagem
noturna deu-nos ele um exemplo luminoso. O relógio angustioso de sua poesia
bateu as últimas horas de escuridão e vislumbrarmos num horizonte incerto os
primeiros sinais de aurora.
As poesias de A Canção
do Amor Armado são mais recentes e boa parte delas foi como que escrita ontem,
para os dias de hoje. Mas esperamos que seja para sempre. Pois no centro desse
grupo de poesias novas encontra-se Horóscopo, o maior poema que Thiago escreveu
até agora. Os vaticínios e as advertências para os que nasceram sob as doze
diferentes constelações do Zodíaco também valem para os que nascerão depois de
nós. São de um lirismo rico, de uma abundância metafórica, de metáforas
surpreendentes e no entanto evidentes que fazem pensar na grande
metaphysicalpoetry inglesa. São, às vezes, de uma ironia sutil ou de um
sarcasmo cáustico, como se o poeta quisesse zombar das suas e das nossas
pequenas preocupações, lembrando-nos a luta maior que se desenrola no fundo e
da qual somos, com ele, os combatentes. Pois o rebelde, que Thiago de Mello já
foi, agora nos vaticina uma constelação nova: agora, é conscientemente
revolucionário.
Uma velha experiência
nos adverte: não nos aproximar demais, pessoalmente, dos poetas e escritores
que admiramos. É quase certa a desilusão, por que botaram tudo nos seus versos,
nas suas linhas e na vida só ficou um homem inacessivelmente seco. Mas não é
este o caso de Thiago de Mello. Sua personalidade é tão rica que podia dar tudo
em seus versos – e ainda fica um homem de muitas facetas e um amigo de
inumerável coração. Thiago de Mello é como sua poesia: fulminante como suas
imagens, firme como seus ritmos, melodioso como sua música. Em um dos versos de
Horóscopo ele fala mesmo de música, convidando-nos a tocar um concerto de Bach,
“de preferência com fagote ou com fuzil”. Nessas palavras reconhecemos Thiago
de Mello. Estendemos a ele as mãos: – Companheiro!
“Sempre, desde o meu primeiro livro, fui um poeta
comprometido com a vida do homem – e a minha de permeio”, diz Thiago. “Escrevo
sobre o que me comove, o que instiga a minha sensibilidade ou a minha
inteligência. O que me alegra ou me dói. Quando a ditadura militar, com o seu
terror cultural e a indignidade da tortura, feriu a própria dignidade da
condição humana, os meus versos se ergueram em defesa do homem. Nunca fui
panfletário – nada tenho contra o panfleto bem sucedido – nem populista. Mas não
há porque negar que os meus livros Faz Escuro Mas Eu Canto e A Canção do Amor
Armado me fizeram popular. O Faz Escuro está hoje na sua vigésima edição. Não
tenho culpa. Escrevo sobre o silêncio sonoro da floresta ou sobre a menina que
dorme com fome. Sobre as ancas da moça que passa ou sobre o milagre do
telescópio que fotografou a luz fossilizada dos primeiros estilhaços do
big-bang. Sobre a dor dos deserdados e a esperança de quem tem fé”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário