Pesquisar este blog

quarta-feira, novembro 22, 2017

Poeira de Estrelas – Histórias de Boemia, Humor e Música (1)



Por Luiz Carlos Miele

Sempre pensei que as histórias que fazem parte deste livro divertiriam um pouco meus amigos de várias épocas, em várias situações: nas salas de aula, na hora do recreio, durante os ensaios, na beira do campo, nas mesas de bar, na saída da praia, no quarto de hóspedes, atrás das grades, depois da missa, na cama, na lama, no estúdio, no palco e na plateia.

Coloquei muitas delas nos shows, acrescidas de alguma fantasia e, esporadicamente, escrevi artigos para algumas revistas. Nunca pensei em escrever um livro, mas, de um tempo para cá, várias pessoas passaram a sugerir que as histórias fossem todas reunidas e publicadas. Quando as sugestões passaram do círculo familiar e das rodas dos amigos do fim de semana, achei que poderia arriscar.

Descobri como é difícil escapar das armadilhas do auto-elogio, e se ainda assim acontecer algum, peço desculpas. Não quis aceitar nenhuma ajuda de editores de texto profissionais, já que as histórias não têm a menor pretensão literária. Nem mesmo autobiográfica – embora, pelo adiantado da hora e da idade, seja inevitável que façam parte da narrativa algumas memórias do tempo em que “pena que a nossa televisão não seja a cores”.

Espero que sejam divertidas. Eu, pelo menos, me diverti muito enquanto relembrava algumas histórias. E só uma coisa me deixa muito chateado: é que a vida não tenha uma segunda edição.

A vida é um show, mas às vezes, nem tanto. Na verdade, comecei a minha vida em São Paulo, e o show no Rio de Janeiro. Acho que desde criança de colo, tive minha trajetória determinada, pois meu avô, ao convidar os parentes para a festa do meu segundo aniversário, escreveu no cartão: “lembrança do meu segundo ano de circo”.

Minhas aventuras infanto-juvenis no rádio e na TV já estavam escritas em outros capítulos desta despretensiosa narrativa, quando os editores sugeriram que o livro deveria ter uma cronologia por mínima que fosse. Assim, acho que posso começar pela minha chegada ao Rio de Janeiro.

Trabalhando na TV Continental, estreei meu show, que eu espero, ainda esteja em cartaz quando o livro for publicado.

De toda a equipe que veio de São Paulo para operar a recém-inaugurada TV Continental, creio que ninguém conseguiu receber os salários em dia; se é que alguém conseguiu receber algum salário. Era uma época de extrema dureza, morávamos seis em um quarto, as camas enfileiradas como num quartel. Sem o sargento, é verdade, mas também sem o rancho, café da manhã, almoço etc.

Eu odiava o Rio de Janeiro. Não via a menor graça em ficar enclausurado entre Laranjeiras e Catete, sem um tostão para ir conhecer Copacabana. Eu já sabia que Copacabana era “a princesinha do mar”, mas ainda não havia sido informado que “Ipanema era um estado de espírito” e nem estava preparado para responder que, em compensação, “em São Paulo se come melhor”, e outras bobagens daquela época.

Um dia, também não deu para pagar o tal quarto com as seis camas e assim fomos todos para lugar nenhum.

De repente, o José Miziara, ator e diretor dos primeiros teledramas da Continental, conseguiu um apartamento que tinha uma linda vista para o alto. Ou seja, era no andar térreo e a janela dava para o paredão do prédio vizinho, mas era um cinco estrelas para a época. Gentilmente (ou com dó), ele cedeu um espaço para mim e Roberto Maya, também ator e apresentador, cujo nome verdadeiro era Robert Clement Altman.

Descendente de alemães, seu tio era o querido Walter Foster, e ele, o Robert, era incapaz de perder a fleuma e a dignidade, mesmo quando em outra ocasião jogamos a roupa pela janela dos fundos de um hotelzinho na Lapa. Deixamos a mala e saímos tranquilamente pela portaria para pegar as roupas na rua de trás. Mas, para nossa surpresa, demos de cara com uma versão de Chão de estrelas. E as nossas roupas comuns dependuradas nos fios elétricos pareciam um estranho festival.

Não teve jeito, e voltamos para o quarto-e-sala do Miziara, que carinhosamente nos oferecia o espaço. Mas não havia camas. Dormíamos no chão, até que ele passou a receber inúmeros roteiros para serem encenados na TV. Bem, os roteiros tinham centenas de páginas, que passaram a nos servir de colchões, sendo que o melhor no qual eu dormi foi, sem dúvida, Sindicato de Ladrões, que nós corajosamente encenamos.

Miziara era o Marlon Brando; o Maya, o Karl Maden; e eu, o Lee. J. Cobb, quase o elenco original. Resolvida a questão da moradia, ficou faltando a da alimentação. Havia o restaurante Lamas, ainda no Largo do Machado, mas, depois de alguns meses sem receber, o garçom que bancava nossa comida, resolveu suspender essa regalia, inclusive porque foi despedido por isso mesmo. Salvou-nos então (às vezes) a perícia do Miziara na sinuca. A gente reunia os eventuais trocados até fazer um mínimo razoável para que ele pudesse desafiar os craques locais.

Miziara não era nenhum Toquinho ou Paulinho da Viola, mestres do violão e do taco, mas quebrava um galho. Então ficávamos eu e o Maya dormindo pelos bancos da sinuca, durante a madrugada. Caso o Miziara ganhasse, sopa, ou ainda o “picadinho iugoslavo”, espécie de pot-pourri de tudo que levasse carne no dia anterior. Se perdesse, sanduíche de mortadela (ótimo). Algum tempo depois, alguém (Daniel Filho?) usou essa situação como argumento de um filme.

O tempo foi passando, o Miziara foi se especializando na TV, e também em algumas vedetes da época, que ele passou a namorar, com sucesso. Sobrou para mim e para o Maya, que ficamos novamente com duas mãos na frente e duas atrás. Acabou o luxo de dormir em cima de grandes autores.

Houve uma época em que encaramos as tubulações que estavam sendo usadas para a construção do Aterro do Flamengo. No início, pensei em dormir na praia, mas um colega milionário como eu me avisou: “Na praia não, que eles levam o teu tênis.”

Até hoje não sei por que o Maya se recusava a aceitar aquelas acomodações, e ficava mais bravo ainda, porque eu conseguia repousar com a maior tranquilidade.

– Porra, como é que você consegue dormir nessa situação?

Acho que ele não gostava daquelas baratinhas d’água, que também ocupavam o domicílio.

Passado um tempo, apareceu um novo trabalho para nós. As dublagens dos seriados americanos.

Fazíamos vários personagens, e o único que dublava o ator protagonista era o Daniel Filho, que fazia O Último dos Moicanos.

E então chegamos ao nosso Waldorf Astoria. Daniel nos acolheu num apartamento em frente ao Antonio’s (que ainda não era o maior bar do Brasil). Um endereço nobre no Leblon, e tinha cinco quartos.

Ocupavam os luxuosos aposentos: Daniel, Hugo Carvana, eu, o Maya e um decorador e cenógrafo chamado Joel. Emocionados com aquela fartura de camas, tratamos logo de povoar aquele espaço.

Ruy Guerra, um dos gurus do Cinema Novo, estava sempre por lá. Havia feito um tremendo sucesso com o filme Os Cafajestes, do qual o Daniel participava. Assim, era normal que aspirantes ao sucesso procurassem o Daniel.

Por alguma razão, resolvemos concentrar nossas atenções no futuro das atrizes do nosso cinema, deixando para outros batalhadores da nossa cultura a incumbência de selecionar os elencos masculinos do cinema nacional.

Uma das coisas mais cafajestes que antecederam o Cinema Novo foi o “teste da índia Kalu”. Eu já tinha ouvido falar muito, mas nunca, até então, havia participado.

Uma incauta futura candidata à estrela ligou para o apartamento, para saber se estavam fazendo o tal teste para um próximo filme. Não sei quem deu o telefone, nem quem atendeu o próprio. Digamos que foi a comissão técnica. Avisada da importância do momento, pois estaria presente o célebre diretor americano Vincent Minelli (Minelli é quase Miele, ou não é?), a moça chegou rapidamente.

Um amigo nosso chamado Raul (o Raul Vovô, que depois se tornou personagem de Ipanema) fez as vezes do mordomo do diretor americano. Ele era alto, louro, de grande porte e estava mais bonito ainda, pois envergava a casaca do pai do Daniel, que havia encantado plateias como grande cantor de tangos. Bem, tudo que aquela garota esperava estava longe da figura de um louro de um metro e oitenta, de casaca, e que abriu a porta recebendo-a com um inglês impecável, que, aliás, tanto fazia, pois ela não falava uma palavra do idioma (também não era muito forte no nosso).

Introduzida no luxuoso apê, deparou com o Maya, o Hugo e o Daniel atarefadíssimos, com o script todo espalhado pelo chão, todos discutindo o roteiro do filme, enquanto um ridículo Minelli/Miele, de cachimbo e robe colorido, martelava a máquina de escrever. (O robe também fazia parte do acervo portenho do pai do Daniel.)

A situação era absolutamente verossímil para qualquer pessoa. Afinal, interpretando seus papéis, estavam ali alguns dos futuros melhores atores e diretores do Brasil.

Entusiasmada com o ambiente (e com o próprio roteiro do filme), nossa heroína se imaginou como a própria Kalu, a personagem principal. Como todo mundo sabe, Kalu, a Índia, deveria ter um corpo escultural e nada mais justo que a convidada para o teste, revelasse à produção as suas possibilidades físicas.

Ainda um pouco inibida, ela própria sugeriu um strip-tease, para o qual pediu uma música ambiente que liberasse um pouco mais a sua sensualidade. Imediatamente, Charles, o mordomo, foi chamado. Sentou-se elegantemente ao piano, ajeitou a casaca, como convém aos concertistas. Porém, infelizmente, além daquela ser a primeira vez na qual envergava uma casaca, era também a sua estreia ao piano, de maneira que a música tema, que serviu de fundo para aquela cena erótica, ficou restrita à execução de La Paloma, tocada com um dedo só.

De qualquer maneira, a índia era uma beleza e sua perfomance convenceu imediatamente um dos componentes da equipe de produção, que, num ímpeto cinematográfico, arrastou a índia para uma das nossas cinco tendas.

Terminada a sua primeira experiência com os bastidores da indústria cinematográfica nacional, Kalu dirigiu-se ao chuveiro para um banho revigorante. Quando, de repente, a cortina de plástico é afastada. É evidente que ela não conhecia Alfred Hitchcock e a famosa cena de Psicose, por isso não gritou imediatamente. Mas ficou indignada ao deparar com o nosso mordomo que, na ocasião, vestia apenas uma sunga e a parte de cima da casaca. Portava também um Martini, numa elegante bandeja, e ofereceu a bebida a ela, ainda com seu inglês irreparável.

– Do you like a drink, madam?

Ela não só entendeu, como não aceitou, e ainda saiu correndo porta afora, carregando as roupas, vestindo-se pelo caminho e gritando:

– Eu não vim aqui pra dar pro empregado de ninguém.

Bobagem dela.

O mordomo era muito mais bonito que todos nós, e depois, não foi nem original, pois todo mundo sabe que essa frase “eu não vim aqui pra dar pro empregado de ninguém” foi dita, pela primeira vez, em Hollywood por Doris Day.

Nenhum comentário: