Por Luiz Carlos Miele
Algumas semanas antes da estréia do Brasil na Copa do Mundo
da Espanha, Armando Nogueira, que acumulava as funções de melhor cronista
esportivo do Brasil e diretor de jornalismo da Rede Globo, me convidou para
fazer uma matéria com Pelé para o Globo Esporte. Ele queria um enfoque
diferente do habitual, com uma abordagem que tivesse alguns momentos de humor.
Naquele tempo, eu fazia também a produção do evento
Profissionais do Ano, no qual a Globo premiava os craques da propaganda
brasileira. Ao lado de Aloysio Legey e Nilton Travesso, foi criado o tema do
show, do qual participavam vários artistas e personalidades, que emprestavam
seus nomes famosos a diversos produtores. Walmor Chagas com a Kibom, Dina Sfat
(maravilhosa) com o Tang etc.
Pelé estava presente, é claro, com Vitasay. Assim, liguei
para o rei para fazer os dois convites:
– Alô, seu Edson. Aqui é o Miele, precisamos do Pelé em dois
eventos que vamos realizar aqui na Rede Globo.
– Ok, Miele. Alguns deles têm mais importância pessoal para
você?…
– Bom, Pelé. O show dos profissionais do ano é uma produção
do departamento comercial. A entrevista para o Globo Esporte tem o fato de que
é uma tentativa de lançar uma participação minha em uma nova atividade.
– Tá legal. Então, para a história da propaganda, eu vou te
dar o telefone do meu empresário. Com relação à entrevista, diga a hora e a
roupa, que estamos aí.
E assim partimos para a entrevista. Tinha que ser no campo
do Santos, na Vila Belmiro, na parte da manhã. À noite, ele ia partir para um
compromisso na China, como parte da mais estranha agenda que eu já vi: Santos,
Hong Kong, Uberlândia, Nova York, Santa Catarina. E começamos a gravação que
resultou numa matéria maravilhosa sobre a seleção brasileira.
Ele no gol, eu chutando os pênaltis, ele dava a opinião
sobre quem deveria ser o batedor oficial do Brasil. Durante esse momento da
gravação dos pênaltis, eu chutei cinco, ele pegou três. Depois, eu no gol, ele
chutando. E dando a opinião sobre quem deveria ser o goleiro titular do Brasil.
Curiosamente, nessa fase em que ele cobrava os pênaltis, eu não peguei nenhum.
Depois, nós dois (mais ele, é claro) fazendo ginástica. E
então ele comentava a importância da preparação física. Depois, eu tentando
controlar a bola “sem deixar cair”. Então Pelé dizia se preferia o centroavante
habilidoso ou o trombador. E assim por diante, com opiniões sobre o técnico
etc. Terminávamos os dois no chuveiro, ensaboados. E então, eu dizia:
– Pelé, caiu meu sabonete, aí pertinho de você. Dá pra
apanhar?
– Miele, a primeira coisa que você tem que aprender no
futebol, é que ninguém se abaixa no chuveiro para apanhar sabonete.
Em matéria de esporte, a matéria ficou inédita e
espetacular, talvez um pouco boa demais, e incomodou alguém lá na direção do
departamento. Como o Armando já estava na Espanha, não houve ninguém para me
defender, e o material foi arquivado e desapareceu. Pena. Mas a ida a Santos
valeu. Democraticamente, o rei proclamou:
– Traz a Anita, que eu mesmo vou fazer um churrasco.
Na saída da Vila Belmiro, ele pediu que eu fosse na frente,
para a casa dele, pois ainda tinha de passar no dentista para um acerto
qualquer, antes da tal viagem para a China. Argumentei que não ia achar a casa
dele, ali em Santos.
– Meu motorista leva você e eu vou até o dentista com o seu
carro.
Pronto, criou-se uma situação. Meu carro era um humilde
Karmann Ghia TC. Todo original, um carro de coleção, mas nada que pudesse se
parecer com a carruagem real.
– Não tem problema não, Miele. Eu vou nesse. Numa boa.
E sentou-se ao volante. Enquanto se preparava para ligar o
carro, passou o bêbado personagem do bairro. Ele, que havia visto crescer para
a fama mundial o garoto que morava em companhia de Coutinho, na pensão em
frente ao clube, desconfiou. Vai ver que o rei ia ao encontro de algum amor
clandestino e não queria ser reconhecido. Ninguém ia acreditar no jogador mais
famoso do mundo ao volante daquele modelo.
Com a intimidade e a impunidade que a vizinhança com a vila
famosa lhe conferia, abaixou-se para ficar no nível da janela do carro e
bradou:
– Disfarçado, hein, negão?
Pelé riu e foi em frente. E eu e Anita fomos no seu carro
para aguardá-lo em sua casa. E conhecer a impressionante galeria de troféus.
Na época em que eu conheci a coleção, há mais de vinte anos,
ela tinha cinco mil peças, todas as camisas campeãs, as taças, é claro, e todos
os troféus comuns a um campeão. Mas também as mais humildes homenagens. De
toscas esculturas em madeira feitas pelos mais humildes fãs até as espadas
cravejadas de pedras preciosas, tiaras, cetros oferecidos por invejosos reis
anônimos. Ou honrarias que lhe foram destinadas por presidentes e governantes
sem a mesma majestade. Foi um privilégio presenciar várias manifestações das
diferentes cortes de Pelé, em todo o mundo.
Quando eu era diretor de eventos do Metropolitan, a
magnífica casa de espetáculos de Ricardo Amaral, Pelé queria ver o show da
Blitz. Para evitar que sua chegada criasse algum tumulto, pedi para ele esperar
até as luzes se apagarem, quando então o levaríamos para um dos camarotes. Mas
não houve jeito. Alguém, na galera, acusou a sua presença e o público começou a
gritar o seu nome.
Nesse tipo de espetáculo rock pop, as mesas são todas
retiradas da platéia, o público fica todo em pé. Em pé, pulando e gritando:
“Pelé, Pelé, Pelé”, que também já era uma boa desculpa para uma zoeira.
Acendemos as luzes, ele acenou para a rapaziada do alto dos camarotes e a turma
mudou o refrão: “Pula, pula, pula”, numa demonstração bem divertida e
carinhosa.
Acalmados os ânimos, já com o show iniciado, ele me fez uma
confidência:
– Sabe o que mais me emociona? É que toda essa garotada que
está aí gritando o meu nome, provavelmente quase nenhum me viu jogar.
Noutra ocasião, na Espanha, Pelé como embaixador do Brasil,
a Embratur, com João Dória na presidência, participava de uma convenção internacional.
Pelé daria várias entrevistas coletivas em toda a Europa, e eu fui escalado
para participar como mestre de cerimônias, com a função de limitar as
perguntas.
O momento mais importante da viagem era o encontro no
Palácio Imperial com o rei Juan Carlos. Na noite anterior, o cerimonial reuniu
todos os representantes da imprensa brasileira que iriam cobrir o
acontecimento.
A preocupação principal era a de não permitir de maneira
nenhuma qualquer pergunta relacionada ao “título” do rei Pelé. Vocês não podem
chamar o Pelé de rei em nenhum momento, na presença do rei da Espanha. Nem
fazer comentários tipo “Encontro dos reis” etc.
Essas recomendações foram exaustivamente repetidas até
momentos antes da chegada de Don Juan Carlos de Bourbon. Anunciada a presença
real, Pelé estende a mão respeitosamente e Don Juan, que estudou a caminho em
Coimbra, diz sorrindo, em português:
– De um rei para outro, como estás, Pelé?
Na noite seguinte, programaram, para depois da entrevista,
uma visita à mais tradicional casa de música flamenca de Madri. Avisado de que
o espetáculo já havia começado, Pelé não queria ir de jeito nenhum, e foi um
custo convencê-lo.
– Gente, já começou. Não vai dar certo chegar depois do
início do show.
A modéstia o impedia de antecipar o que iria acontecer.
Assim que ele colocou os pés no salão, o espetáculo teve que ser interrompido.
Havia uma grande quantidade de turistas, e quando Pelé entrou a correria foi
geral. Aliás, geral e arquibancada.
A estrela, uma espécie de Elizete Cardoso da Espanha, fez
uma severa advertência ao público, dizendo saber que ali estava o atleta do
século, mas que ela também era uma artista de respeito e exigia a atenção da
seleta audiência. Se bem que a seleta audiência, àquela altura, não passava de
uma barulhenta torcida organizada.
Serenados os ânimos, depois de muitos pedidos de Pelé, o
show prosseguiu mais ou menos em ordem. O que não impedia que, de vez em
quando, um japonês viesse rastejando pelo chão, puxar a barra da calça do rei,
para pedir o autógrafo.
No fim do espetáculo, convencida de que era melhor aproveita
a ocasião, em vez de reclamar, a estrela do show, em lugar de ir para os
camarins, pulou do palco e veio para a galera, pedir ela também autógrafo do
dono do show daquela noite.
De Madri fomos para Londres, onde a imprensa publicou uma
foto de um jogo entre o Brasil e Inglaterra, em que Pelé e Bob Moore, na
disputa da bola, seguram cada um a manga da camisa do outro, com a maior
delicadeza, como convém a dois gentlemen do futebol. Mandamos a foto para o
Armando Nogueira e fomos para a exposição de turismo, para novas entrevistas.
O Brasil concorria com stands de alta tecnologia, montados
pela Suíça, pelos Estado Unidos etc. Mas Abel Gomes, grande cenógrafo
brasileiro, montou um botequim carioca. Na Europa, ninguém resistiu.
Caipirinhas, samba e autógrafos do Pelé, o Brasil ganhou disparado.
Nos Estados Unidos, onde Pelé inventou o futebol, havia no
prédio da Warner todo um andar reservado para ele. Depois que parou de jogar,
como continuava a participar de parte das promoções da companhia, devolveu o
andar e continuou com um escritório mais modesto, igual ao de seu vizinho,
Robert Redford. O qual, desavisado, colocou a cara na porta e convidou:
– Hei, Pelé, let’s have a capuccino.
E desceram para a rua. Robert queria mostrar a matéria de
uma revista, que falava sobre seu próximo filme.
No trajeto entre o prédio da Warner e o café da esquina,
pediram onze autógrafos para Pelé e dois para Robert Redford. Desesperado, o
astro jogou a revista no peito do Pelé, enquanto gritava numa desesperada
mistura e idiomas:
– Vai ser famoso assim lá em go to hell.
Depois Pelé, gravou uma entrevista para um programa que fiz
na Manchete, na qual perdeu horas para que dessem certo os truques do
videoteipe que permitiram que eu entrevistasse, ao mesmo tempo, Pelé e o seu
personagem, Pedro Mico, que ele interpretou no cinema. Quer dizer, de uma
maneira ou outra, eu sempre bati uma bolinha com ele.
Bom, eu não quero contar nenhuma vantagem com respeito à
minha atuação na pelada em que joguei ao lado do rapaz. Deixo para vocês uma
nota publicada por Carlos Leonam no Jornal dos Sports:
“O showman Luiz Carlos Miele realizou um dos sonhos de sua
vida, ao participar, no fim de semana, de uma pelada ao lado de Pelé.
Emocionado, foi dormir realizado, e teve um sonho, no qual Galvão Bueno narrava
assim um jogo da seleção brasileira: ‘Bola com Miele que domina com grande
categoria. Passa por dois argentinos e entrega em profundidade para Pelé, que
não consegue dominar o balão, que sobra para o zagueiro alemão que enche o pé
para a frente. Miele mata no peito, aplica um lençol no lateral inglês e centra
na medida para Pelé. Pelé tropeça na bola, mas se recupera a tempo e devolve
para Miele, Miele para Pelé novamente, Pelé para Miele, vai sair a tabelinha,
Miele para Pelé… Não entendeu Pelé’.
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