Por Luiz Carlos Miele
Outro bar (ou boate) que aconteceu em São Paulo com a
assinatura de Miele & Bôscoli foi a Blow-Up. Na rua Augusta, funcionava uma
casa chamada Raposa Vermelha, pertencente a um cantor português chamado Abilio
Herlander.
Um grupo de amigos resolveu comprar a casa: Roberto
Mendonça, Odilon Sandoli e Gersino Alves. Como nenhum dos três era da noite,
resolveram chamar a mim e ao Ronaldo. Eles não entendiam da noite, e nós não
sabíamos nada de negócios, de maneira que ficou um casamento perfeito.
Nunca assinamos contrato nenhum, como sempre, e ficou
acertado que iríamos ganhar 20% do negócio. No primeiro mês, recebemos o
equivalente a essa porcentagem de todo o movimento bruto da casa, o que fazia
com que nós tivéssemos um faturamento formidável, pois não entrava em nosso
percentual nenhuma despesa com pessoal, estoque, aluguel, pagamento dos
artistas etc.
É claro que eles perceberam o erro e tudo foi acertado
novamente. Para nós, tudo bem. Acho que em toda a nossa carreira, nem eu nem
Ronaldo soubemos quanto ganhávamos. Queríamos mesmo realizar os nossos shows, era
tudo como uma grande aventura, muito divertida. Até invejada por muita gente.
Mas, dizem, com dinheiro não se brinca, e isso foi fatal para nós. Eu, hoje em
dia, gosto de dizer que o dinheiro me odeia, mas quem sabe isso muda antes de
chegar aos 80 anos.
Voltando à casa paulista, escolhemos o nome de Blow-Up por
causa do filme de Antonioni, de sucesso absoluto na época. Mas não bastava
mudar o nome. Era necessária uma reforma completa, e os proprietários nos
acenaram com uma verba, digamos, de seis mil cruzeiros, não me lembro bem, mas
era pouquíssimo.
Eu estava empolgado com o sucesso da DPZ, a agência de
propaganda de Dualib, Petit e Zaragoza, e ingenuamente fui até eles para ver se
tinham algumas idéia, dentro daquele orçamento, talvez alguns desenhos bem
inteligentes para decorar as paredes. Bondosa e penosamente, o Petit me
informou que aquilo não era consulta que se fizesse a uma agência daquele
prestígio.
Humilhadíssimo, voltei aos três sócios para desfazer nosso
acordo, e então, eles me ofereceram dez vezes mais para a reforma. Mais animado
um pouco, tomei uma decisão completamente fora dos padrões das casas noturnas:
fui procurar Wesley Duke Lee, o artista plástico brasileiro que havia ganho a
Bienal de Tóquio, por cujos trabalhos eu estava apaixonado. Surpreso, Wesley
afirmou que nunca havia feito um projeto para uma casa noturna, mas eu consegui
convencê-lo:
– Tá bom, Miele, eu faço o projeto, mas só se for executado
pelos japoneses que eu trouxe da lá.
Wesley havia ficado impressionado com a qualidade e o
profissionalismo dos operários no Japão e tinha vários projetos a executar no
Brasil, “instalações” das mais variadas. Sugeriu a eles que o Brasil poderia
ser um bom mercado e eles vieram com as famílias.
Compraram um terreno no bairro do Jabaquara e fizeram o seu
shongunato. Trouxeram diferentes especialistas. Um era pedreiro; o primo dele,
o encarregado da parte elétrica; outro, do estofamento; um, chefe de
carpintaria; outro para o ar refrigerado; o mestre da hidráulica; um
engenheiro-chefe, o diabo.
Estavam aptos a fazer desde um canil até o edifício do
governo. Na metade do tempo, e sem roubar o meu, o seu, o nosso pobre
dinheirinho.
Levei até eles o projeto. A própria planta feita pelo Wesley
já era um objeto de arte. Uma série de círculos superpostos que iam revelando
todo o design inusitado.
O líder do grupo, único que já falava um pouco de português,
reuniu todo o clã, analisou tudo e, para minha surpresa, exclamou:
– Projeto muito bom, né? Pode entregar tudo pronto dia 17 de
julho.
Quer dizer, não deu um prazo de “uns dois meses mais ou
menos”. Daqueles que viram quatro meses, ou um ano por aqui. Mas falou: “No dia
17 de julho.”
Falou e disse.
– Metade adiantada, né?
Depositado o dinheiro, combinamos que a obra poderia começar
na segunda-feira seguinte, pois domingo teríamos a despedida da Raposa
Vermelha. E no domingo, lá estávamos para o último show de Consuelo Leandro,
uma das poucas mulheres que podia fazer um show de hora e meia, acompanhada
pelo Trio de Luiz Carlos Vinhas.
Não é preconceito não. Mas, naquele momento, o humor
brasileiro era escrito apenas por homens, e as mulheres, sempre as vítimas das
situações, coadjuvantes para o sucesso dos humoristas. Hoje, várias mulheres
redigem os textos de programas humorísticos, e grandes atrizes mostraram a
faceta de ótimas comediantes.
Assim, entre texto e interpretação, palmas para Dercy
Gonçalves, Marília Pêra, Consuelo Leandro, Berta Loran, Nair Belo, Débora Bloch,
Fernanda Torres, Marisa Orth, Claudia Rodrigues, Ingrid Guimarães, Heloísa
Perissê, Claudia Raia, Andreá Beltrão e tantas outras, lindas sempre, palhaças
quando querem.
Pois bem, estávamos lá no domingo, esperando o show de
Consuelo, que iria começar mais ou menos a uma hora da manhã. (Naquele tempo, a
violência ainda não era a maior puta da noite.) Foi quando o Gunga Din, o
porteiro, me avisou que havia estacionado na porta uma clientela nada
convencional. Um caminhão cheio de japoneses.
Fui até lá para dizer ao Tanaka que havíamos combinado
segunda-feira para o início da obra.
– Agora zero hora vinte minutos. Já segunda-feira, né?
Avisei que a casa só ia ficar desimpedida lá pelas quatros
horas. Ele retrucou:
– Agora cada um para sua casa, pior, né? Senhor paga
sanduíche e conhaque no botequim, gente espera.
E assim, deixamos os japoneses no bar da esquina e fomos
curtir e Consuelo. Terminado o show, ela convidou ex e atuais proprietários
para mais um drinque na casa dela. Fomos todos. O uísque e o papo eram da
melhor qualidade, e o último drinque da noite transformou-se no café da manhã.
Lá pelas oito horas, na saída, Ronaldo me disse:
– Miele, vai ver que todo esse papo dos japoneses é uma
tremenda cascata. Vamos dar uma passada lá na boate para dar uma olhada.
Só que não havia mais boate. Nada. Nem o balcão do bar, os
sofás, Nada. E não havia mais o chão. Não estou falando do carpete. O chão
tinha desaparecido. Junto com uma escada de ferro, em caracol, que ligava a
casa a um corredor no andar de cima. Daí para a frente, a qualquer coisa nova
que a gente pedia, o japonês respondia com a letra e a data.
– Tanaka, a gente lembrou do frio de São Paulo. Dá para
fazer um armário para os casacos das mulheres?
Ele pedia para a gente rabiscar o desenho e respondia:
– Quinta-feira pronto, quinze pras quarto, né?
Toda a casa ficou pronta três dias antes da inauguração, é
claro. E ficou uma beleza. Como o tema era Blow-up,
o filme que contava a história de um fotógrafo, Wesley fez a entrada pela
garagem. Os automóveis desciam a rampa em forma de um fole de máquina
fotográfica. Aquela Roleyflex, lembram?
O manobrista pegava o carro na frente da porta, que era a
“objetiva” da máquina. Um círculo de acrílico, que entrava lateralmente num
corte na parede como se a objetiva tivesse sido acionada. (E quem não vinha de
carro? Bom, quem não vinha de carro, tinha errado de boate.)
No interior, todas as paredes eram espelhadas, assim como as
colunas.
O estofamento, todo em plástico prateado, acentuava ainda mais
os reflexos.
Quando a casa estava vazia, no início da noite, os primeiros
frequentadores tinham que ser conduzidos pelo maître até suas mesas, porque se
perdia a relação entre o que era realmente físico e o que era reflexo. Tudo
isso era necessário para ampliar as dimensões da casa, que não tinha mais do
que oitenta lugares.
Oitenta lugares que receberam shows como os de Bethânia e
Lennie Dale, Edu Lobo-Gracinha Leporace e o Quarteto Novo, formado por Hermeto
Paschoal, Airto Moreira, Théo de Barros e Helio Delmiro. Depois, Chico Anísio,
Jorge Ben (o Benjor ainda não havia pintado), Eliana Pittman e, no auge do
sucesso, Miriam Makeba (Zacutin azatipega-tatuí-pata-pata…lembram?),
acompanhada pelo Sivuca.
Conta a lenda que Albino Pinheiro (grande animador cultural)
estava uma noite no camarim e ligaram para ele. Atendeu a mulher do Sivuca.
– Boa noite, é do camarim?
– Sim senhor, quer falar com quem?
– Me chama aí o Albino.
– Albino é a puta que o pariu…
O telefonema era para Albino Pinheiro, a esposa do Sivuca
achou que era molecagem com os pêlos e cabelos brancos do marido.
Como conseguíamos pagar os artistas com esse número de
lugares, era um mistério. Na verdade não havia as grandes casas de espetáculos,
os artistas ganhavam menos, e as casas noturnas cobravam mais. Outros tempos.
Nem todo mundo achava graça. Um cliente irritou-se com o
preço cobrado no show de abertura da casa, que apresentava Miele & Tuca.
(Ainda se fosse a Miriam Makeba…)
Fez um escândalo, foi posto educadamente para fora por dois
rapazes do Itamarati que faziam a nossa segurança. Já na rua, gritava para todo
mundo:
– Não volto mais nessa merda. E se eu pegar um de vocês aqui
na rua, vou meter porrada, de tanta raiva que eu fiquei.
Disse isso e com a tanta raiva, deu tamanho soco na parede
do prédio que apagou a luz do quinto andar. Infelizmente, também quebrou a mão.
E olhando para a mão sangrando, vociferou:
– E vocês notem que eu não estou com raiva da parede.
Durante o show de Edu e Gracinha Leporace, Sergio Mendes, já
consagrado como um grande cartaz internacional, apareceu para uma visita.
Depois de algumas desavenças que tivemos, das quais já nem me lembro, ou nem
quero me lembrar, ele chegou ao Brasil e me convidou para dirigir o show dele
no Teatro Paramount, que seria transmitido pela TV Excelsior.
Não era bem dirigir o show, que estava superpronto e era um
grande sucesso no mundo inteiro. Era apenas para dar uma olhadinha no
repertório. Como eu e Ronaldo havíamos feito o primeiro show da vida dele, que
foi também o primeiro show de nossa vida, no lendário Beco das Garrafas, acho
que era mais um carinho dele para com a dupla. Mas o Paulinho de Carvalho, dono
da TV Record, de onde eu era contratado, não quis me liberar para a emissora
concorrente, e eu tive que me desculpar com o Sergio:
– Olha aí, Mendes, não vai dar. Infelizmente o Paulinho não
abriu mão.
– Tem nada não, Miele. Onde é que fica a tal casa de vocês,
aqui em São Paulo?
– É a Blow-Up, na rua Augusta. Hoje à noite tem Edu e
Gracinha. Aparece depois do teu ensaio para a gente tomar uma.
E ele apareceu. Provocou uma sensação na chegada. Era o
primeiro brasileiro a estar na parada de sucessos nos Estados Unidos. Perguntei
se ele queria dar uma canja, ele não se fez de rogado e criou uma noite de
grande emoção.
– Boa noite, senhoras e senhores, é um prazer estar aqui,
reencontrar o Miele e o Ronaldo. O meu show estréia amanhã no Teatro Paramount,
mas eu resolvi passar aqui hoje para deixar um abraço. Eu e o meu grupo, o
Brasil 66.
E para a surpresa de todos os fregueses da casa, foram
entrando no palco, já cantando Mas, que
nada, grande sucesso internacional: Karen Phillip, Lannie Hall, as duas
cantoras americanas do grupo e todos os músicos do conjunto, que ele havia
deixado esperando numa Kombi parada na porta da boate, para oferecer essa
emocionante surpresa.
Uma das cantoras, Lannie Hall, casou-se com Herp Albert,
também de grande sucesso nos Estados Unidos. Em compensação, Sergio conheceu
nessa noite a Gracinha Leporace, que fazia o show com Edu Lobo. Adorou a moça e
a cantora, e casou com as duas.
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