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quarta-feira, novembro 29, 2017

Aposentadoria e privilégio


Por José Nêumanne

É tentador acreditar que o previsto e previsível malogro da reforma da Previdência nas atuais circunstâncias decorre da impopularidade do presidente Michel Temer. Como alguém com aprovação de 3% pretende acabar com direitos adquiridos de milhões de trabalhadores com uma penada só, pergunta-se com aquela empáfia própria de quem se sente dono da verdade. O buraco, entretanto, é muito mais embaixo.

Fernando Henrique, do PSDB, com a autoridade de quem ganhou a eleição no primeiro turno montado no corcel do Plano Real, arriado por sua equipe no Ministério da Fazenda do governo provisório de Itamar Franco, que foi vice de Collor, também tentou e conseguiu um arremedo menos que satisfatório para poder chamar de sua uma reforma saneadora e pioneira.

Quem tiver dúvidas a esse respeito leia o volume recém-lançado no qual compilou suas observações cotidianas e nelas se queixou do desempenho do relator do projeto que apadrinhava na Câmara, o então poderoso e hoje presidente da República Michel Temer. O tempo provou que os remendos obtidos à época passaram longe de encaminhar uma solução definitiva para o rombo nas contas provocado pelo déficit previdenciário.

Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, também fez uma tentativa e, com a autoridade histórica adquirida de sua anterior liderança sindical, obteve um pálido e tímido projeto que criou um sistema especial para o funcionalismo público, mas também não resolveu o problema. E atingiu uma situação definida como “ou faz agora ou vai ter de ser muito mais radical no futuro”. Falastrão, hipócrita e mendaz, como de hábito, o ex-presidente hoje se posta à frente das passeatas de “trabalhadores” ameaçados pela fúria reformista do “golpista”. Tudo lero-lero!

Depois da gestão desgraçada e desastrada do próprio Lula e de sua self-made woman Dilma Rousseff, o Brasil quebrado, com mais de 12 milhões de desempregados e contas públicas impagáveis que afundam o Orçamento federal num déficit previsível e, ainda assim inatingível, de R$ 159 bilhões no ano, a conclusão do ou “cede um pouco ou perde tudo” se torna cada vez mais urgente. Mas nem assim é possível prever uma conquista qualquer na busca desesperada do equilíbrio orçamentário.

No princípio dessa batalha eu disse ao microfone, diante das câmeras, no écran deste blog ou na tinta sobre papel do jornal que não há estratégia de comunicação que salve a reforma de Previdência no Congresso, por mais fisiológico e governista que este seja, se nessa reforma não vier um sério, profundo e rigoroso combate aos privilégios. A equipe que toma conta da comunicação no governo federal é indigente do ponto de vista do talento, do conhecimento e da criatividade. Os resultados a esperar de suas campanhas só podem situar-se abaixo de zero.

No entanto, uma visita à História recente é suficiente para ver que, da mesma forma mudanças no intocável sistema previdenciário são extremamente impopulares, a caça aos privilégios elege outsiders e afunda políticos comprometidos com privilégios, seja por gozá-los, seja por defendê-los.

Exemplo à mão é Fernando Collor de Mello, um obscuro governador de Alagoas que, depois de um programa na televisão, tornou-se um dos maiores fenômenos de popularidades da política brasileira. A ponto de derrotar numa só eleição líderes notórios como Ulysses Guimarães, o todo-poderoso multipresidente do PMDB, Mário Covas, o gestor mais que bem-sucedido das contas do maior e mais rico Estado da Federação, Luiz Inácio Lula da Silva, depois daquele hoje aparentemente distante pleito de 1989 o mais popular político profissional do País, e Leonel Brizola, um semideus do populismo de esquerda do pós-getulismo.

O “caçador de marajás” tornou-se um campeão da corrupção, como só acontece nessas campanhas de moralismo hipócrita, mas o tema do privilégio continua de pé. Pois o combate à corrupção da Lava Jato, os fartos exemplos de banditismo do PT, do PMDB e do PSDB, principais ocupantes do poder neste século, e os movimentos de rua entre 2013 e 2015 não mudaram a realidade nem o ódio popular que ela provoca, criando novos ídolos.

A questão passa ao largo de lendas urbanas como a inexistência do déficit previdenciário ou a anatemização automática dos aumentos de idade para se aposentar ou de contribuição para formar o capital da aposentadoria. Mas não sai do cerne da condição siamesa de reforma da Previdência e combate ao privilégio. Pelo simples fato de que continuam como dantes no “cartel” de Abrantes tanto os privilégios absurdos quanto os volumes impagáveis dos recursos necessários para remunerar o que os trabalhadores merecem quando param de trabalhar.

Acompanho agora notícias na televisão sobre absurdos de pensões e aposentadorias de políticos. A comparação é simples e dura: enquanto o Congresso se prepara para debater a proposta do governo de reforma da Previdência, que, se aprovada, estabelecerá uma idade mínima de 65 anos para a aposentadoria e exigirá 49 anos de contribuição para alguém receber o teto (R$ 5,5 mil) pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), pelo menos 30 políticos aposentados e com mandato acumulam ganhos que, em valores brutos, garantem a eles renda mensal de até R$ 64 mil.

O G1, portal da Globo, fez um levantamento sobre o pagamento de pensões a ex-governadores e de aposentadoria a ex-deputados e ex-senadores e cruzou as informações. Descobriu, por exemplo, que pelo menos 11 políticos acumulam ganhos por terem sido governadores e senadores e outros sete por terem sido governadores e deputados federais. Também identificou 12 políticos com mandato no Congresso (oito senadores e quatro deputados federais) que acumulam, além do salário de parlamentar, pensão como ex-governadores.

O acúmulo de pensões e aposentadorias (ou de salários e pensões) não é ilegal. Mas se aprovada da forma como foi enviada ao Congresso, a proposta de reforma da Previdência extinguirá o sistema de aposentadoria dos parlamentares, e eles terão de passar a contribuir para o INSS e a ficar sujeitos às mesmas regras e mesmos benefícios dos trabalhadores do setor privado. Se aprovada, essa regra valerá para os deputados e senadores eleitos após a reforma. Os atuais parlamentares e ex-parlamentares continuariam a receber em razão do chamado “direito adquirido”. Além disso, a reforma não impedirá o acúmulo de aposentadorias e pensões.

Para sair do exemplo fácil dos casos excepcionais é possível também agora trazer a prova mais acachapante de que o combate à reforma urgente e necessária não é feito pelo trabalhador que sua, paga muito e recebe pouco ao se aposentar, mas daqueles que passaram a ser chamados de “marajás” nos tempos do “carcará sanguinolento”. Oportuna reportagem de Adriana Fernandes e Idiana Tomazel, da Sucursal do Estado em Brasília, dá valiosa contribuição ao debate ao reproduzir nas páginas da Economia deste jornal que, se as normas da reforma tais como agora propostas pelo governo federal fossem levadas à prática, dois terços dos trabalhadores não seriam alcançados por elas.

Esse cálculo foi feito pelo consultor do Senado Pedro Nery. O economista usou como base os dados sobre o perfil de quem já está aposentado ou recebe outro benefício previdenciário. Segundo a reportagem citada, “o quadro mostra, portanto, que a grande maioria da população não seria atingida pelas mudanças que o governo tenta aprovar no Congresso Nacional na primeira semana de dezembro. Seriam alcançados pela reforma 34,6% dos trabalhadores”.

Apesar dessa evidência publicada num jornal de grande circulação, porém, as centrais sindicais e os partidos populistas de esquerda seguem arregimentando manifestações contra as mudanças nas ruas. E os deputados e senadores ainda se recusam a dar os três quintos dos votos necessários à aprovação da reforma, que não é apenas urgente e necessária, mas absolutamente indispensável. 

Pelo simples fato de que, caso a contabilidade não se torne racional, e logo, não haverá em futuro muito próximo dinheiro suficiente para pagar aposentadoria a ninguém, os que não serão atingidos pelas alterações, seja porque já estão aposentados, seja por fazerem parte dos tais dois terços que, mesmo ainda pleiteando suas aposentadorias, não são privilegiados como os 12 senadores ex-governadores citados ontem nos noticiários da GloboNews como recebedores de quinhões de até R$ 64 mil mensais (caso do peemedebista potiguar Garibaldi Alves). Ou dos R$ 52 mil por mês recebidos pelo petista acreano Jorge Viana, que se recusa a debater o tamanho de sua benesse, de vez que ela é legal. Pouco lhe importa que seja, porém, imoral. É isso.

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