Por Luiz Carlos Miele
Uma foto de que me orgulho muito é a que tenho ao lado de
Caymmi. Foi tirada durante uma gravação na TV. Ele, já com os sábios cabelos
brancos que lhe valeram o apelido de “Algodão”, eu ainda com barba e cabelos
escuros. Era a época do festival Abertura, realizado pela TV Globo e que eu
apresentava.
Para tornar a votação absolutamente democrática, o júri
contava com dez jurados. Cinco deles liderados por Aloysio de Oliveira e os
outros cinco sob a batuta de Diogo Pacheco.
Aloysio era parceiro de Tom Jobim (Dindi, Inútil paisagem, Fotografia e outras). Ex-fundador do
Bando da Lua, que foi com Carmem Miranda para os Estados Unidos, ex-marido de
Silvinha Telles, foi também o fundador do selo Elenco, que só gravava astros da
MPB, como Tom, Caymmi, Lucio Alves, Dick Farney etc.
Diogo Pacheco, mestre arranjador e regente, foi um dos
grandes colaboradores da Tropicália e era de talento e temperamento
revolucionários. Sua opinião, bem como a de seu grupo, contrastava
absolutamente com a opinião da “turma do Aloysio”, na qual estavam Sergio
Cabral e outros competentes tradicionalistas.
Logo na primeira noite de competição, as preferências se
anunciaram. Hermeto Paschoal apresentou-se com um porco vivo, que fazia parte
de seu arranjo, o que evidentemente lhe valeu uma nota muito baixa da turma do
lado de cá. Em compensação, Pery Ribeiro defendeu uma canção de Menescal &
Bôscoli. Considerada, é claro, “supercareta” pela vanguarda adversária. Se você
tirar um zero e um dez, sua média fica sendo cinco, não é mesmo?
Carlinhos Vergueiro, competente cantor-compositor, parceiro
tanto de Toquinho quanto de Adoniran Barbosa e Nélson Cavaquinho, e também
competente meio-campista do Pholiteama, na qual é responsável pelas principais
assistências que resultam nos gols de Chico Buarque, entrou pelo meio da área,
apresentou uma linda canção chamada Como
um ladrão, que não despertava polêmica para nenhuma das duas torcidas, fez
um gol de letra e ganhou o festival.
A cada noite, além da apresentação das músicas concorrentes,
Abertura apresentava o show de um grande nome da MPB. Jorge Ben fez o
espetáculo da primeira noite. Um dos shows da temporada foi o de Dorival
Caymmi. É difícil de acreditar, mas o gigante, o Buda Nagô, como diz nosso
ministro Gilberto Gil, estava preocupado com a reação do público:
– Miele, esse festival está muito cheio de novidade. Eles
adoraram aquela tal de Farofa-fá, o que é que vão achar das minhas canções?
Fiz uma aposta com ele e ganhei, é claro. Pedi para ele
entrar cantando apenas a primeira frase de “Ah, minha Mãe, minha Mãe Menininha”
e deixar o resto com a platéia. Não deu outra. Todo mundo cantou por ele e
junto com ele. E assim foi com a maioria das músicas de seu repertório.
Satisfeito com a recepção do público, na maioria garotada,
Caymmi atendeu a um convite meu para jantar na casa de um casal supersimpático,
que simplesmente adorava o mestre. Eram meus amigos de longa data e iriam
adorar recebê-lo.
O marido, Luiz Paduan, era o proprietário do restaurante
Paddock, tradicional em São Paulo, onde, além da excelente cozinha, havia
sempre a preocupação de boa música ao vivo, um bom piano de cauda etc. Depois
que eu consegui garantir a presença do ídolo, as preocupações do Luiz
aumentavam a cada dia da aproximação do jantar:
– Miele, quantas pessoas você acha que posso convidar? O que
é que eu vou mandar preparar para ele? Faço uma moqueca? Moqueca não. As da
Bahia devem ser melhores que as do meu chefe. Ele gosta de vinho ou de uísque?
Expliquei ao Luiz que o Caymmi era uma pessoa muito simples,
qualquer coisa ia ser muito bem-recebida. E fomos, eu, Aloysio de Oliveira,
Caymmi e Dora e Doralice e Marina e Anália e Mãe Menininha e Gabriela e
Adalgisa e tantas canções que o homem não anda sem elas.
Quando chegamos na porta do apartamento, toquei a campainha,
Luiz Paduan abriu a porta, maravilhado. Emocionado, não resistiu e deu aquele abraço
de fã no importante convidado. Quando conseguiu recuperar a fala, gritou lá
para dentro.
– Meu bemmm. Vem ver quem chegou.
É a vez de Leny Paduan, querida amiga, ficar emocionada. Tão
emocionada que errou de cantor:
– Meu Deus. Silvio Caldas, que prazer.
Pânico. Não geral, é claro, pois eu e Aloysio achamos a
maior graça. Mas o Paduan, o marido, esse ficou completamente desnorteado.
Pronto. Seu jantar iria por água abaixo. O que é que seus amigos iriam dizer? O
que é que ele ia dizer para o Caymmi? E mais ainda, imaginem o que é que ele
iria dizer para aquela mulher, a quem ele amou toda a vida e que agora fazia
aquela confusão?
Pressentindo a tragédia conjugal anunciada, Dorival Caymmi,
ídolo de gerações, unanimidade nacional, simplicidade em pessoa, mentindo
generosamente, tranquilizou dona Leny:
– Minha senhora, não se preocupe. Não é a primeira vez. Às
vezes me confundem com Silvio Caldas, às vezes com Di Cavalcanti. Mas eu não me
preocupo. Porque, não só pinto, como canto, melhor que os dois.
Grande Caymmi. Aliás, grandes Caymmis.
Evoé, Danilo e Nana. E Dori, todos cantores. Dona Stella é
dos amores. Tive a honra de dirigir no Metropolitan do Rio de Janeiro o show
com toda a família. Acompanhada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, com
arranjos e regência de Chiquinho de Moraes, ele também personagem inevitável
nas antologias da música brasileira, autor de tantos trabalhos importantes como
a Paulistania, de Billy Blanco, e de
tantas viagens musicais maravilhosas a bordo dos arranjos para Elis e Roberto
Carlos.
Nesse espetáculo com os Caymmi e a Sinfônica, lembro da
minha emoção ao perceber Fernanda Montenegro em lágrima na platéia. Tudo bem.
Eles que são grandes que se entendam. Mas, além de emocionantes, os ensaios
eram muito divertidos, por conta do bom humor de Danilo e do bom mau humor de
Nana e Dori.
Dori criou, junto com o maestro Edson Frederico, uma série
de apelidos que não posso publicar aqui, pois atingem toda a classe dos
cantores e compositores, e eu tenho que continuar trabalhando no ramo. Para
falar de dois dos mais amenos, cito Milton Nascimento e Roberto Menescal, que
Dori rebatizou de Milton Mais Cimento e Roberto Menos Cal. Os outros vocês vão
imaginando para se divertir.
Quando Dori e Ronaldo Bôscoli se encontravam não sobrava
para ninguém. Faziam um verdadeiro e divertido campeonato de maldades, só de
farra. Mas se você soubesse que era mais ou menos vulnerável, só ia embora do
bar junto com eles, e de preferência, deixava cada um na sua casa, separado do
outro.
Certa noite, no Chiko’s Bar, a dupla recebeu a valiosa
colaboração da Alcione. A Marrom era intocável e mais discreta nas suas
brincadeiras, e ficou por ali, só curtindo o infortúnio dos que tinham que ir
saindo mais cedo. Sobrou um. Ou melhor, sobrou para ele. Que sabia que não ia
escapar dos “elogios”, que bem merecia. Foi ficando na esperança de que os dois
fossem finalmente se recolher. Mas não teve jeito, o sol foi saindo, a vítima
finalmente capitulou, deixando, ao sair, uma frase que ficou famosa entre nós.
– OK, pessoal. Eu tentei resistir, mas não aguento mais de
sono. Eu vou dormir e seja o que Deus quiser.
Mas Dori não poupava nem mesmo a si próprio ou à família.
– Miele, meu pai não é brincadeira. O velho é o compositor
mais preguiçoso do Brasil. Ele levou 14 anos para fazer Maracangalha, que, como
todo mundo sabe, tem uma letra complicadíssima. Acho que foi por isso que
demorou. Presta atenção na divisão dos 14 anos. Nos primeiros 4 anos ele
escreveu: “Eu vou pra Maracangalha, eu vou, eu vou de chapéu de palha, eu vou.”
Parou dois anos. Fatigado, eu acho. Sexto ano. Nova inspiração. “Eu vou convidar
a Anália, eu vou, eu vou de uniforme branco, eu vou.” No sétimo ano, escreveu
de um fôlego só, “Se a Anália não quiser ir eu vou só, eu vou só, eu vou só. Se
a Anália não quiser ir, eu vou só, eu vou só, eu vou só, sem a Anália…” E nunca
mais escreveu nada. Sete anos depois, o Danilo lembrou: Pô papai, Maracangalha
estava ficando muito legal. Termina essa música. E ele terminou: “Mas eu vou”.
Brincadeira, é claro. Quantas das canções de Caymmi terão
sido feitas numa mesma noite de inspiração genial? Atenção, João Valentão, que
lá vem a baiana, olhando pro mar, que, quando quebra na praia, é bonito, é
bonito. Peguei um Ita no Norte, pra saber o que é que a baiana tem. Ah, baiana,
requebre que eu dou um doce, que o samba na minha terra deixa a gente mole. Só
louco, mesmo, pra não sentir saudades de Itapuã. Você já foi à Bahia? Então vá.
Pra saber que é doce morrer no mar.
Por isso (e por mais de cem músicas geniais), Tom Jobim
disse dele:
– Brincam com a preguiça de Dorival, mas, em compensação,
ele não tem nenhuma música feia.
Tom também não. Dele, Aracy de Almeida, a filósofa do
Encantado, disse em maravilhosa síntese:
– Antonio Carlos Jobim é uma pessoa que não resta a menor
dúvida.
E do Buda Nagô teria dito:
– Em matéria de maravilhoso, Dorival Caymmi pode dormir
sossegado.
E assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir para
sonhar…
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