Em novembro de 2000, com o apoio da Secretaria Estadual de
Cultura do Amazonas, Thiago de Mello organiza o 1º Encontro Amazônico de Poetas
da América Latina, realizado em Manaus, com a presença de poetas consagrados
como Horácio Salas, Ernesto Cardenal, Margarita Laso, Guillermo Samperio,
Gonzalo Rojas, Raul Zurita, Angela García, Cesar Soto Gomez, Miguel Barnet,
Jorge Enrique Adoum, Maria Antonieta Flores, Norma Wanless, Saul Ibargoyen,
Maria Mercedes Carranza, João de Jesus Paes Loureiro, Aníbal Beça, Alcides
Werk, Jorge Tufic, Astrid Cabral e Aldisio Filgueiras, entre outros.
No dia 3 de dezembro de 2000, domingo, o jornalista e poeta
Luís Augusto Cassas (foto), publicou um artigo intitulado “As veias abertas da
América Latina”, no suplemento Alternativo, do jornal O Estado do Maranhão,
comentando o evento:
Existe uma poesia latino-americana
fundada na expressão lúdica e criativa em seu anseio de expansão universal,
cuja soma de valores seja a mais perfeita expressão de nossa biodiversidade
cultural, nestes tempos em que se estabelece um novo projeto de cidadania
planetária para uma nova ordem mundial? De que maneira a integração poética
deveria acompanhar a integração econômica, social e linguística da latinidad?
Como carimbar, portanto, o passaporte da unidade cultural para, coletivamente,
construir as novas utopias de amor e liberdade que regerão os signos do futuro?
Acionado pela
inspiração xamânica de Thiago de Mello, pastor das águas doces e cidadão do
sentimento do mundo (a quem coube abrir a caixa de surpresa da selva: os 300
mil dólares do governo do Amazonas, para o financiamento do congresso), a
poesia se encontrou na Floresta Amazônica, no período de 22 a 26 de novembro,
para confraternizar-se e repensar novos modelos de integração e unidade
regional-universal.
Descendentes de maias,
incas, astecas, nheengatus, tapuias e outros deuses totêmicos, 54 poetas de 15
países abriram as veias da sua poesia, irmanados na confluência do “portunhol”
– idioma oficioso do encontro –, sob o simbolismo ecumênico do encontro das
águas dos rios Negro e Solimões, para o canto e exorcismo da vida e os seus
mais belos demônios. Ao contrário do que disse Gullar, a poesia cheirou –
agradou a todos.
Arranchados no Hotel
Tropical, um mastodôntico mosteiro de luxo erguido à época do milagre
brasileiro, os poetas, com todas as despesas pagas e generosos cachês, pareciam
personagens de encontros de negócios de executivos norte-americanos. Mas em
suas valises avolumavam-se projetos de ideal e sonhos.
Cercado de toques
solenes – abertura no Teatro Amazonas –, excessos de jantares, almoços,
coquetéis e recitais em teatros, escolas, com direito a autógrafos para a
comunidade, a Poesia plantou até ipê-amarelo numa ONG japonesa, a Soka Gakai,
que culminou com um grande recital coletivo na manhã de domingo, 26, em pleno
centro de Manaus, a av. Eduardo Ribeiro, com acompanhamento da Orquestra
Sinfônica de Manaus e ampla participação popular, que elegia os seus
prediletos, como num concerto de rock. “Manaus não será a mesma depois desse
congresso”, disse o secretário de Cultura, Robério Braga, olhos marejados.
Emoção ou calor?
Vindos de todos os
lugares, os poetas moveram os moinhos da distância. Estavam lá desde o
candidato a Nobel de Literatura, o padre-guerrilheiro-nicaraguense Ernesto
Cardenal, que preferiu descansar o seu lado trapista e declamar poemas de amor
de juventude, antes de declarar-se de corpo e alma a Deus, ao maior poeta
colombiano, Juan Manuel Roca, boa praça e bom de papo, até grandes expressões
da poesia chilena como Raul Zurita, César Sotto e Adan Rosas. Interpelado
jornalisticamente sobre o seu conceito de poesia, Zurita defenestrou o
interlocutor: “Conceito só depois da poesia pronta. Antes não há conceito.”
Os mexicanos Guillermo
Samperio (que não desgrudava do cigarro nem mesmo às refeições e recitais) e a
aristocrática Norma Wanless (com seus belíssimos livros encadernados em crochê)
fizeram números à parte. Contrito, Samperio não percebeu que declamava um poema
dedicado a putas para um público de crianças do Colégio Julia Barjona. Gracias
a la vida. Quando Thiago de Mello beijou-me a cabeça após a leitura de O Poema
dos Sete Chacras, uma voz brasileira ouviu-se em surdina. “Estão de caso.”
Como as eleições
norte-americanas não tinham ainda chegado ao fim, o plebiscito poético elegeu
outros valores do humor e da cidadania. Os poetas colombianos e bolivianos
(entre eles Juan Carlos Galeano e Nicodemes Suares Aurz) foram batizados como a
turma do cartel de Medellín e outros bichos de pelúcia. Saul Ibargoyen,
setentão uruguaio, foi considerado o de melhor humor e o mais simpático, e
Horácio Salas (da Argentina) e Aruro Corquera (Peru) os mais introvertidos.
A equatoriana Margarita Laso (também cantora) levou o título de a mais bela. A ironia não poupou sequer o poeta Cardenal: taxado de o mais comilão pela demora frequente às refeições, não investiu com receio no “Ninho de Crocodilos”, um exótico prato servido no jantar da sexta. Não era besta.
A equatoriana Margarita Laso (também cantora) levou o título de a mais bela. A ironia não poupou sequer o poeta Cardenal: taxado de o mais comilão pela demora frequente às refeições, não investiu com receio no “Ninho de Crocodilos”, um exótico prato servido no jantar da sexta. Não era besta.
Num dos jantares
noturnos movidos a saraus, o clima frio do ar-condicionado superou o calor da
Zona Franca e houve um esvaziamento de energia poética. Em nome da
maranhensidade, dei a nossa contribuição ao soerguimento do sonho. Na hora da
minha apresentação, substituí a fala pela gravação da performance eletrônica
Quando as Máquinas Falam, exibida no lançamento de O Shopping de Deus & A
Alma do Negócio, no BEM.
O som alto, como discotéque, contaminou a opinião do crítico Cláudio Willer. “Adorei. Parece Oito e Meio do Fellini”. Opinião compartilhada pelo crítico e poeta Floriano Martins. Mais adiante, uma discussão teórica: Nicomedes Arauz dizia que o soneto era uma fórmula dialética de uma maneira de pensar que se esgotou no final do século XVI, ao que Jorge Tufic, alma em pânico e flor, reagiu: “Never”. E foi cometer um alexandrino, movido ao espírito de “Grants”. Alexandria que se cuidasse.
O som alto, como discotéque, contaminou a opinião do crítico Cláudio Willer. “Adorei. Parece Oito e Meio do Fellini”. Opinião compartilhada pelo crítico e poeta Floriano Martins. Mais adiante, uma discussão teórica: Nicomedes Arauz dizia que o soneto era uma fórmula dialética de uma maneira de pensar que se esgotou no final do século XVI, ao que Jorge Tufic, alma em pânico e flor, reagiu: “Never”. E foi cometer um alexandrino, movido ao espírito de “Grants”. Alexandria que se cuidasse.
Terra de grandes
poetas, o Amazonas, foi motivo de grande alegria rever Thiago de Mello e Luiz
Bacellar (cuja árvore genealógica remete ao Maranhão e como Thiago, em
Barreirinha, plantou o seu exílio tropical em Manaus) e conhecer pessoalmente
quem conhecia de livros, Anibal Beça, Astrid Cabral, Alencar e Silva e Alcides
Werk, que revolucionou as performances de poesia. Em pleno recital, atendeu o
celular, bateu papo e em seguida continuou o exercício verbal, como se nada
tivesse acontecido. Filho de Thiago de Mello, o compositor Manduka apareceu com
uma pergunta pronta: “Cadê meu amigo Haroldo Saboia?”. Expliquei: “Hoje é
vereador pelo PT em São Luís”.
Crítico da Zona Franca, o poeta e escritor Simão Pessoa ganhou a cena com seus deliciosos Manual do Canalha e Manual do Espada. Lembro-me de Paulo Mendes Campos: “São livros para serem lidos deitados num dia de chuva”. E o que dizer de Eliakin Rufino, poeta de Roraima, mix de rastafári budista em infusão de molho picante de boto-tucuxi, com sua maneira tropical de cantar poemas? Em meio a excessos, acudiu-me Neruda, depois de festival de tucunarés e pirarucus, no discurso a Farewell: “Yo lo digo, adiós”.
Crítico da Zona Franca, o poeta e escritor Simão Pessoa ganhou a cena com seus deliciosos Manual do Canalha e Manual do Espada. Lembro-me de Paulo Mendes Campos: “São livros para serem lidos deitados num dia de chuva”. E o que dizer de Eliakin Rufino, poeta de Roraima, mix de rastafári budista em infusão de molho picante de boto-tucuxi, com sua maneira tropical de cantar poemas? Em meio a excessos, acudiu-me Neruda, depois de festival de tucunarés e pirarucus, no discurso a Farewell: “Yo lo digo, adiós”.
Mas o que foi o 1º
Encontro Amazônico de Poesia Latino-Americana, realizado em Manaus? O
nascimento de um novo centro de irradiação poético-cultural tendo como teatro a
selva amazônica, pulmões do mundo, ao contrário do tradicional eixo Rio Sul e
outros congêneres? Uma maneira de repensar e estreitar a latinidad tão próxima
e tão distante, bem como sua contribuição à interação com outros mercados,
entre eles, o anglo-saxão e outros blocos, considerados de “primeiro-mundo”?
Estabelecer um projeto de uma nova cidadania poética universal a partir de uma
visão latino-américa? Tudo isso y unas cositas más. Já não se fazem mais guerrilheiros
como antigamente. E a luta agora é nos “fronts” do egoísmo e do orgulho
individual e das nações. Estamos mais pra Buda do que pra Che. Ainda assim vale
o slogan guevariano: “Não perder a ternura, jamais.”
A visita a Editora
Valer, com 83 títulos publicados (incluindo o volume Papéis Velhos, de nosso
Maranhão Sobrinho), todos eles bem vestidos em teor conteudístico e qualidade
gráfico-editorial, sugeriu-me a abertura regional de novos mercados para a
poesia. A propósito, fiquei honrado com o convite de Tenório Telles, seu
diretor editorial. Estimulado pelo poeta Luís Bacellar, quer tirar uma segunda
edição de A Paixão Segundo Alcântara, com fotos coloridas e atualizadas para
lançar em 2001, ano de Odisseia no espaço, de Kubrick. Foi o meu segundo livro
de poemas, escrito em 85, sobre os nossos barões assinalados e mísseis
teleguiados. Nesse tempo todo, apesar do risco gravitacional, a pomba do divino
continua dando de dez na Base Aeroespacial. Derrubou todos os eus
foguetes-caramurus. A poesia, penhorada, agradece.
Se é verdade que
aumentou o excesso de colesterol de muitos, não seria mentiroso afirmar que os
poetas, ali reunidos, no calor manauara, reafirmaram o compromisso
latino-americano e cantaram o amor e a vida. Na despedida, no hall do tropical,
o poeta Luciano Maia, autor de um belíssimo poema sobre o Jaguaribe, o seu rio
natal (além do escrevinhador de uma “Carta de Manaus”, subscrita por todos que
desconfiaram de sua aplicabilidade), ao ver que uma belíssima mulher ia ser
abalroada por um colega de latinidad, sobrestou-lhe o assalto erótico, com uma
tirada dos tempos de Padaria Espiritual, famoso bar, falecido, em Fortaleza:
“Ignorante, tu não tá vendo que essa mulher não é pra comer e sim pra olhar?
Parece a Virgem à paisana!”. A poesia estava lá, ao vivo e a cores. Inclusive
em carne e osso.
Em 2004, Thiago de Mello publica “Amazonas: no coração da
floresta encantada” (Cosac Naify), um livro infanto-juvenil em que são
recriadas algumas lendas do folclore da Amazônia: “O Calça-molhada” (a forma
humana adotada pelo boto vermelho), “Tucuxi dançarino” (o boto cinzento que se
transforma num caboclo pé-de-valsa e namorador), “O prêmio de Ajuricaba” (a
batalha do índio guerreiro contra o militar português Belchior Mendes),
“Curupira” (o nosso duende de pés pra trás), “O Mapinguari” (o bicho encantado
que defende as florestas e tem a boca no meio da barriga), “Iara” (a rainha das
águas) e “A Cobra-Grande” (uma espécie de anaconda descomunal e fantástica).
As
sete histórias reunidas no livro foram recontadas no registro de quem fala a
“língua” de um caboco suburucu enquanto que as ilustrações de Andrés Sandoval
traduzem a exuberância da paisagem e da vida amazônica. O livro traz ainda uma
curiosa biografia de pessoas e rios. Para crianças, pais e professores com
espírito de aventura, cineastas, ecologistas e futuros antropólogos, trata-se
de um presente dos deuses. Por que esse interesse súbito por uma literatura
voltada para o público infantil? Thiago de Mello se apressa a esclarecer.
“Voltei para o Brasil um ano antes da anistia (por isso fui
preso ao chegar, já sabia que ia ser preso) porque achava que estava ficando
doido”, recorda o poeta. “Atravessava a ponte sobre o rio Reno, entre Mainz e
Wiesbaden (cidade onde Dostoiévski escreveu O Jogador), e sentia cheiro de
pirarucu. Cheiro de pimenta-murupi. Sentia falta da fala, do canto, do jeito de
viver de minha gente. Bem, quando anunciei a minha decisão (que tomei ainda na
Europa), de que, ao regressar, ia morar na floresta, os amigos discordaram. Me
lembro do meu irmão Ênio, o editor Ênio Silveira, me advertindo:
– Mas lá ninguém lê. A tua voz, tua presença, têm mais
força, pesam mais é aqui no Sul.
Tratei de convencê-los:
– Não vou lá para ensinar. Quero e preciso ir é para
aprender com a floresta e com o povo que vive nela. Que é parte essencial da
floresta. Com as águas, os verdes, as estrelas, o chão onde nasci. Não quero
aprender só com os livros, as noticias dos jornais e dos satélites.
Fiz muito bem. Acertei. Daqui não saio, daqui ninguém me
tira, escrevo cantando. (Falta grave, não me lembro do autor da famosa
marchinha.) Já são seis os livros que a floresta me pediu para escrever,
falando da vida dela. Sem contar os de poemas, viajados pelos verdes. Como este
que o Manduka musicou e gravou:
Vento e verão, sol e silêncio,
sinto vontade de cantar.
Nuvens alvíssimas no vento,
eu não mereço tanta paz.
Na transparência a garça voa,
asa de luz quer me levar.
No meião fundo uma canoa
vai contra o vento atravessar.
Quem vem na proa é uma criança
que não se cansa de remar.
Crista de onda, minha esperança
brilha nas águas do Andirá.
No final dos anos 90, um dia me chegou um telex das Nações
Unidas, me convidando para integrar a comissão de notáveis, um grupo de
escritores dispostos a dar uma mão na roda do trabalho da Unicef pela vida das
crianças e adolescentes da América Latina. Respondi que sim, era um dever.
Mas disse na primeira reunião que notável para mim era a
criança magricela, barrigudinha de vermes e amebas, que treme na febre da
sezão, toma seu mingau de farinha d’água e acaba sobrevivendo, feliz da vida.
Éramos uns vinte, todos latino-americanos. Menos o José
Saramago, o único europeu. Com o colombiano Gabriel, o García Márquez, eram
dois Nobel na comissão. Gente de tudo quanto era canto deste mundo sofredor.
Até de Barreirinha. O Jorgenrique Adoum, do Equador, Arturo Corcuera, do Peru,
Benedetti, do Uruguai, Ernesto Sábato, da Argentina, Elena Poniatowska, do
México, a lista é grande.
Uma reunião por ano. Dez dias, de manhã e de tarde. Muito
trabalho. Sem honorários. Cada ano num país diferente. Ouvíamos o pessoal da
Unicef, que trazia o balanço do trabalho do ano. O saldo era sempre tristonho.
As ervas daninhas não se cansavam de crescer. Evasão de escola e de lar,
crianças vivendo na rua e comendo lixo, meninas fazendo a vida, doenças da
pobreza. A nós cabia, no final, fazer um manifesto. Muito bem escrito, chovendo
no molhado. Destinado a governantes, legisladores, juízes, ministros de
Educação e de Saúde, educadores, prefeitos, donos de fábricas, sindicatos. Será
que leram nosso alerta?
Participei, com o poeta Corcuera, da redação do manifesto do
último ano do século. Concluía assim:
“As crianças e adolescentes da América Latina não estão
esperando pelo novo milênio. O que faz tempo elas querem é a chegada do amor”.
O Saramago leu e disse, com seu timbre bonito, uma frase que
me ficou, de transparente fundura:
– Ó, Thiago! Tu sabes que amor é uma questão de cultura.
A comissão durou pouco, consciente de como ainda somos
pobres do respeito que merece quem chega a este mundo. Reuniu-se pela última
vez, 2005, na Espanha. A despedida foi do paraninfo Miguel de Unamuno, da
Universidad de Salamanca. Saramago nos comoveu. Jorginho Adoum contou de sua
meninice. Cardenal leu uma página do seu Cântico cósmico. Crianças cantaram.
Quando chegou minha vez, disse para elas a minha Cantiga quase de roda.
Na roda do mundo,
lá vai o menino,
na fronte uma
estrela,
no peito a esperança.
O mundo é tão grande
E os homens tão sós.
Caminham calados,
parecem feridos.
De pena, o menino
começa a cantar
pois sabe que os
homens,
embora se façam
de grandes, de
fortes,
no fundo carecem
de aurora e de
infância.
Na roda do mundo
lá vai o menino
rodando e cantando
cantigas que façam
o mundo mais manso
cantigas que deixem
a vida mais limpa,
cantigas que tornem
os homens mais crianças.
Estávamos no mesmo lugar, Salamanca, em que, ao fim da
Guerra Civil Espanhola, a beleza da dignidade humana alcançou um de seus
instantes mais grandiosos. Miguel de Unamuno, então reitor da Universidade,
proferia sua aula magna, quando teve a voz cortada pela ofensa do general
franquista Millan Astray:
– Abajo la inteligência! Viva la muerte!
O reitor respondeu com solene bravura:
– Acabo de ouvir um grito necrófilo. De um aleijado moral.
Esta casa é o templo da inteligência. E eu sou seu mais alto sacerdote. Para
servir à Vida.”
Em 2006, Thiago grava o CD “A Criação do Mundo”, musicados
por seu irmão, Gaudêncio Thiago de Mello (aí na foto, ao lado de Sharon Isbin), e recebe um novo trabalho da Global
Editora: produzir uma antologia de poetas da América Latina, escolhidos e
traduzidos por ele mesmo. No final daquele ano, Thiago vende a casa do Paraná
de Ramos para a Secretaria Estadual de Cultura (SEC) por um preço simbólico. Em
troca, a SEC se compromete a tombar o imóvel como bem patrimonial do Amazonas e
transformá-lo no “Memorial Thiago de Mello”, dedicado à vida e à obra do poeta.
Thiago de Mello se muda para a Ponta da Gaivota, na Freguesia do Andirá, mas
alguns meses depois também adquire um apartamento no centro de Manaus. É se
dividindo entre esses dois locais de pouso que ele vai finalizar o trabalho de
tradução acordado com a editora Global. Nesse meio tempo, entretanto, o poeta
ainda encontra fôlego para lançar mais um livro infanto-juvenil, “O Menino
Irmão das Águas”, que tem como pano de fundo a velha problemática amazônica.
“Cada um dos meus livros conta um pouco da vida do rio, dos
pássaros, dos animais e da própria floresta, o maior manancial de vida do
planeta, mas, sobretudo, do seu filho mais ilustre e tão abandonado, o homem, o
ribeirinho sofredor e o índio que cada vez é menos índio, de tão aculturado”,
diz ele. “Mostra a coragem, a sabedoria do caboclo, que aprende a linguagem do
vento e das estrelas, conhece as virtudes das árvores e da planta mais rasteirinha
do chão. A beleza das suas lendas. Mas também a crueldade da cobiça dos
poderosos que desmatam e incendeiam a mata sagrada. Antes, ao fim de uma
palestra ou recital em qualquer parte do mundo, eu pedia que cada um fizesse a
sua parte para preservar a floresta. Hoje eu digo que a floresta está pedindo
socorro, que é preciso salvá-la.
O painel de mudanças climáticas das Nações Unidas faz previsões feias sobre a vida amazônica. De todos esses livros, acho que o “Amazonas, Pátria da Água” prestou melhor serviço porque – ideia do Armando Nogueira, também filho da floresta – serviu de roteiro para um especial da Globo, com a minha locução, dirigido pelo querido Washington Novaes. Posso contar? Não é para me gabar, não, senhor. É para mostrar a virtude conscientizadora da linguagem simples e clara, que agrada. O Roberto Martinho viu o programa e me agradeceu: “Gostei muito da tua “Pátria da Água”. A minha empregada também”.
O painel de mudanças climáticas das Nações Unidas faz previsões feias sobre a vida amazônica. De todos esses livros, acho que o “Amazonas, Pátria da Água” prestou melhor serviço porque – ideia do Armando Nogueira, também filho da floresta – serviu de roteiro para um especial da Globo, com a minha locução, dirigido pelo querido Washington Novaes. Posso contar? Não é para me gabar, não, senhor. É para mostrar a virtude conscientizadora da linguagem simples e clara, que agrada. O Roberto Martinho viu o programa e me agradeceu: “Gostei muito da tua “Pátria da Água”. A minha empregada também”.
Então, para se tornar um escritor, primeiro tem que se ter
vocação de escrever, no caso de ficcionista. Para ser poeta é preciso nascer
poeta, tem de ter um dom. Depois é trabalhar, trabalhar e trabalhar. E cuidar
com amor da sua rica matéria-prima, o idioma. Saber a palavra exata para o que
quer dizer. E em países como o nosso, onde se lê ainda tão pouco, o escritor
deve ser capaz de uma linguagem cada dia mais acessível ao leitor comum, a um
número cada vez maior de pessoas.
Eu sou um escritor profissional. Gosto de escrever, sinto precisão. A prosa me apaixona (leio mais prosa do que versos). Estudo e me preparo bem para escrever sobre assunto que me exige a opinião. Para servir, quando sinto que não devo ficar calado. Para fazer a minha parte. E digo, perdão, é de um samba do Ary Barroso, “digo somente o que sinto”. Já o poema, ele é que me chama lá de dentro. Uma exigência. “Quando Deus é servido”, dizia o Bandeira. Que também escreveu que não acredita em poeta que na prosa parece cavaleiro desmontado. Sim, silêncio, não me chame, por delicadeza.
Eu sou um escritor profissional. Gosto de escrever, sinto precisão. A prosa me apaixona (leio mais prosa do que versos). Estudo e me preparo bem para escrever sobre assunto que me exige a opinião. Para servir, quando sinto que não devo ficar calado. Para fazer a minha parte. E digo, perdão, é de um samba do Ary Barroso, “digo somente o que sinto”. Já o poema, ele é que me chama lá de dentro. Uma exigência. “Quando Deus é servido”, dizia o Bandeira. Que também escreveu que não acredita em poeta que na prosa parece cavaleiro desmontado. Sim, silêncio, não me chame, por delicadeza.
Em 2010, convidado para participar da Feira Nacional do
Livro, em Ribeirão Preto (SP), o poeta foi questionado pela enésima vez porque
não se mudava de Barreirinha para uma cidade de maior expressão cultural, como
Rio de Janeiro ou São Paulo.
“Já é tarde para sair do coração da floresta, onde ficam as águas da minha infância”, explicou Thiago de Mello. “Sinto falta de tantas pessoas queridas que deixei lá no Atlântico, mas não moro mais na cidade de Barreirinha, que abandonei, faz alguns anos, dolorido e indignado. Ao regressar de uma longa temporada no exterior, encontro ofendidas e desfiguradas, na fisionomia e na alma, as belas casas inventadas pelo gênio de Lucio Costa.
Da principal, o Porantim, demoliram a biblioteca. Os seus livros sumiram, obras dos meus poetas foram utilizados nas fossas negras. Na outra, lá na frente do Paraná de Ramos, me contaram que de noite funciona um bordel. Perguntei a um funcionário da administração municipal se a informação procedia. “Procede”, ele me respondeu seco. Mas não abandonei Barreirinha. Mudei-me faz alguns anos para a Ponta da Gaivota, na Freguesia, uma comunidade municipal às margens do belo rio Andirá, que nasce nas terras dos índios Sateré-Maué e se entrega ao caudal do Amazonas.
Moro na linda casa (de vez em quando a televisão mostra) que também é dádiva do bondoso Lúcio Costa. Me reparto com Pollyanna entre os pássaros e o vento da silenciosa Freguesia e o ruído feioso da inculta Manaus e as numerosas idas a trabalho em tantos cantos do mundo que me chamam.”
“Já é tarde para sair do coração da floresta, onde ficam as águas da minha infância”, explicou Thiago de Mello. “Sinto falta de tantas pessoas queridas que deixei lá no Atlântico, mas não moro mais na cidade de Barreirinha, que abandonei, faz alguns anos, dolorido e indignado. Ao regressar de uma longa temporada no exterior, encontro ofendidas e desfiguradas, na fisionomia e na alma, as belas casas inventadas pelo gênio de Lucio Costa.
Da principal, o Porantim, demoliram a biblioteca. Os seus livros sumiram, obras dos meus poetas foram utilizados nas fossas negras. Na outra, lá na frente do Paraná de Ramos, me contaram que de noite funciona um bordel. Perguntei a um funcionário da administração municipal se a informação procedia. “Procede”, ele me respondeu seco. Mas não abandonei Barreirinha. Mudei-me faz alguns anos para a Ponta da Gaivota, na Freguesia, uma comunidade municipal às margens do belo rio Andirá, que nasce nas terras dos índios Sateré-Maué e se entrega ao caudal do Amazonas.
Moro na linda casa (de vez em quando a televisão mostra) que também é dádiva do bondoso Lúcio Costa. Me reparto com Pollyanna entre os pássaros e o vento da silenciosa Freguesia e o ruído feioso da inculta Manaus e as numerosas idas a trabalho em tantos cantos do mundo que me chamam.”
Em 2011, Thiago de Mello publicou o livro “Poetas da América
de Canto Castelhano” (Global Editora), em que selecionou, traduziu e redigiu as
notas explicativas para tornar mais compreensível determinados trechos dos
poemas e as circunstâncias em que foram escritos. O alentado volume de 495
páginas serviu para aproximar os brasileiros da poesia do resto do continente.
Thiago selecionou 119 poetas de 19 países, incluindo alguns dos nomes mais conhecidos e consagrados da poesia latino-americana, como José Martí (Cuba), Leopoldo Lugones (Argentina), Rubén Darío (Nicarágua), César Vallejo (Peru), Juana de Ibarbourrou (Uruguai) e José Asunción Silva (Colômbia), alguns dos mais notáveis do século 20, como Pablo Neruda, Vicente Huidobro, Gabriela Mistral e Nicanor Parra (Chile), Alfonsina Storni e Juan Gelman (Argentina), José Lezama Lima, Nicolás Guillén e Fina García Marruz (Cuba), José Emílio Pacheco (México) e Mário Benedetti (Uruguai), e autores menos conhecidos como Luís Alberto Crespo e Ida Gramko (Venezuela) e Margarito Cuéllar (México).
Em resumo, trata-se de uma seleção da melhor, mais variada e representativa poesia de nossa América espanhola, com as versões de um poeta continental e universal como Thiago de Mello.
Thiago selecionou 119 poetas de 19 países, incluindo alguns dos nomes mais conhecidos e consagrados da poesia latino-americana, como José Martí (Cuba), Leopoldo Lugones (Argentina), Rubén Darío (Nicarágua), César Vallejo (Peru), Juana de Ibarbourrou (Uruguai) e José Asunción Silva (Colômbia), alguns dos mais notáveis do século 20, como Pablo Neruda, Vicente Huidobro, Gabriela Mistral e Nicanor Parra (Chile), Alfonsina Storni e Juan Gelman (Argentina), José Lezama Lima, Nicolás Guillén e Fina García Marruz (Cuba), José Emílio Pacheco (México) e Mário Benedetti (Uruguai), e autores menos conhecidos como Luís Alberto Crespo e Ida Gramko (Venezuela) e Margarito Cuéllar (México).
Em resumo, trata-se de uma seleção da melhor, mais variada e representativa poesia de nossa América espanhola, com as versões de um poeta continental e universal como Thiago de Mello.
“Qual o segredo para uma boa tradução?...”, questiona,
divertido, o poeta de Barreirinha, um dos grandes mestres no ofício. E ele
próprio responde: “Não há segredo. Primeiro, é preciso amar o poeta. Segundo,
ter o gosto da tradução. O instrumento principal do tradutor é o rigoroso
conhecimento do seu próprio idioma. O domínio da língua do autor traduzido
conta muito, claro. Mas vem depois. O dicionário é indispensável.
Lembro que aos 20 anos o dicionário e o Otto Maria Carpeaux me ajudaram a fazer uma tradução aceitável – na opinião de meus tradutores alemães – de um longo trecho da “Ode ao Pão e ao Vinho” do excelso Hoelderlin. Tenho uma queda de amor pelos poetas latino-americanos. A tradução da obra completa do extraordinário peruano Cesar Vallejo fui levado a fazer por vê-lo tão desconhecido dos leitores brasileiros da poesia. Foi uma vantagem traduzir Neruda, Guillén, Benedetti (“Noción de Pátria”) e o maravilhoso desconhecido cubano Eliseo Diego (“Debaixo dos Astros”) porque trabalhei com os poetas ao meu lado.
Estou me lembrando de uma manhã na Isla Negra, defronte do Pacífico, eu traduzindo “Alturas de Machu Pichu” e, do outro lado da mesa, Neruda dava em espanhol a minha “Noticia da Manhã”. Traduzir é reinventar em outro idioma, outra música, a invenção original. Dá trabalho. Levei mais de dez anos para reunir, traduzidos, pela primeira vez no Brasil, poetas de todos os países da América Latina na antologia “Poetas da América de Canto Castelhano”, edição da Global do Luis Alves, pelas mãos cuidadosas do Quartim de Moraes. Mas valeu a pena.”
Lembro que aos 20 anos o dicionário e o Otto Maria Carpeaux me ajudaram a fazer uma tradução aceitável – na opinião de meus tradutores alemães – de um longo trecho da “Ode ao Pão e ao Vinho” do excelso Hoelderlin. Tenho uma queda de amor pelos poetas latino-americanos. A tradução da obra completa do extraordinário peruano Cesar Vallejo fui levado a fazer por vê-lo tão desconhecido dos leitores brasileiros da poesia. Foi uma vantagem traduzir Neruda, Guillén, Benedetti (“Noción de Pátria”) e o maravilhoso desconhecido cubano Eliseo Diego (“Debaixo dos Astros”) porque trabalhei com os poetas ao meu lado.
Estou me lembrando de uma manhã na Isla Negra, defronte do Pacífico, eu traduzindo “Alturas de Machu Pichu” e, do outro lado da mesa, Neruda dava em espanhol a minha “Noticia da Manhã”. Traduzir é reinventar em outro idioma, outra música, a invenção original. Dá trabalho. Levei mais de dez anos para reunir, traduzidos, pela primeira vez no Brasil, poetas de todos os países da América Latina na antologia “Poetas da América de Canto Castelhano”, edição da Global do Luis Alves, pelas mãos cuidadosas do Quartim de Moraes. Mas valeu a pena.”
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