Por Luiz Carlos Miele
Esse negócio de os amigos irem morrendo está ficando muito
chato. Já perdi tantos amigos que no los
puedo contar. Sei que a faixa de idade da minha turma abre para essas
possibilidades, mas não acho a menor graça nas generosas mentiras tipo: “Ah,
foi melhor assim, ele descansou.” Ou então “Deus sabe o que faz, ele está
melhor que a gente, aqui em baixo, nesse vale de lágrimas.”
Eu sei que também tenho que ir, mas vou sob protesto. Tanto
que já pedi para registrarem o meu epitáfio: “Aqui jaz, absolutamente contra a
vontade, Luiz Carlos d’Ugo Miele”. Mas não tem jeito. Temos nos encontrado
tanto na porta do cemitério que o Jaguar sugeriu que a gente abra logo uma
conta no botequim em frente, que é para pagar por mês.
Não sei se vocês sabem, mas, na cantina do São João
Baptista, dava para a gente tomar umas cervejas. Até que, num dos velórios ali
realizados, o insuperável Ronald de Chevalier, o Roniquito, foi expulso de uma
das capelas.
Vizinha da capela de um querido e famoso amigo, que também
tinha partido, a família não teve a paciência necessária para suportar o
emocionado estado etílico dele e sugeriu
com certa veemência que ele se retirasse. Enquanto era empurrado para
fora, o Roniquito deixou mais uma de suas declarações maravilhosas:
– Não empurra, não, que vocês não sabem com quem estão
falando. E muito respeito porque esse morto de vocês ninguém conhece. E o meu é
Vinicius de Moraes.
Um outro de Moraes muito querido mereceu, como homenagem
póstuma, o livro Antonio Evaristo de
Moraes Filho, preparado por seus amigos. Para minha surpresa, fui convidado
a escrever um dos capítulos, ao lado de figuras espetaculares da cultura e da
política nacional, como Élio Gaspari, Fernando Henrique Cardoso, Hélio
Fernandes, Técio Lins e Silva, José Serra e muito outros grandes nomes.
Curiosamente, fui rever o meu texto e reparei que ele vem
imediatamente antes do artigo de Luiz Inácio Lula da Silva, na ocasião
presidente de honra do Partido dos Trabalhadores. Na época, desejei boa sorte
àquele presidente, como desejo ao presidente de agora, que acho honestamente
que está precisando mais do que quando liderava a oposição. Seu próprio partido
parece tão fascinado quanto desconfortável com o poder. De qualquer maneira,
PT, saudações.
Com a devida autorização dos editores do livro, que lembra o
grande jurista, quero dividir aquela lembrança com vocês.
EVARISTO – O GOLEIRO
A inteligência, assim como a capacidade e o talento do
jurista Evaristo de Moraes Filho, estão sendo analisados nesta publicação por
figuras da maior relevância na vida cultural do país. Assim, foi com surpresa
que recebi o convite de Luís Guilherme Vieira e Ricardo Pereira Lima para
também participar deste livro.
Portanto, minha participação fica com certeza restrita (e
orgulhosa) a comentar sobre o amigo, o goleiro e o presidente do nosso querido
Clube dos Trinta, em que o advogado passava da tribuna brilhante para o modesto
gol das nossas peladas dos sábados e domingos.
As dimensões dos vários departamentos do nosso clube definem
bem, acredito, as diferentes intenções dos fins de semana. O campo de futebol,
de pequena metragem, suficiente para comportar seis jogadores de cada lado
(cinco na linha e um no gol – ele, Evaristo), uma piscina razoável e um bar
formidável, onde cabiam os quatro times dos nossos torneios.
Na época em que Evaristo era titular absoluto do gol, o
clube contava em seu quadro de sócios com vários outros titulares absolutos em
suas respectivas atividades. Armando Nogueira, Paulo Mendes Campos, Luís Carlos
Barreto, João Araújo, Thiago de Melo, Cláudio Melo e Sousa, esses dois últimos
também goleiros e poetas.
E as visitas eventuais de vários profissionais de futebol,
como Nilton Santos, proibido de chutar do meio-de-campo para frente, pois
juristas e poetas não estão ali no gol para ficar levando chutões menos
intelectuais mesmo que desferidos pela enciclopédia do futebol.
Estou citando aqui apenas alguns dos sócios, pois enumerar a
todos que fizeram ou fazem o Clube dos Trinta é trabalho para um outro livro.
Pois bem, foi nesse campo, ou nesse bar, que fiquei
conhecendo o Evaristo de Moraes Filho. No campo, a elegância, a absoluta impossibilidade
de agredir fisicamente algum amigo, e inclusive, a absoluta impossibilidade de
agredir alguém com a sua inteligência e cultura, durante uma discussão mais
acalorada, pois a democracia do futebol coloca todos no mesmo time, e frango é
frango, frangueiro é frangueiro, seja, poeta, jurista ou presidente do clube.
Todos nós nos acostumamos a ver crescer entre nós “os
meninos do Evaristo”: o Evaristinho, o Edu, o Renato. Das tardes na piscina
eles passaram para o campo, onde se tornaram craques como o pai, Evaristinho e
Edu, no meio-de-campo, Renato herdando as alegrias e tormentos do gol.
Evaristo parou de jogar para deixar os garotos à vontade,
pois há um certa inibição em fazer os gols no pai, inclusive por uma questão de
mesada. Os meninos do Evaristo transformaram-se nos Drs. Renato e Eduardo de
Moraes, advogados, e no Dr. Evaristo de Moraes Neto, médico.
Deixando o campo, Evaristo foi eleito, por absoluta
unanimidade, o presidente do nosso clube. Passávamos ali os fins de semana,
lembrando de suas defesas de mão trocada, que eram a sua especialidade no
futebol, e as suas defesas nas tribunas, que o consagram como um dos maiores
juristas de toda a história brasileira.
Mas, repito, esses capítulos são analisados pelas ilustres
personalidades cujos artigos representam a leitura prioritária desse livro, do
qual eu, esportivamente, participo.
Esportivamente voltando ao clube, e lá Evaristo permaneceu
compartilhando conosco nos fins de semana um simpático vinho branco, que ele
trazia de casa, já que a nossa adega não era tão sofisticada quanto a dele.
Creio que ele via com bons olhos minha amizade com seus
filhos e, durante muitas noites (e madrugadas), eu fui um pouco o “tio Miele”
nas primeiras incursões noturnas dos garotos. Hoje em dia, quando nos
encontramos, não sabemos bem quem toma conta de quem.
Mas voltávamos sempre aos deliciosos fins de semana na
companhia do velho, da qual fomos abruptamente afastados. Elegante, educado e
sóbrio, como em toda a sua carreira, ele nos poupou de dividir conosco e
aflição do mal que o levou e, somente ao notar sua ausência, foi que soube que
ele estava hospitalizado e que, mais do que isso, já há muitos anos enfrentava
a batalha com a doença.
Durante algumas peladas, o Evaristo no gol, eu e o Armando
Nogueira como zagueiros vivemos as emoções de uma defesa imbatível pelo menos
na amizade.
E peço emprestadas as palavras de um dos textos impecáveis
do Armando, que servem a qualquer um de nós, os que ainda estão e aqueles que
já deixaram o campo:
“No futebol, vivi tristezas, vivo alegrias, já chorei muito.
Às vezes rezo vendo a bola correr na grande área. Nem mesmo dos sentimentos
mais subalternos da alma humana, nem deles o futebol me tem poupado o coração.
Já tremi de medo, já odiei, já invejei. A paixão do futebol me tem pesado a
vida de tantas emoções que já não tenho o direito de me lastimar se um dia a
morte me queira surpreender no instante de um gol.”
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