Por Valentina
de Botas
Mas não
estamos agonizando desde que nascemos para viver nossas mil mortes? Abandonamos
o que não somos, deixando para trás mais um eu que não vingou. Foi o que pensei
quando me perguntaram se tenho medo da morte e o que faria se soubesse, hoje,
que este é meu último dia de vida.
Falar da
morte é mórbido demais para meu gosto. O assunto não me atrai. Não penso nisso
e a vida nunca me deixa sem assunto, embora me deixe sem palavras tantas vezes.
A idade vem chegando e vemos nosso corpo nos abandonando; para algumas pessoas,
a lucidez se depura, para outras, ela se extingue. Como Chico Anísio, não tenho
medo, mas pena.
Não é por
nada, não aspiro a ser exceção no ciclo natural de nascer-morrer e sei, claro,
que um dia acontecerá – e tudo bem, pois a imortalidade nos mataria de certo
modo –, só que, apesar de não ser nenhum broto (e usar essa palavra o
comprova), a ampulheta trapaceira e implacável estaria me roubando dezenas de
anos dos 100 que tramei viver, como alguns parentes.
No
centésimo aniversário de uma tia-avó, perguntei-lhe o que fazer para chegar
lúcida e saudável (o único modo a ser considerado) àquela idade. Nada, minha
filha. Mas ela se foi logo depois e não tenho como lhe perguntar se estou
fazendo nada direitinho.
Tá, sem
embromação: haveria chegado o último dos meus dias consumados na agenda do
Absoluto. O que eu faria? Primeiro, tentar lidar com o atordoamento da notícia.
Em alguns segundos, penso no amor. Tudo e todos que amei porque os amantes
estão sempre certos (ou vocês nunca ouviram “Amanda Amante”, do Roberto
Carlos?) e o que se opõe ao amor parece torná-lo longevo, resistente, teimoso,
imortal até.
Contudo,
penso no amor fraternal também. Talvez usar isso como álibi. Não, a coisa é
inegociável. Num mundo ríspido, o amor é emoliente e os amantes se buscam e
resgatam um ao outro do fundo do desencanto, sempre aspirando pelo presente
vivido a cada instante. Amar é este exercício de viver o presente – e, sem ser
pouco, o presente é tudo o que se tem.
O que
fazer? Pensei em Deus, em mim e o vazio entre mim e Ele que tentei vencer com
uma fé verdadeira, aquela com porções de dúvidas. Lembrei de “O Sétimo Selo”, a
obra-prima que acaba de completar 60 anos. Como poucos, Bergman palmilhou esse
território do vazio e da dúvida.
Embora com
passagens de comicidade improvável, como quando a Morte serra um galho de
árvore para levar um artista consigo, o filme é grandiloquente demais para quem
está lidando com o fato de que terá os olhos amarelos da Morte borrando o
último crepúsculo a ser testemunhado e, diferentemente do cavaleiro medieval,
Antonius Block, não jogo xadrez tão bem.
Nesse
jogo, Antonius tenta convencer a Morte de que os homens merecem viver mesmo
naquela idade média em que alguma muito ruim sempre estava acontecendo a alguém
muito feio. E era fácil ser feio num tempo em que se morria velho aos 30 anos.
No jogo de xadrez, o homem tenta lidar com a polpa bruta, a incognoscível, na
figuração mais famosa da morte no cinema.
Bergman é
ainda mais brilhante quando aborda outros vazios e solidões: aqueles entre pais
e filhos, entre irmãos, homens e mulheres. Nas relações humanas é que as
fraturas internas de cada indivíduo aparecem em feridas que, tantas vezes, são
a ponte instável, mas o único meio possível de aproximação. Exemplificam isso a
magnitude de “Fanny e Alexander” e a sublime corrosão de “Cenas de um
Casamento”.
Abandono
Bergman e vasculho na memória o que disseram poetas, filósofos, etc. Desisto
porque ninguém vai morrer a minha morte nem viver meu último dia, portanto tem
de ser do meu jeito e, então, constato: não sei.
Provavelmente
não teria tempo de me refazer do atordoamento da notícia, nem para consertar
erros, buscar perdões nem oferecê-los – o que, ademais, perderia toda a
importância, se é que ainda resetasse alguma. Dizer certas verdades para uns e
outros? Melhor não, pois posso ouvir verdades de que nem desconfiava ou, pior,
desconfiava, sim, e ter de partir para a eternidade com um barulho desses.
Deixa quieto. Afinal, tudo se relativiza; certezas – aquelas duas ou três
remanescentes que eu escondia atrás da lata de biscoito na última prateleira do
armário da cozinha – perdem os ossos. Beijar minha filha e dizer-lhe que a amo?
Faço isso todos os dias. Contar a ela? Isso me mataria. Contar à minha mãe?
Isso a mataria.
Concluo
que encaminharia providências práticas, como separar documentos, quanto ao
caráter pragmático da vida que segue para os que ficam e, então, decido reagir:
vou ligar para a Soraia, minha cabeleireira há mais de 20 anos, e suplicar por
um horário assim, em cima da hora. Se a minha urgência não for urgente, não sei
o que seria. Fazer as unhas, vestir minha melhor roupa como num rito, abrir
aquele vinho guardado na prateleira debaixo da pia, que esperava a ocasião
especial que tardou até se tornar desnecessária.
Pois eis
aí a ocasião: não esperaria sóbria por tal visita intrusa e, enquanto procuro o
saca-rolhas como quem busca o passaporte para uma viagem, entoarei minha última
oração – fazendo dela mais um lugar do que uma ação – em agradecimento a Deus
por tudo, lembrando a Ele que fui o mais fiel que pude à vida entendida como
dádiva, eu a celebrei no pouco e no muito; reconheço que a primeira parte foi
pedagógica, mas admito que gostei mais da segunda. Agradecerei sobretudo por
aquela garrafa de vinho que a Providência adiou.
Tenho
modos, sei que bons anfitriões não recebem visita embriagados, então beberei o
bastante somente para amolecer minhas eventuais resistências, simular
serenidade e tornar a visita interessante. Se eu puder fazer um último pedido
como diz a tradição, pedirei que a coisa seja leve e que não desmanche meu
penteado.
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