Por Luiz Carlos Miele
Quando da inauguração da boate Regine’s, em São Paulo, a
atração dessa primeira noite foi Charles Aznavour. Atração evidentemente cara,
e que marcou mais ou menos o perfil da frequência da casa. Era uma casa com uma
decoração faraônica e, como todo mundo sabe, os faraós não eram exatamente os
reis do bom gosto.
Passados os primeiros meses de sucesso, a boate passou a
acusar os primeiros sinais de que devia promover alguma novidade para continuar
a atrair a elite de São Paulo, o que acontece, aliás, com todas as casas
noturnas. Não é um fenômeno brasileiro. No mundo todo, os night-clubs, e
principalmente as discotecas, têm vida curta. A turma cansa logo e vai dançar
noutra freguesia.
Outra razão é que a rapaziada que faz o sucesso da casa,
como as estrelas da TV – e da mídia, não só não gasta nada, como ainda cobra.
De qualquer maneira, a Regine’s queria uma aproximação maior com a turma da
noite, e depois de constatar que os aznavoures não estavam com aquela bola toda
combinou com o Naji Nahas, sócio majoritário da casa, uma nova badalação.
Uma noite mais elegante que a primeira, a revista Vogue e
Alice Carta convidando, traje a rigor, o fino. A idéia era contar um pouco da
história da noite de São Paulo e de como Regine’s passou a fazer parte dessa
noite. Na época, Karla Garcez fazia a programação da casa, eu fui consultado
para a produção do show e os nomes sugeridos foram os de Simone, Ney Matogrosso
e Caetano Veloso.
Argumentei que eram todos superstars e, por isso mesmo,
seria impossível qualquer intervenção em seus shows. Sugeri um show com a
participação dos artistas que, durante as duas últimas décadas, “faziam” a
noite de São Paulo: Pedrinho Mattar, Johnny Alf, Madalena de Paula
(extraordinária cantora e pianista), Roberto Luna e os Demônios da Garoa.
Embora grandes artistas, nenhum deles tinha ultrapassado a fronteira dos bares
e restaurantes menos ou mais sofisticados e até dos cabarés da madrugada.
Roberto Luna, por exemplo, trabalhava no Viva Maria, “a
capital da alegria”, onde seu show começava às quatro da manhã. Quer dizer, o
Luna era conhecido pela metade dos casais presentes, ou seja, a metade representada
pelos maridos. Afinal, nas férias, as esposas e as crianças têm o direito de
aproveitar a semana inteira nas fazendas e casas de praia, onde, no sábado,
chegam os esgotados maridos depois de cinco dias de sacrificadas labutas. (Opa,
que rima perigosa essa!)
Karla ficou apavorada com a escolha do elenco, mas eu
resolvi arriscar o meu pescoço e o dela, e o show foi esse mesmo. Eu tinha duas
cartas na manga. A primeira foi um multivisão produzido pela produtora paulista
Miksom. A linguagem do multivisão era usada quase que exclusivamente para
apresentações técnicas nas convenções de lançamento da indústria
automobilística, por exemplo. Poucas pessoas naquela platéia teriam visto toda
aquela tecnologia a serviço de um espetáculo de música popular.
Quando o som de Paulistania,
de Billy Blanco, invadiu o Regine’s, o impacto foi emocionante: “São Paulo que
amanhece trabalhando, São Paulo que não pode adormecer, na reza do paulista,
trabalho é o padre nosso…”
Na tela, as imagens dos representantes das raças que fizeram
a cidade tão cosmopolita. Os japoneses, árabes, judeus, alemães, italianos.
Tirando os japoneses, pouco chegados àquele tipo de badalação, quase todo mundo
ali era descendente de alguém.
As imagens da boemia paulistana, as boates de outrora, as
figuras da noite, a garoa, o Ceasa, o viaduto do Chá, a São João com a
Ipiranga, os pardais em madrigais, o sol rasgando a cerração, e as primeiras
lágrimas de emoção foram pintando. Hebe Camargo e Marília Gabriela subiram num
sofá e começaram a aplaudir, um paulista quatrocentão achou pouco o sofá, subiu
numa mesa e gritava:
– Essa é a minha cidade, porra!
Ciente de que havia ganho a segunda batalha do Ipiranga,
apresentei o golpe definitivo:
– E agora, senhoras e senhores, para encerrar o nosso show,
gostaria de trazer um artista que de maneira nenhuma queria se apresentar esta
noite. Foi difícil convencê-lo a usar um smoking pela primeira vez, e mais
ainda, convencê-lo de que era tão querido aqui nessa casa, como em qualquer
outra onde se apresenta regularmente, pois ele insistiu em afirmar que jamais
havia pisado numa casa noturna desse luxo. E, desnecessariamente, tenho
certeza, assegurei os aplausos de vocês para uma das figuras mais
representativas da noite paulista. Senhoras e senhores: Adoniran Barbosa.
Como a gente diz entre nós, “caiu a casa”. Adoniran cantou
apenas a primeira frase: “o Arnesto nos convidou, prum samba, ele mora no
Braz”. De “nois fumo num incontremo ninguém” até o fim, o Samba do Arnesto foi interpretado pelo mais elegante coral já
reunido na noite paulista, que, de smoking e vestido longo, cantou esta música,
o Trem das Onze e outros sucessos que
conhecia de cor, mas que, com aquele guarda-roupa, jamais havia tido
oportunidade de interpretar.
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