Por Luiz Carlos Miele
O teatro Casa Grande teve uma participação muito importante
na vida cultural do Rio de Janeiro. Não apenas pela excelência dos espetáculos
que encenava, como também porque foi palco de várias reuniões da classe
artística, em que se discutia a participação política de seus representantes.
Foram momentos em que a atuação de escritores, compositores,
poetas, atores e atrizes, diretores e produtores ultrapassaram em muito os
limites do palco, em defesa da liberdade.
Numa dessas noites, um grupo de notáveis deixou a reunião
exausto de suas responsabilidades para com o país. Todos eram muito amigos, a
afinidade e o talento que os uniam facilitavam muito o diálogo. Chico Buarque
apontou para a foto que ilustrava a manchete de um jornal do dia e cantou para
ela:
“Apesar de você, amanhã há de ser, outro dia”.
Francis Hime rasgou a foto e recomendou calma a Chico,
lembrando que os dois haviam avisado que ia passar pela avenida um samba
popular. E que cada paralelepípedo da velha cidade, naquela noite, vai se
arrepiar. João Bosco a Aldir Blanc lembraram “a raiva de tanta gente que
sonhava com a volta do irmão do Henfil e de tanta gente que partiu num rabo de
foguete”. Vinicius de Moraes disse ao Tom que estavam perto da rua onde
nasceram tantas canções – “rua Nascimento Silva 107 e você ensinando pra
Elizete as canções de A Canção do Amor Demais. Lembra Tomzinho?”
Mas Tom respondeu que isso era antigamente e que agora era a
rua Nascimento Silva 107, onde a gente corria do pivete, tentando alcançar o
elevador. Entre tantas considerações, chegaram, depois de muito tempo, à frente
da casa de espetáculos Vivará (que, aliás, era pegada ao Teatro Casa Grande),
onde se apresentava o show Paetês –
Bananas com Miele & Sandra Bréa, e que, com todo o respeito à memória
da Sandra, foi um dos piores equívocos encenados no Brasil.
O formidável sexteto – Tom & Vinicius, João & Aldir
e Chico & Francis – achou que já havia prestado serviço suficiente por
aquela noite e resolveu seguir os conselhos de Vinicius, que um dia bradou: “O
uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado.” Imediatamente,
vários boêmios elegeram essa frase como uma das mais inspiradas de toda a
carreira poética do nosso vate. Mas foi um evidente exagero da turma que vivia
nos apartamentos de sala-quarto-banheiro e canil. De qualquer maneira, aqueles
compositores maravilhosos entraram para ver o show, o que me deixou
completamente apavorado com as críticas que imaginei que viriam no fim.
Mas, com a mesma grandeza e generosidade de sua obra, eles
me convenceram de que eu não precisava me suicidar ainda, devia tentar mais uma
vez. No fim, todos nós confraternizamos num verdadeiro Kennel Club e a noite
ainda me rendeu uma linda foto, que marcou aquele encontro com Vinicius de
Moraes.
Conheci Vinicius numa casa noturna chamada Ruy Bar-bossa.
Trocadilho brilhante, como vocês perceberam. Foi a minha estréia no palco, ao
lado da Tuca, cantora e humorista de muito talento. Vinicius fora cunhado do
Ronaldo, casado com Lila Bôscoli, e várias das tantas maravilhosas homenagens
feitas às mulheres foram dedicadas a ela. As muito feias que perdoem, mas
beleza é fundamental. Depois, ele me explicou que tinha dito: “As muito, muito
feias.” E como nenhuma mulher e achava “muito, muito feia”, nunca houve
problema.
Terminado o show, a boate ficou vazia em alguns minutos, mas
ele pediu mais uma garrafinha de uisquinho, pra gente ficar mais uma horazinha
batendo um papinho. Eu já tinha ouvido falar da paixão dele pelos diminutivos,
achei aquilo do cacetinho e fiquei bebendo (literalmente) aquele talento e
sabedoria.
Dizem que ele ficou muito frustrado quando começou a compor
com o Toquinho, pois o Toco já era Toquinho. Toquinhozinho também ia ficar
demais. Muitas horas depois, ele me perguntou se eu podia dar uma caroninha pra
ele. Era tudo que eu queria. Na noite em que conheci Vinicius de Moraes, já ia
dar uma carona para ele:
– É claro, poeta, com todo prazer. Onde é que você está
morando?
– É logo ali na Gávea, Mielinho. Tô morando na clínica São
Vicente.
– Mas Vinicius. São cinco da manhã. Como é que a gente vai
entrar na clínica?
– Não tem problema, não. Pode deixar que eu tenho a chave.
Alguns anos depois, já honrado com sua amizade, fui fazer um
show no Recife. Patrocinados por uma marca de rum, um grupo de artistas como
Regina Duarte, Vera Fischer, Wilma Vernon, Erlon Chaves e a Banda Veneno,
Cafuringa, o ponta-direita do Fluminense, um grupo bem divertido.
Do Recife, resolvemos, eu e Anita, passar em Salvador. Como
se fosse possível, eu nunca havia estado na Bahia por mais de um dia ou dois,
fazendo shows. Desconfiando das minhas possibilidades para descobrir os
melhores programas, Anita insistia para que eu ligasse para o Caymmi, um
anfitrião respeitável.
Mas era a época da grande escalada turística. Bahia e
baianos estavam na ordem do dia, sua música e folclore eram o grande assunto
brasileiro, com todos os exageros a que tinham direito. No saguão do hotel, um
folheto turístico anunciava: “Pela manhã, visita a Itapuã. Almoço no Solar do
Unhão; à tarde, visita à igreja do Senhor do Bonfim. No final da tarde, antes
da volta ao hotel, visita à casa de Dorival Caymmi.”
Imaginando o pavor que o magnífico Dorival estava sentindo a
qualquer toque de campainha, não tive coragem inclusive de usar o telefone.
– Não dá, Anita. Vou ter que mentir que estou trazendo um
recado do Fernando Lobo, se ele disser para eu deixar na portaria do hotel, vou
morrer de vergonha. E se pedir para ele me indicar um bom restaurante, e ele me
indicar mesmo em vez de me convidar para casa dele, aí é pior ainda.
Resisti aos pedidos da Anita, resolvi descobrir sozinho um
lugar formidável e, quase colocando meu casamento em jogo, fui encontrando
fechados ou por fechar cada restaurante que me havia sido indicado no hotel.
Era uma segunda-feira e, mesmo na Bahia, segunda não é dia
de festa. Terminei antes os olhares de desprezo da Anita, jantando uma pizza,
na orla, na minha primeira noite em Salvador. Na manhã seguinte, com o orgulho
ferido, resolvi que iria descobrir novamente a Terra de Vera Cruz. E aluguei um
carro.
– Mas você não conhece nada. Como é que vai sair dirigindo
em Salvador. Se me levar para almoçar outra pizza, está tudo acabado entre nós.
Humilhado, não respondo nada. Sou avisado que o carro
alugado chegou. Meu Deus, um Opala roxo. Dessa vez, ela ficou com dó e só riu
disfarçadamente. Então eu desço a ladeira da Sete de Setembro (É claro que pelo
telefone eu reservei um hotel que NÃO ficava na praia, o que Anita também fez
questão de reparar.) Já com uma tremenda dor de cabeça, parei na primeira
farmácia para comprar um remédio, quando ouvir a voz salvadora.
– Oi, Miele, na Bahia, é? Chegou quando?
Era a Jesse, esposa de Vinicius. Ah, ah, ah (pensei eu
esperançoso).
– Oi, Jesse, cheguei ontem, para conhecer essa terra
maravilhosa. Pena que eu não conheça muita coisa.
– Tá hospedado onde?
(Favor ler essas linhas pensando no sotaque delicioso das
baianas lindas.)
– Num hotel meio sem graça, ali na Sete de Setembro, longe
da praia.
– Espere um pouco, que eu vou ligar pro Vinicius.
Momentos de suspense. Ela volta, maravilhosa.
– Vinicius mandou pegar suas malas e ir lá pra casa.
É difícil descrever o ar de superioridade com o qual voltei
para o carro e anunciei para Anita:
– Vamos para a casa do Vinicius, na beira da praia, em
Itapuã.
E assim passei a semana hospedado pelo poeta, o que
significava a possibilidade de privar das amizades de Caribé, Calazans, Jorge
Amado e até Mãe Menininha do Gantois, caso se apresentassem problemas de
maiores providências.
Mas não foi preciso. Ocorreu apenas uma ligeira gripe e eu
me contentei, orgulhoso, com uma injeção na bunda, aplicada por Marcos Vinícius
de Mello Franco Moraes.
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