Alberico, Miele e Bôscoli
Por Luiz Carlos Miele
Conta a lenda que no beco localizado na rua Duvivier, no Rio de Janeiro, entre a avenida Atlântica e a avenida Nossa Senhora de Copacabana, as garrafas voavam dos apartamentos por causa do barulho feito pelos frequentadores das quatros boates ali localizadas. Por isso, o beco foi chamado Beco das Garrafas.
Quando eu cheguei de São Paulo, das quatro boates, três delas apresentavam músicas brasileiras e jazz: Bottle’s Bar, Little Club e Bacarat. A quarta boate era a Ma Griffe, que operava com mulheres que nunca cheguei a saber se eram bonitas ou feias, pois, em primeiro lugar, não tínhamos a grana necessária para conferir o talento das moças. E depois, porque só pensávamos em música.
O Bottle’s, assim como o Little Club, pertencia aos irmãos Campana, Alberico e Giovani. Eram anteriormente garçons, que vieram da Itália para descobrir o Brasil. Eram oriundos de Ascoli Piceno e chegaram ao Rio tipo “o poderoso chefão”, como o menino da cidade de Corleone.
Não tinham onde morar, nem trabalhar, dormiram nos bancos da praça Mauá, onde a grande legião de conterrâneos seus (mais ou menos quatro ou cinco rapazes) se reunia. Quando chegaram, acreditavam que iriam encontrar emprego rapidamente.
Alberico havia feito escola de hotelaria e acreditava que isso já fosse suficiente para conseguir se colocar. Nada disso. Procurou por emprego, primeiro nos melhores, depois nos piores bares, hotéis e restaurantes, sem nada conseguir.
Então, quando acabou a grana que trazia, e começou a fome e o sono, entrou desesperado num botequim da Lapa. Foi para trás do balcão, começou a lavar a louça. Ante a surpresa e os protestos do português, dono do bar, gritou com cara de louco: “ou o signore me da uno emprego em troqui de case e comita, ô chiama la polizia.”
Para surpresa, inclusive dele e do português, o apelo teve o maior sucesso, e assim começou a carreira do Alberico no Brasil. Como vamos verificar, tinha uma grande tendência para o show business, tanto que, quando foi para seu segundo emprego, numa pensão em Copacabana, teve sua segunda brilhante atuação.
A pensão tinha uns quinze fregueses, mais ou menos. Depois de algum tempo, o cozinheiro, que era também o dono do negócio, jogou a toalha. Ou melhor, jogou a toalha, as panelas, o fogão e os talheres, e abandonou o negócio. O Alberico, que comandava aquela grande brigada de duas pessoas, ficou com a bomba e a freguesia nas mãos. Achou que valia a pena, mesmo porque, ali na pensão, pelo menos ele comia e dormia.
Mas não dava para contratar outro cozinheiro, de modo que ele passou a empregar um tipo de serviço que jamais teria passado pela idéia dos seus mestres da culinária e hotelaria na Suíça. De madrugada, deixava já preparadas as saladas, massas e os bifes, que compunham o “menu” fixo da casa.
Recebia aqueles quinze fregueses, conforme iam chegando, colocava as garrafas de água e farinha de rosca (farinha na garrafa, não sei qual dos leitores encarou essa) e uma ou outra eventual cerveja para os chefes de seção. Então, gritava para a cozinha vazia “salta ‘dois almoços’ para a mesa cinco”.
Corria para a cozinha, pegava os pratos, colocava na janelinha do salão e gritava lá de dentro “saindo ‘dois almoços’ para a mesa cinco”, dava a volta correndo da cozinha para a sala, pegava os pratos e servia. Ficava nisso até o último freguês.
Não ganhou muito dinheiro, mas desenvolveu excelente preparo físico, que serviu para garantir um terceiro lugar na maratona dos garçons, realizada anualmente na madrugada do Rio de Janeiro. E sobrou também para investir no seu primeiro negócio. O tal Beco da Garrafas, onde Alberico e Giovanni trabalhavam como garçons.
No Little Club, a crooner era Dolores Duran, por quem Alberico foi apaixonado, mas nunca teve coragem de revelar. Dolores cantava em inglês e francês, além de suas próprias composições. Mas não comovia a todos os fregueses, e um deles, de nenhuma sensibilidade ordenava sempre ao Alberico:
“Diz pra aquela negrinha cantar aquele negócio da noite do meu bem, e leva um sanduíche embrulhado pro meu carro, pra viagem.”
Billy Blanco, que também deu uma namoradinha na Dolores, via aquilo e uma noite trouxe para ela letra e música do samba antológico: “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho…”
Os músicos começaram a freqüentar o Beco, Alberico e Giovanni passaram de garçons a proprietários. Compraram tinta, martelo e pregos, e se transformaram em patrões, maîtres, gerentes e decoradores. Nem sempre com o mesmo sucesso. Prontas as instalações, faltavam as atrações. Dolores tinha partido prematuramente, vítima de um enfarte. Durante toda a vida do novo Little Club, Alberico trocava, a cada noite, a rosa em frente à foto da mulher por quem era, silêncio, apaixonado.
Mas e a música? Alberico já começara a ouvir de alguma maneira aquela coisa moderna que Dolores fazia, e o rádio começava a tocar um ou outro sucesso da Bossa Nova. Ele começou a chamar a rapaziada, que foi chegando e tocando. Sobrava até para uma concorridíssima “Jam session” aos domingos à tarde. Mas o sistema de consumação era o contrário. No início, os músicos não só não ganhavam nada, como ainda tinham que consumir um drinque para poder tocar. Não havia nenhuma maldade nisso, não. Era pura ingenuidade, mesmo.
É claro que isso durou muito tempo, e então nasceram os primeiros “profissionais” do Beco. Principalmente os pianistas – Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas, Sergio Mendes, Toninho, Tenório – e bateristas como Vitor Manga, Dom Um, Chico Batera etc. Desculpem o etc. Mas eu já peguei o bonde, ou melhor, o Beco, andando, não me lembro de todo mundo. Mas me lembro de que as estrelas eram os músicos, e não as cantoras.
Cantor, não haviam nenhum, até a chegada de Simonal e Jorge Ben. Aí, já foi no momento dos shows. Antes os instrumentistas reinavam absolutos. Por exemplo, Flora Purin era casada com Dom Um, mesmo assim, a rapaziada se recusava a acompanhá-la. Era a Flora chegar, e os pianistas desapareceram. A Flora se chateou tanto que largou o Beco, o Brasil, e foi para os Estado Unidos ganhar prêmio de melhor cantora de jazz, segundo a votação dos leitores da revista Playboy. Durma-se com um sucesso desses.
Gato Barbieri, tremendo saxofonista argentino, vivia lá, tentando convencer alguém a gravar seu tema Michelle, que foi feito em homenagem à sua mulher. Gostava tanto dela, que foi colocando o mesmo nome em temas que passou a numerar: Michelle 1, 2, 3, 4, 5, 6 etc.
Quando estava em Michelle 415, sem ter conseguido nada aqui no Brasil, Gato Barbieri desistiu e foi para os Estados Unidos, onde Marlon Brando prestou mais atenção nele do que a gente. Gato compôs a música do Último tango em Paris e ficou por lá mesmo. Parece que ganhou uma boa grana e dedicou-se á música que adora. Já está no Michelle 38.414.
Sacha Distel também apareceu por lá. Os músicos de seu conjunto foram convidados a dar uma canja, mas o Distel, considerado um “canário” careta, ficou de fora.
Leny Andrade era a única mulher respeitada pelos músicos do Beco. Ia sempre acompanhada do irmão, saxofonista, ou com a mãe, que desconfiava dos acordes daquela rapaziada. Leny era da mesma praia e música da turma, tocava piano, improvisava melhor que a maioria deles. Curiosamente, embora cantasse a toda hora, jamais fez seu show lá no Beco. Agora, que ela é a única brasileira que tem anualmente uma semana reservada no Blue Note de Nova York, vou perguntar a ela por quê.
O primeiro show foi o do Trio Tamba. Luiz Eça ao piano, Bebeto ao contrabaixo e o Hélcio Milito na bateria. Hélcio havia inventado também o instrumento de percussão que deu nome ao trio. Acertou quem disse tamba, é lógico. Depois, aconteceu o show de Elis Regina, produzido pelo jornalista Renato Machado, com textos gravados pela Íris Letierim, aquela locutora cuja voz maravilhosa anunciava todos os vôos dos aeroportos do Rio e de São Paulo.
Logo em seguida, quando eu já estava morando na casa do Ronaldo Bôscoli, Sergio Mendes nos chamou para fazer aquele que foi nosso primeiro show. Nosso e do Sergio Mendes. Como todo mundo sabe, Sergio Mendes continuou aqui no Brasil, lutando pela Bossa Nova, e Miele & Bôscoli foram se tornar milionários nos Estado Unidos.
Fizemos muito show lá no Beco. Quase todos, daí para frente, enquanto o Beco durou. Só com o Sergio, produzimos três. Quinteto Sergio Mendes: ele ao piano, Vitor Manga na bateria. (Dom Um Romão, idem), Otávio Baylli no contrabaixo, o Dr. Pedro Paulo (pediatra) ao pistom e Paulo Moura no sax e flauta. Sexteto Sergio Mendes: Sergio piano, Edson Machado na bateria, Otávio Baylli no baixo, Raul de Souza e Maciel nos trombones, Aurino no sax barítono. O sexteto atacou também em outro show com Odete Lara, que foi lindíssima como cantora.
Para os shows do sexteto, os arranjos finais foram feitos por Tom Jobim. O sexteto chamava-se Bossa Rio. O disco gravado com as músicas do show levou o nome de Você ainda não ouviu nada. E não tinha ouvido mesmo. Foi um som muito marcante para a época e, se você comprar o CD que foi editado com nova remasterização, vai ver (e ouvir) que o som é formidável até hoje. Bem, Louis Armstrong é bom até hoje, assim como Ravel etc. Fico pensando em quais dos sucessos atuais da música brasileira serão ouvidos em 2.044. Axé, minha gente bronzeada.
Naquela época, como o Sergio Mendes não gostava de falar, e eu ainda não havia percebido que podia ganhar algum como mestre de cerimônias, Ronaldo e eu tivemos que encontrar uma maneira de “narrar” os shows instrumentais.
No primeiro espetáculos, lançamos os slides, que logo depois se transformaram numa maldição nos show. Por exemplo, quando o conjunto ia tocar Primitivo, nós colocávamos a figura de um dinossauro que tentava comer uma linda mulher. Comer com a boca, tipo Jurassic Park.
Recortávamos as fotos de revistas como Squire, assim como as letras (letra por letra) para formar as palavras. Colocávamos toda essa maravilhosa arte-final em cima de uma toalha vermelha da boate, o Paulinho Garcêz fotografava, o Ronaldo levava o filme para a Manchete, onde o Jaquito deixava que fizesse, no peito, os slides.
Depois dessa maravilhosa primeira idéia, veio o segundo show. É claro que não poderíamos desapontar a seleta platéia, de maneira que criamos outra superprodução: Os pássaros (idéia depois plagiada por Alfred Hitchcock). Para cada canção do conjunto, uma gaiola com um pássaro e o título da música num cartão, pregado na gaiola.
Nana, de Moacir Santos: uma gaiola rústica, com um daqueles pássaros pretos que ficava agitadíssimo durante a canção. “Furaram os óio do assum preto, oi, pra ele assim, oi, cantá miór”. Não furamos os olhos do pássaro, como dizia a canção de Luiz Gonzaga. Quanto aos tímpanos, já não posso garantir.
Primavera, de Vinicius e Carlinhos Lyra: era uma vez de uma gaiola de porcelana, com aquele passarinho de dar corda. Um verdadeiro mimo.
O amor em paz, de Tom e Vinicius: essa música tinha até uma mensagem politicamente correta. Uma grande gaiola, onde havia uma pomba branca. Aquela da paz, perceberam a sutileza? E, sobre a pomba, ameaçador, um obus verdadeiro. A bomba da pomba. Genial.
Uma noite, por alguma razão pela qual não me lembro mais, tive uma briga com o Sergio e, num acesso de idiotice, acabei com metade do elenco, jogando as gaiolas na rua (digo, no Beco). Destruídas as gaiolas, o assum preto e a pomba voaram para longe e levaram consigo até o passarinho de dar corda. Como não encontramos substitutos à altura, o show terminou naquela noite.
Vieram os shows do Simonal, que depois de fazer grande sucesso como crooner na boate Drink, foi convidado por nós para fazer o seu primeiro espetáculo. Ele chegou a arrebentar. Seu primeiro trabalho foi ao lado de Darlene Glória, e a seguir Simonal volta com Rosa, quando lançamos a Rosa Maria, que depois estourou com California dreamin’.
E veio o primeiro show de Elis, com a dupla Miele & Bôscoli. Com o trio de Luiz Carlos Vinhas, um ótimo pandeirista e passista, chamado Gaguinho, e a formidável Marly Tavares, que foi consagrada como estrela num espetáculo chamado Skindô, que foi realizado no Copacabana Palace, com direção de Abelardo Figueiredo, roteiro de Aloysio de Oliveira e produção de Abrahão Medina – pai de Roberto Medina, o criador do Rock in Rio.
Minha paixão pela Elis, assim como os muitos trabalhos que fiz com Simonal, não cabe somente nas modestas medidas do Beco das Garrafas. Peço licença para falar deles em outras páginas.
Conta a lenda que no beco localizado na rua Duvivier, no Rio de Janeiro, entre a avenida Atlântica e a avenida Nossa Senhora de Copacabana, as garrafas voavam dos apartamentos por causa do barulho feito pelos frequentadores das quatros boates ali localizadas. Por isso, o beco foi chamado Beco das Garrafas.
Quando eu cheguei de São Paulo, das quatro boates, três delas apresentavam músicas brasileiras e jazz: Bottle’s Bar, Little Club e Bacarat. A quarta boate era a Ma Griffe, que operava com mulheres que nunca cheguei a saber se eram bonitas ou feias, pois, em primeiro lugar, não tínhamos a grana necessária para conferir o talento das moças. E depois, porque só pensávamos em música.
O Bottle’s, assim como o Little Club, pertencia aos irmãos Campana, Alberico e Giovani. Eram anteriormente garçons, que vieram da Itália para descobrir o Brasil. Eram oriundos de Ascoli Piceno e chegaram ao Rio tipo “o poderoso chefão”, como o menino da cidade de Corleone.
Não tinham onde morar, nem trabalhar, dormiram nos bancos da praça Mauá, onde a grande legião de conterrâneos seus (mais ou menos quatro ou cinco rapazes) se reunia. Quando chegaram, acreditavam que iriam encontrar emprego rapidamente.
Alberico havia feito escola de hotelaria e acreditava que isso já fosse suficiente para conseguir se colocar. Nada disso. Procurou por emprego, primeiro nos melhores, depois nos piores bares, hotéis e restaurantes, sem nada conseguir.
Então, quando acabou a grana que trazia, e começou a fome e o sono, entrou desesperado num botequim da Lapa. Foi para trás do balcão, começou a lavar a louça. Ante a surpresa e os protestos do português, dono do bar, gritou com cara de louco: “ou o signore me da uno emprego em troqui de case e comita, ô chiama la polizia.”
Para surpresa, inclusive dele e do português, o apelo teve o maior sucesso, e assim começou a carreira do Alberico no Brasil. Como vamos verificar, tinha uma grande tendência para o show business, tanto que, quando foi para seu segundo emprego, numa pensão em Copacabana, teve sua segunda brilhante atuação.
A pensão tinha uns quinze fregueses, mais ou menos. Depois de algum tempo, o cozinheiro, que era também o dono do negócio, jogou a toalha. Ou melhor, jogou a toalha, as panelas, o fogão e os talheres, e abandonou o negócio. O Alberico, que comandava aquela grande brigada de duas pessoas, ficou com a bomba e a freguesia nas mãos. Achou que valia a pena, mesmo porque, ali na pensão, pelo menos ele comia e dormia.
Mas não dava para contratar outro cozinheiro, de modo que ele passou a empregar um tipo de serviço que jamais teria passado pela idéia dos seus mestres da culinária e hotelaria na Suíça. De madrugada, deixava já preparadas as saladas, massas e os bifes, que compunham o “menu” fixo da casa.
Recebia aqueles quinze fregueses, conforme iam chegando, colocava as garrafas de água e farinha de rosca (farinha na garrafa, não sei qual dos leitores encarou essa) e uma ou outra eventual cerveja para os chefes de seção. Então, gritava para a cozinha vazia “salta ‘dois almoços’ para a mesa cinco”.
Corria para a cozinha, pegava os pratos, colocava na janelinha do salão e gritava lá de dentro “saindo ‘dois almoços’ para a mesa cinco”, dava a volta correndo da cozinha para a sala, pegava os pratos e servia. Ficava nisso até o último freguês.
Não ganhou muito dinheiro, mas desenvolveu excelente preparo físico, que serviu para garantir um terceiro lugar na maratona dos garçons, realizada anualmente na madrugada do Rio de Janeiro. E sobrou também para investir no seu primeiro negócio. O tal Beco da Garrafas, onde Alberico e Giovanni trabalhavam como garçons.
No Little Club, a crooner era Dolores Duran, por quem Alberico foi apaixonado, mas nunca teve coragem de revelar. Dolores cantava em inglês e francês, além de suas próprias composições. Mas não comovia a todos os fregueses, e um deles, de nenhuma sensibilidade ordenava sempre ao Alberico:
“Diz pra aquela negrinha cantar aquele negócio da noite do meu bem, e leva um sanduíche embrulhado pro meu carro, pra viagem.”
Billy Blanco, que também deu uma namoradinha na Dolores, via aquilo e uma noite trouxe para ela letra e música do samba antológico: “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho…”
Os músicos começaram a freqüentar o Beco, Alberico e Giovanni passaram de garçons a proprietários. Compraram tinta, martelo e pregos, e se transformaram em patrões, maîtres, gerentes e decoradores. Nem sempre com o mesmo sucesso. Prontas as instalações, faltavam as atrações. Dolores tinha partido prematuramente, vítima de um enfarte. Durante toda a vida do novo Little Club, Alberico trocava, a cada noite, a rosa em frente à foto da mulher por quem era, silêncio, apaixonado.
Mas e a música? Alberico já começara a ouvir de alguma maneira aquela coisa moderna que Dolores fazia, e o rádio começava a tocar um ou outro sucesso da Bossa Nova. Ele começou a chamar a rapaziada, que foi chegando e tocando. Sobrava até para uma concorridíssima “Jam session” aos domingos à tarde. Mas o sistema de consumação era o contrário. No início, os músicos não só não ganhavam nada, como ainda tinham que consumir um drinque para poder tocar. Não havia nenhuma maldade nisso, não. Era pura ingenuidade, mesmo.
É claro que isso durou muito tempo, e então nasceram os primeiros “profissionais” do Beco. Principalmente os pianistas – Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas, Sergio Mendes, Toninho, Tenório – e bateristas como Vitor Manga, Dom Um, Chico Batera etc. Desculpem o etc. Mas eu já peguei o bonde, ou melhor, o Beco, andando, não me lembro de todo mundo. Mas me lembro de que as estrelas eram os músicos, e não as cantoras.
Cantor, não haviam nenhum, até a chegada de Simonal e Jorge Ben. Aí, já foi no momento dos shows. Antes os instrumentistas reinavam absolutos. Por exemplo, Flora Purin era casada com Dom Um, mesmo assim, a rapaziada se recusava a acompanhá-la. Era a Flora chegar, e os pianistas desapareceram. A Flora se chateou tanto que largou o Beco, o Brasil, e foi para os Estado Unidos ganhar prêmio de melhor cantora de jazz, segundo a votação dos leitores da revista Playboy. Durma-se com um sucesso desses.
Gato Barbieri, tremendo saxofonista argentino, vivia lá, tentando convencer alguém a gravar seu tema Michelle, que foi feito em homenagem à sua mulher. Gostava tanto dela, que foi colocando o mesmo nome em temas que passou a numerar: Michelle 1, 2, 3, 4, 5, 6 etc.
Quando estava em Michelle 415, sem ter conseguido nada aqui no Brasil, Gato Barbieri desistiu e foi para os Estados Unidos, onde Marlon Brando prestou mais atenção nele do que a gente. Gato compôs a música do Último tango em Paris e ficou por lá mesmo. Parece que ganhou uma boa grana e dedicou-se á música que adora. Já está no Michelle 38.414.
Sacha Distel também apareceu por lá. Os músicos de seu conjunto foram convidados a dar uma canja, mas o Distel, considerado um “canário” careta, ficou de fora.
Leny Andrade era a única mulher respeitada pelos músicos do Beco. Ia sempre acompanhada do irmão, saxofonista, ou com a mãe, que desconfiava dos acordes daquela rapaziada. Leny era da mesma praia e música da turma, tocava piano, improvisava melhor que a maioria deles. Curiosamente, embora cantasse a toda hora, jamais fez seu show lá no Beco. Agora, que ela é a única brasileira que tem anualmente uma semana reservada no Blue Note de Nova York, vou perguntar a ela por quê.
O primeiro show foi o do Trio Tamba. Luiz Eça ao piano, Bebeto ao contrabaixo e o Hélcio Milito na bateria. Hélcio havia inventado também o instrumento de percussão que deu nome ao trio. Acertou quem disse tamba, é lógico. Depois, aconteceu o show de Elis Regina, produzido pelo jornalista Renato Machado, com textos gravados pela Íris Letierim, aquela locutora cuja voz maravilhosa anunciava todos os vôos dos aeroportos do Rio e de São Paulo.
Logo em seguida, quando eu já estava morando na casa do Ronaldo Bôscoli, Sergio Mendes nos chamou para fazer aquele que foi nosso primeiro show. Nosso e do Sergio Mendes. Como todo mundo sabe, Sergio Mendes continuou aqui no Brasil, lutando pela Bossa Nova, e Miele & Bôscoli foram se tornar milionários nos Estado Unidos.
Fizemos muito show lá no Beco. Quase todos, daí para frente, enquanto o Beco durou. Só com o Sergio, produzimos três. Quinteto Sergio Mendes: ele ao piano, Vitor Manga na bateria. (Dom Um Romão, idem), Otávio Baylli no contrabaixo, o Dr. Pedro Paulo (pediatra) ao pistom e Paulo Moura no sax e flauta. Sexteto Sergio Mendes: Sergio piano, Edson Machado na bateria, Otávio Baylli no baixo, Raul de Souza e Maciel nos trombones, Aurino no sax barítono. O sexteto atacou também em outro show com Odete Lara, que foi lindíssima como cantora.
Para os shows do sexteto, os arranjos finais foram feitos por Tom Jobim. O sexteto chamava-se Bossa Rio. O disco gravado com as músicas do show levou o nome de Você ainda não ouviu nada. E não tinha ouvido mesmo. Foi um som muito marcante para a época e, se você comprar o CD que foi editado com nova remasterização, vai ver (e ouvir) que o som é formidável até hoje. Bem, Louis Armstrong é bom até hoje, assim como Ravel etc. Fico pensando em quais dos sucessos atuais da música brasileira serão ouvidos em 2.044. Axé, minha gente bronzeada.
Naquela época, como o Sergio Mendes não gostava de falar, e eu ainda não havia percebido que podia ganhar algum como mestre de cerimônias, Ronaldo e eu tivemos que encontrar uma maneira de “narrar” os shows instrumentais.
No primeiro espetáculos, lançamos os slides, que logo depois se transformaram numa maldição nos show. Por exemplo, quando o conjunto ia tocar Primitivo, nós colocávamos a figura de um dinossauro que tentava comer uma linda mulher. Comer com a boca, tipo Jurassic Park.
Recortávamos as fotos de revistas como Squire, assim como as letras (letra por letra) para formar as palavras. Colocávamos toda essa maravilhosa arte-final em cima de uma toalha vermelha da boate, o Paulinho Garcêz fotografava, o Ronaldo levava o filme para a Manchete, onde o Jaquito deixava que fizesse, no peito, os slides.
Depois dessa maravilhosa primeira idéia, veio o segundo show. É claro que não poderíamos desapontar a seleta platéia, de maneira que criamos outra superprodução: Os pássaros (idéia depois plagiada por Alfred Hitchcock). Para cada canção do conjunto, uma gaiola com um pássaro e o título da música num cartão, pregado na gaiola.
Nana, de Moacir Santos: uma gaiola rústica, com um daqueles pássaros pretos que ficava agitadíssimo durante a canção. “Furaram os óio do assum preto, oi, pra ele assim, oi, cantá miór”. Não furamos os olhos do pássaro, como dizia a canção de Luiz Gonzaga. Quanto aos tímpanos, já não posso garantir.
Primavera, de Vinicius e Carlinhos Lyra: era uma vez de uma gaiola de porcelana, com aquele passarinho de dar corda. Um verdadeiro mimo.
O amor em paz, de Tom e Vinicius: essa música tinha até uma mensagem politicamente correta. Uma grande gaiola, onde havia uma pomba branca. Aquela da paz, perceberam a sutileza? E, sobre a pomba, ameaçador, um obus verdadeiro. A bomba da pomba. Genial.
Uma noite, por alguma razão pela qual não me lembro mais, tive uma briga com o Sergio e, num acesso de idiotice, acabei com metade do elenco, jogando as gaiolas na rua (digo, no Beco). Destruídas as gaiolas, o assum preto e a pomba voaram para longe e levaram consigo até o passarinho de dar corda. Como não encontramos substitutos à altura, o show terminou naquela noite.
Vieram os shows do Simonal, que depois de fazer grande sucesso como crooner na boate Drink, foi convidado por nós para fazer o seu primeiro espetáculo. Ele chegou a arrebentar. Seu primeiro trabalho foi ao lado de Darlene Glória, e a seguir Simonal volta com Rosa, quando lançamos a Rosa Maria, que depois estourou com California dreamin’.
E veio o primeiro show de Elis, com a dupla Miele & Bôscoli. Com o trio de Luiz Carlos Vinhas, um ótimo pandeirista e passista, chamado Gaguinho, e a formidável Marly Tavares, que foi consagrada como estrela num espetáculo chamado Skindô, que foi realizado no Copacabana Palace, com direção de Abelardo Figueiredo, roteiro de Aloysio de Oliveira e produção de Abrahão Medina – pai de Roberto Medina, o criador do Rock in Rio.
Minha paixão pela Elis, assim como os muitos trabalhos que fiz com Simonal, não cabe somente nas modestas medidas do Beco das Garrafas. Peço licença para falar deles em outras páginas.
Pois bem, o Lennie, que tinha vindo só para dançar, apaixonou-se pela música brasileira e montou um show espetacular, no qual cantava muito mais do que dançava. Ensaiou com o Vinhas durante dois meses, quatro horas por dia. Os músicos queriam matá-lo, ninguém tinha feito isso no nosso tipo de shows, mas o resultado foi maravilhoso. Eu só fui conhecê-lo na noite de estréia e, daí para frente, fiquei completamente envolvido pelo seu talento, como a maioria dos artistas brasileiros.
Assim que terminou a temporada no Au Bon Gourmet, elegante night club do Rio de Janeiro, levamos Lennie para a precariedade do Beco das Garrafas. No Beco, não existia iluminação. Instalamos algumas lâmpadas comuns, envolvidas com um cone de cartolina, que tinha um papel celofane colorido na frente.
Devíamos ter uns quatro ou cinco desses “refletores”. E duas lanternas, é claro. Lanternas mesmo, aquela “Eveready” de três pilhas. Mas, como se fosse possível, tínhamos um iluminador, que acionava todo esse imenso quadro de iluminação. Era o Zé Luiz, que depois foi diretor da RCA, em Nova York. Havia toda uma preocupação de criação (lembram das gaiolas?), e o público passou a adorar isso.
No show do Lennie, evoluímos em termos de superprodução, tínhamos direito a gastar uma folha de papel vegetal por noite. Colocávamos o papel na frente do balcão do bar, Lennie ficava em silhueta enquanto uma gravação anunciava: “Senhoras e senhores, o Bottle’s Bar, o bar da bossa, orgulhosamente apresenta Lennie Dale, mais um show Miele & Bôscoli”.
A entonação do locutor (eu mesmo, é claro) era pretensiosa, como se estivesse anunciando um grande espetáculo da Broadway, principalmente na parte “esse é mais um show Miele & Bôscoli”. Paramos de fazer isso quando a Tonia Carreiro teve um acesso de riso na platéia. A platéia, que eu digo, eram aquelas mesinhas baixas, com quatro pufes em volta.
De qualquer maneira, o Lennie arrebentava o tal papel e pulava no palco (um estrado de madeira de um metro de largura) e cantava: “Rio Copacabana, Rio Copacabana”. Era um sucesso total, aprendi muito com ele, principalmente quando ele discutia comigo, durante os ensaios:
– Miele, meu amor, tem di mudar o dinâmica desse número.
– Tá legal, Lennie. Vamos ensaiar de novo. Aproveita e me explica o que é essa tal de dinâmica.
Em outra ocasião, Lennie ia cantar O pato. Um dos garçons interrompia o show, trazendo uma salva de prata, emprestada do Au Bon Goumet, é claro. Lennie ficava muito surpreso, abria a tampa, e dentro estava um patinho lindo. Vivo, é claro. Quase sempre, quando se levantava a tampa, o pobre patinho, que já estava preso há algum tempo, grasnava. Lennie, assustado, dizia: “o pato?” E continuava cantando: “vinia cantando legrimente que quem”. Era um sucesso.
Mas o patinho durava pouco. Ou roubavam, ou tinha piores destinos, de maneira que fizemos um trato com uns garotos de morro, que nos traziam um patinho novo, toda noite. Mas acho que a ninhada acabou, porque numa certa noite, quando Lennie abriu a tampa, saiu voando de lá o maior pato que podia caber na tal salva. Saiu voando pela platéia. Filho da pata!
Mas fizemos trabalhos maravilhosos. Além dos seus shows, Lennie deixou uma escola e um estilo da dança moderna no Brasil. Depois fomos para São Paulo, onde montamos um show muito instigante com ele e Maria Bethânia.
Pouco antes da noite de estréia, eu fui informado pela direção da TV Record que deveria ir para Paris, gravar um programa de uma hora de duração com a Elis, que iria começar a temporada no Olympia. Oba, Paris, tudo pago. Ronaldo enlouqueceu:
– Ô Miele, eu não vou porque tenho pavor de avião. Mas você também não vai me deixar aqui sozinho com essas duas feras, o Lennie e a Bethânia.
Deixa eu explicar. Na dupla, Ronaldo era o dono das idéia, mas ficava comigo, em todos os shows, a parte de palco, luz, som, ensaios e neuroses. Assim, sabendo que tinha de deixar alguém em meu lugar, saí pela noite de São Paulo, depois dos ensaios, e entrei no Gigetto, onde a classe artística se reunia. A primeira pessoa que vi, quando entrei no restaurante, foi o Fauzi Arap, que eu só conhecia de vista. Contei a história para ele e pedi que ele assumisse a parte da direção. Sorte dele, e da Bethânia. Aconteceu uma sintonia maravilhosa entre eles e viveram felizes para sempre.
Depois, na minha volta, o Lennie pegou hepatite e deixou o show. Estávamos os dois num café e eu achei que os olhos dele estavam um pouco amarelados. Levei-o a uma farmácia para tomar um remedinho para o fígado. Quando entramos, o farmacêutico começou a gritar apavorado para eu levar aquele homem dali direto para o hospital.
Como nenhum hospital quis aceitá-lo, afirmando que hepatite tem que ser tratada em casa, levei o Lennie para a minha, lá em São Paulo. Qualquer doente desse tipo dá uma boa mão-de-obra, mas um energético, como o Lennie, foi uma verdadeira dor de cabeça, tronco e membros. Mas valeu. Grande Lennie. Em outro capítulo deste livro, eu conto mais histórias dele com Miele/Bôscoli e os Dzi Croquettes.
Entre os shows de Sergio Mendes, Simonal, Lennie, Os Cariocas, Elis etc, eu e o Ronaldo começamos a ensaiar outros tipos de pocket shows. Por exemplo:
Consuelo Leandro & o Bossa3
Consuelo era uma comediante extraordinária. (Imagino como foi o casamento dela com o Agildo Ribeiro. Que dupla, heim?) Fazia o show vestida com um smoking. Era o humor do teatro de revista, acompanhado pelos garotos da Bossa Nova.
Rosana Tapajós & Trio Yrakitan
Esse era diferente mesmo. Rosana era uma manequim e cantora lindíssima, que depois virou estrela e milionária do México. Chamamos para os arranjos Tenório Jr., excelente pianista que adorava jazz e o instrumento da Bossa Nova. Quando começou o primeiro ensaio, Rosana apareceu com um gato angorá no colo, e o Trio Yrakitan cantando: “ô Minie, gato de ti dô, se já skim bim bauim bauei”. Tenório levantou do piano, pediu o boné e se despediu:
– Miele, vai me desculpar, mas nessa do vaudeville eu não estou.
Nunca mais o vi. Infelizmente. Durante uma temporada em Buenos Aires, acompanhando Vinicius e Toquinho, ele saiu do hotel para comprar cigarros, foi confundido com um terrorista, preso e assassinado pela ditadura militar da Argentina. Apesar de todos os esforços de Vinicius, poeta e diplomata brasileiro, Tenório nunca foi encontrado. Muitos anos depois, um elemento da repressão confessou a autoria da sua morte.
Durante muito tempo, fizemos quase todos os shows do Beco. Acho que apenas três deles não foram feitos por nós. No Bacarat, Armando Pitigliani produziu o primeiro show de Jorge Ben. Por causa de você e Mas, que nada começaram a estourar por lá.
Samuel Wainer ia inaugurar o jornal Última Hora em Belo Horizonte e resolveu prestigiar a garotada. Eu e Ronaldo produzimos um show com quem estava disponível e levamos para BH: Sergio Mendes e conjunto, Dóris Monteiro, Walter Santos, um cantor que era o João Gilberto de São Paulo, duas bailarinas que iriam fazer a dança da Bossa Nova. E o Jorge Ben. Fomos de trem, à noite, no Vera Cruz. Marcamos encontro no Beco, mas Jorge Ben chegou partindo, quer dizer, veio para dizer que não ia.
– Olha aí, rapaziada, eu não vou nessa, não. Vou fazer um programa de TV em São Paulo. Pintou uma chance legal, um lance lá na capital, vocês me desculpem.
Desculpar, está desculpado. Jorge Ben era pedra 90, Jorge Ben também continuou sendo, mas como é que a gente ia ficar? Nessa altura, o pandeirista que tocava com ele, Nelsinho, arriscou:
– Ô chefia, eu estou trabalhando com o homem há três meses. Sei todo o repertório e me defendo. Me dá mais uma graninha que eu ataco no lugar dele numa boa.
Beleza, ainda não havia a TV em rede, acho que nem o videoteipe, e em Minas as pessoas haviam apenas escutado, e não visto, os primeiros dois sucessos do Jorge. Atacou o Nelsinho mesmo, anunciado com o nome do patrão. Tem mais. Ficamos hospedados no mesmo hotel que a seleção russa de basquete. Tínhamos uma gravação na qual eu imitava o Nikita Kruschov apresentando a Bossa Nova:
– E agora, diretamente da Praça Vermelha em Moscou, as palavras do premier Nikita Kruschov. E imitava: Kavranski protraika merdinska yavarich the bassanava americana com a banda de Johnn Philipp Souza.
Colocamos a fita no serviço de som do hotel às quatro da manhã e fomos para o saguão, assistir à briga entre o gerente do hotel e o representante dos russos. O gerente achando que era uma molecagem dos jogadores de basquete e os dirigentes soviéticos reclamando da falta de respeito com o seu premier.
Na volta, Pitigliani dirigiu Nara Leão. Nara cantava no Bacarat. Sergio tocava no Bottle’s. As casas eram vizinhas e tivemos que combinar para que a Nara esperasse o Sergio terminar, pois o som do conjunto Bossa Rio atravessava as paredes.
As paredes, pode ser, mas no Beco não se atravessava o ritmo. Outros show foi feito por Aloysio de Oliveira para Silvinha Telles (maravilhosa). Silvinha havia gravado o melhor disco de “cantora & orquestra” naquela época, com arranjos formidáveis de Lindolfo Gaya.
Aloysio apresentou, então, o primeiro show feito com playback no Brasil. Ficava escondido atrás de uma cortina de plástico que mandou pendurar, pois não havia espaço para ocultar aquele enorme gravador de rolo.
Bem, os artistas foram sendo requisitados para a fama e para outros trabalhos, a Bossa Nova foi chegando aos teatros, casas bem mais elegantes começaram a contratar aqueles que ali haviam sido lançados.
Eu e Ronaldo combinamos um novo encontro com o Alberico para dentro de alguns anos, encontro que realmente aconteceu, e então, repentinamente como nessas lembranças, o Beco das Garrafas acabou.
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