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quinta-feira, novembro 30, 2017

Poeira de Estrelas – Histórias de Boemia, Humor e Música (31)


Por Luiz Carlos Miele

Na inauguração da Sala Baden Powell, no Rio de Janeiro, vários shows foram realizados. Homenagens obrigatórias a um dos gigantes da música brasileira. Conheci Baden logo que vim para o Rio, na TV Continental, no programa Is e Rosana. “Is” era a marca de cigarros. Rosana Toledo, a cantora. Ótima e muito bonita, na linha da Maysa. Sua irmã, Maria Helena Toledo, era namorada de Luiz Bonfá, o que prova que as duas irmãs entendiam tudo de violões.

Estabelecemos, eu e Baden, uma razoável intimidade. Alguns anos depois, eu e Ronaldo produzimos o seu show. Estávamos em período de ensaios, no Teatro da Praia. Baden vinha de uma sofrida separação com sua mulher, Tereza, que, de musa inspiradora, virou alvo da revolta do Baden. Ele brigou do jeito que sabia. Com sua música.

Para não deixar dúvida, chamou letras talentosas do parceiro Paulo César Pinheiro e a primeira das composições dessa safra cheia de farpas. “Todo mundo se admira, da mancada que a Terezinha deu e deu no pira, sem levar um nada ter de seu. Ela não quis levar fé, na virada da maré, mas que malandro sou eu pra ficar dando colher de chá se eu não tive colher. Quá quá rá quá quá, quem riu, quá quá rá quá quá, fui eu.”

Durante os ensaios, Baden e Ronaldo foram alimentando a tese de vingança e resolveram colocar no show o título de Trator na margarida. Achei que era um pouco demais e, quando os dois se distraíram, coloquei o título Baden é de lei.

Ronaldo ainda produziu sozinho outros espetáculos dele e nos encontramos novamente em Vivendo Vinicius, que foi realizado inicialmente no Metropolitan, com o poetinha recebendo as homenagens dos parceirinhos queridos, Baden, Toquinho, Carlinhos Lyra e Tom Jobim. Esse, nas vozes de Miúcha e Leila Pinheiro. Baden tinha agora, como esposa e guardiã, Silvia, que lhe deu os dois filhos maravilhosos, Marcel e Phillipe, herdeiros do talento do pai, no violão e no piano.

Os dois me convidaram para a apresentação dos shows que citei no início desse texto. Artistas como Alcione, Wanda Sá e muitos outros faziam parte dos convidados das três noites de espetáculo. Sempre ao lado dos “meninos” do Baden.

Na primeira noite, eu na vez de mestre-de-cerimônias do evento, Marcel, no palco, me convida:

– Ô Miele, manda aí o Refém da solidão. Depois a gente faz Lapinha para encerrar.

No canto do cenário, havia uma enorme foto do Baden, cujo olhar apontava diretamente para o centro do palco. Como se fosse dizer para mim:

“Miele, vê bem o que é que você vai aprontar com a minha música.”

Falei dessa preocupação com os garotos, mas eles me “carregaram no colo” com o acompanhamento e eu cheguei são e salvo ao fim das músicas. Agora, eles fazem parte de vários projetos que eu ando sonhando. Afinal, é importante para mim saber que eu estou trabalhando com os filhos de artistas maravilhosos que eu tive a honra de produzir.

Nesses shows de homenagem ao Baden, cantei também com a Carol Saboya, filha do Antonio Adolfo, com quem gravei uma canção infantil quando ela tinha 9 anos de idade. E espero que seja assim com o Jairzinho de Oliveira, Luciana Mello, Pedro Camargo Mariano e agora Maria Rita, a cujos shows fui assistir emocionado.

Bom, com o netinho da Elis acho que não vai dar mais tempo para show juntos, não. Mas com Simoninha deu. Fizemos já três apresentações, no Rio e em São Paulo, e é muito divertido. Claro que o tema do show é o relacionamento profissional (e pessoal) que eu tive com seu pai, Wilson Simonal.

Além dos sucessos de seu repertório atual, Simoninha relembra os grandes sucessos do “velho”: Vesti azul, Meu limão, meu limoeiro, Mamãe passou açúcar em mim, País tropical, Minha namorada etc. Durante o show, Simoninha me chama carinhosamente de “tio Miele”. É melhor do que vovô, não é mesmo? E vamos lembrando um pouco das aventuras do artista que uma noite regeu “o maior coral do mundo”, no Maracanãzinho, quando, com sua habitual irreverência e domínio absoluto do público, comandou:

– Agora, só os quinze mil do lado de cá. Depois os 15 mil do lado de lá.

Eram 30 mil pessoas que lotavam o estádio, aguardando o show de Sergio Mendes, que voltava consagrado dos Estados Unidos e, inadvertidamente, convidou Simonal para “abrir” o show. Pois ele abriu e quase fechou. Sergio teve que esperar um bom tempo, até a rapaziada sossegar e ele poder se apresentar.

Fizemos muitos espetáculos juntos até a tragédia artística e pessoal que ele sofreu. Recentemente, seus filhos prepararam uma primorosa caixa especial com várias das inúmeras gravações de uma carreira extraordinária, no Brasil e no exterior, prematuramente encurtada por uma série de acontecimentos nebulosos.

O trabalho de Simoninha e Max resgata (em parte) essa carreira, o que as autoridades brasileiras se preparam também para fazer, com justiça. Na época do processo, “um processo sem réu” na opinião do juiz responsável, pois nunca houve uma acusação formal contra Wilson Simonal, eu fui solicitado a dar um depoimento sobre o mesmo, assim como Chico Anysio, a cuja reputação o Brasil deve grande respeito.

Meu depoimento:

À Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH OAB),

Atendendo à solicitação do Dr. Antônio Ribeiro Romanelli, venho dar o meu testemunho sobre o processo de reabilitação moral do cantor Wilson Simonal (proc. 01/2002/cndh protocolo 595/2002).

Prezados senhores,

Não pretendo fazer nenhuma literatura com relação ao meu depoimento sobre o resgate da memória de Wilson Simonal.

Acredito que a simples citação dos momentos profissionais e pessoais de nossa convivência bastem para definir a minha opinião o artista e o homem.

Durante os anos 60, eu e Ronaldo Bôscoli nos tornamos os produtores dos espetáculos que tornaram famoso o Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, onde foram revelados, entra tantos artistas, Elis Regina, Sergio Mendes, Leny Andrade, Trio & Tambo, Luiz Carlos Vinhas e a maioria dos instrumentistas que deram início ao movimento da Bossa Nova, hoje reconhecido internacionalmente.

Simonal era crooner de boates como Drink e Top Club. Impressionados com o seu sucesso na noite, fomos convidá-lo para estrear um show. Ele era a estrela principal, claro. Foram dois shows, o primeiro deles em companhia da atriz Darlene Glória, e, no segundo, já estabelecido como grande atração, Simonal lançou a cantora Rosa Maria. Os shows tiveram a participação do Bossa 3, formado por Luiz Carlos Vinhas, Otavio Baily e Ronye Mesquita.

Em pouco tempo, Simonal tornou-se um dos artistas queridos do Beco da Garrafas. Assim como os demais artistas que serão aqui citados, dentre as pessoas que ainda estão entre nós, todos os testemunhos podem ser facilmente identificados.

O Beco das Garrafas ficou pequeno para Simonal. Fomos para o Teatro Santa Rosa, onde produzimos (Miele & Bôscoli… sempre!!!) o primeiro show de MPB apresentado em teatro, com roteiro e textos especiais. Além do Bossa 3, a bailarina Marly Tavares completava o elenco.

Nesse espetáculo Simonal, além de cantar, fazia várias imitações, contava piadas, enfim, era o início da sua afirmação como grande showman. Em pouco tempo foi contratado pela TV Tupi para apresentar o programa Spot Light, dirigido por Aberlado Figueiredo.

Depois, veio a TV Record, onde passou a liderar o programa Show em Simonal num momento em que os movimentos musicais no Brasil tinham suas tribos absolutamente separadas, como o samba de raiz, a Bossa Nova, a Tropicália, a Jovem Guarda. O show de Simonal era absolutamente aberto a todas as vertentes da melhor música popular, dos Vips a Nara Leão e a Ciro Monteiro. Sem preconceito. Nem mesmo o preconceito musical.

Simonal tornou-se, então, um dos maiores cartazes do Brasil, dividindo o primeiro lugar entre os cantores com Roberto Carlos. Já durante a fase de grande sucesso, depois de um ensaio, ele me chamou para irmos a uma sauna. E partimos para a sauna Leblon, que ele não conhecia. Quando chegamos, houve uma grande correria, tanto de funcionários quanto dos clientes.

Afinal, na semana anterior, Simonal havia feito um sucesso extraordinário no Maracanãzinho, ao reger o que a imprensa chamou de “o maior coral do mundo”, quando 30 mil pessoas cantaram com ele o “Meu limão, meu limoeiro”.

Portanto, naquela tarde na sauna, Wilson Simonal de Castro foi recebido como um rei. Autógrafos, fotografias ao lado dos funcionários etc. Depois de observar detalhadamente o imóvel onde a sauna estava localizada, ele perguntou:

“Miele, qual é o endereço daqui?”

“Rua Carlos Góes, 84”, respondi:

“Miele, minha mãe foi cozinheira da família que morava aqui, e como eles não admitiam empregada com filhos, enquanto a família estava à mesa, almoçando, ela fazia um prato para mim e colocava no fundo do quintal. Eu pulava o muro, almoçava escondido e pulava o muro de volta para minha dureza.”

É evidente que a mudança de situações serviu para desenvolver uma série de conflitos na personalidade de Wilson Simonal. Na ocasião em que foi roubado por um dos contadores do seu escritório (contador que confessou o roubo na polícia), Simonal, em lugar de recorrer às providências oficiais, aceitou a sugestão de dois policiais, dos muitos que frequentavam as boates onde fazíamos os nossos shows.

“Simonal, deixa que a gente dá um aperto nele e ele entrega tudo…” Assim foi feito, assim o fato veio a público. Simonal foi detido e acredito que, em um de seus momentos de ingênua soberba, teria afirmado nada temer, pois tinha apoio e relacionamento com as autoridades que dominavam o país, todas elas fãs de seu talento. Num momento em que muitos artistas exerciam uma grande militância política, sofrendo por isso pesadas repressões, a atitude de Simonal foi considerada um verdadeiro ato de traição. O que lhe valeu o banimento do meio artístico.

Essa é a versão que eu conheço e na qual acredito, como, aliás, passaram a acreditar vários de seus acusadores e órgãos de imprensa, depois que Simonal amargou anos de exílio pessoal e profissional que culminaram com a sua morte.

É da profissão dos diretores de espetáculos definir o comportamento, atitude e caráter dos personagens que dirige. É inevitável que esse trabalho nos leve à apreciação da sensibilidade do homem que vive o personagem. E eu, e os outros profissionais citados nesse depoimento, não podemos ter nos enganado todos em relação a WILSON SIMONAL.

Atenciosamente,

Luiz Carlos Miele.

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