Por Luiz Carlos Miele
Voltei ao Beco vinte anos depois. A boate, o Little Club, ainda está lá. Fui à tarde, a casa vazia, não tenho vontade de voltar lá à noite, não sei como os fantasmas queridos vão me receber. O mesmo palquinho ainda está lá também.
Como era possível que ali coubessem piano, baixo, bateria, Elis, Gaguinho e Marly Tavares? Ao mesmo tempo. Pois cabiam, cantavam e dançavam para as 40 pessoas que lotavam a casa. Um orgulho para os artistas e produtores, todos em início de carreira.
Mas o sucesso de Elis foi vertiginoso. Em poucas semanas, ela passou a ser requisitada para shows em todo o Brasil. Não havia como segurá-la, e ela passou a faltar sempre nos fins de semana, deixando todo mundo louco.
Não havia dinheiro para os cartazes, e o muro que ficava no fundo do Beco era o nosso outdoor. Lá ficava, em toda a extensão do muro, o anúncio “Hoje: Elis Regina”. Ronaldo pegou um balde de piche e um pincel, e “pichou” o nome da Elis, colocando um ponto final na temporada.
Foi a partir dessa atitude, quando toda a turma passou a comentar: “Rapaz, você viu só? O Bôscolli pichou a Elis Regina”, que a expressão ficou famosa no Rio de Janeiro.
Ronaldo nunca recusou a autoria e, ao contrário, tornou-se a maior autoridade latino-americana do “piche”. Ficou temido por isso e também passou a ser muito pichado. Como ele já nos deixou, o trono dos pichadores foi assumido com brilho e maldade insubstituíveis até o momento por Dori Caymmi.
Elis, é claro, ficou uma fera. E jurou horror eterno ao Ronaldo. Algum tempo depois, passado o primeiro ano do enorme sucesso de “O fino da bossa”, programa comandado por Elis e Jair Rodrigues, Manoel Carlos, que era o produtor, achou que estava na hora de se transformar num dos maiores autores de novelas do Brasil, e deixou o programa.
Luizinho Eça, que era diretor musical do programa, sugeriu a contratação da dupla Miele & Bôscoli. A reação da Elis foi imediata. Foi ao Paulinho de Carvalho, dono da TV Record, decidida a justificar o apelido de Pimentinha que foi dado a ela por Vinicius.
– Paulinho, eu soube que a Record está pensando em contratar Miele & Bôscoli. Pois bem, se eles vierem pra cá, para qualquer programa, mesmo que não seja o meu, eu vou para a Tupi.
É claro que nossa contratação foi adiada, mas o Luizinho continuou a campanha a nosso favor e, além dos arranjos, procurando a harmonia certa com a Elis. Finalmente, ela concordou. Em parte.
– OK, Paulinho. Pode trazer a dupla dinâmica. Mas eu só falo com o Miele. Com o Ronaldo, nem pensar. Ele que dê as idéias, faça os textos, e o Miele dirige o programa.
No primeiro encontro, na casa do Luizinho, criou-se uma situação ridícula. Criávamos uma nova canção para a abertura do programa. A Elis e o Luizinho numa sala, o Ronaldo em outra. Luizinho tocava as primeiras frases musicais e gritava para o Bôscoli: “Tá ouvindo daí, Ronaldo?” E o Ronaldo gritava de volta: “Alto e claro, deixa comigo” e escrevia o primeiro verso da letra. Eu levava o verso para o Luizinho ler e a Elis aprovar. Luizinho tocava as frases seguintes, Ronaldo escrevia os versos seguintes, eu levava os versos para serem aprovados. E era uma composição “para viagem”.
Durante essa palhaçada, Vinicius de Moraes, que entrava sem bater, tanto nas casas quanto no coração da gente, abriu a porta da rua e se deparou com aqueles personagens. Deu meia-volta e foi escrever “Eu sei que vou te amar” em outra freguesia. Na décima viagem, eu disse ao Ronaldo que aquela situação, além de absurda, estava ficando cansativa.
– Não esquenta não, Miele. Assim que ela me cumprimentar, eu caso com ela.
E casou. Eu fui um dos padrinhos, junto com o Dener e a Laurinha Figueiredo. O casamento foi na capela Mayrink, na Floresta da Tijuca. Na hora da cerimônia, o sacristão faltou, o padre me entregou um livrinho e me avisou:
– Cada vez que eu fizer um sinal com a cabeça, você lê uma das frases do livro.
Assim, eu participei da cerimônia de terno preto e barba no altar. Talvez, por isso, o repórter da Folha de S. Paulo escreveu: “Estranhamente, o casamento de Elis Regina e Ronaldo Bôscoli foi oficiado por um padre católico e um rabino.”
O casal foi morar numa casa linda, na encosta da avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, com uma tremenda visão do mar, de onde Elis, numa das discussões com o Ronaldo, atirou no próprio (no mar, não no Ronaldo) toda a maravilhosa coleção de LPs do Sinatra, que “o velho”, como ela o chamava (o Ronaldo, não o Sinatra), adorava. Foi engraçado, eu vinha chegando de moto e vi passando toda aquela coleção de discos voadores. E logo do Sinatra.
O casamento durou pouco para uns e até muito para outros. Eram dois temperamentos altamente combustíveis e explodiu logo. Outros casamentos vieram para eles, outros filhos. Ronaldo já se foi, Elis também. Ruy Castro escreveu que “Miele enxugou as lágrimas e foi em frente”.
Agora, eu ligo às vezes para o João Marcelo Bôscoli, diretor da gravadora Trama, ouço o CD do Pedro Camargo Mariano, ou vou assistir ao show da Maria Rita. E vou em frente.
Voltei ao Beco vinte anos depois. A boate, o Little Club, ainda está lá. Fui à tarde, a casa vazia, não tenho vontade de voltar lá à noite, não sei como os fantasmas queridos vão me receber. O mesmo palquinho ainda está lá também.
Como era possível que ali coubessem piano, baixo, bateria, Elis, Gaguinho e Marly Tavares? Ao mesmo tempo. Pois cabiam, cantavam e dançavam para as 40 pessoas que lotavam a casa. Um orgulho para os artistas e produtores, todos em início de carreira.
Mas o sucesso de Elis foi vertiginoso. Em poucas semanas, ela passou a ser requisitada para shows em todo o Brasil. Não havia como segurá-la, e ela passou a faltar sempre nos fins de semana, deixando todo mundo louco.
Não havia dinheiro para os cartazes, e o muro que ficava no fundo do Beco era o nosso outdoor. Lá ficava, em toda a extensão do muro, o anúncio “Hoje: Elis Regina”. Ronaldo pegou um balde de piche e um pincel, e “pichou” o nome da Elis, colocando um ponto final na temporada.
Foi a partir dessa atitude, quando toda a turma passou a comentar: “Rapaz, você viu só? O Bôscolli pichou a Elis Regina”, que a expressão ficou famosa no Rio de Janeiro.
Ronaldo nunca recusou a autoria e, ao contrário, tornou-se a maior autoridade latino-americana do “piche”. Ficou temido por isso e também passou a ser muito pichado. Como ele já nos deixou, o trono dos pichadores foi assumido com brilho e maldade insubstituíveis até o momento por Dori Caymmi.
Elis, é claro, ficou uma fera. E jurou horror eterno ao Ronaldo. Algum tempo depois, passado o primeiro ano do enorme sucesso de “O fino da bossa”, programa comandado por Elis e Jair Rodrigues, Manoel Carlos, que era o produtor, achou que estava na hora de se transformar num dos maiores autores de novelas do Brasil, e deixou o programa.
Luizinho Eça, que era diretor musical do programa, sugeriu a contratação da dupla Miele & Bôscoli. A reação da Elis foi imediata. Foi ao Paulinho de Carvalho, dono da TV Record, decidida a justificar o apelido de Pimentinha que foi dado a ela por Vinicius.
– Paulinho, eu soube que a Record está pensando em contratar Miele & Bôscoli. Pois bem, se eles vierem pra cá, para qualquer programa, mesmo que não seja o meu, eu vou para a Tupi.
É claro que nossa contratação foi adiada, mas o Luizinho continuou a campanha a nosso favor e, além dos arranjos, procurando a harmonia certa com a Elis. Finalmente, ela concordou. Em parte.
– OK, Paulinho. Pode trazer a dupla dinâmica. Mas eu só falo com o Miele. Com o Ronaldo, nem pensar. Ele que dê as idéias, faça os textos, e o Miele dirige o programa.
No primeiro encontro, na casa do Luizinho, criou-se uma situação ridícula. Criávamos uma nova canção para a abertura do programa. A Elis e o Luizinho numa sala, o Ronaldo em outra. Luizinho tocava as primeiras frases musicais e gritava para o Bôscoli: “Tá ouvindo daí, Ronaldo?” E o Ronaldo gritava de volta: “Alto e claro, deixa comigo” e escrevia o primeiro verso da letra. Eu levava o verso para o Luizinho ler e a Elis aprovar. Luizinho tocava as frases seguintes, Ronaldo escrevia os versos seguintes, eu levava os versos para serem aprovados. E era uma composição “para viagem”.
Durante essa palhaçada, Vinicius de Moraes, que entrava sem bater, tanto nas casas quanto no coração da gente, abriu a porta da rua e se deparou com aqueles personagens. Deu meia-volta e foi escrever “Eu sei que vou te amar” em outra freguesia. Na décima viagem, eu disse ao Ronaldo que aquela situação, além de absurda, estava ficando cansativa.
– Não esquenta não, Miele. Assim que ela me cumprimentar, eu caso com ela.
E casou. Eu fui um dos padrinhos, junto com o Dener e a Laurinha Figueiredo. O casamento foi na capela Mayrink, na Floresta da Tijuca. Na hora da cerimônia, o sacristão faltou, o padre me entregou um livrinho e me avisou:
– Cada vez que eu fizer um sinal com a cabeça, você lê uma das frases do livro.
Assim, eu participei da cerimônia de terno preto e barba no altar. Talvez, por isso, o repórter da Folha de S. Paulo escreveu: “Estranhamente, o casamento de Elis Regina e Ronaldo Bôscoli foi oficiado por um padre católico e um rabino.”
O casal foi morar numa casa linda, na encosta da avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, com uma tremenda visão do mar, de onde Elis, numa das discussões com o Ronaldo, atirou no próprio (no mar, não no Ronaldo) toda a maravilhosa coleção de LPs do Sinatra, que “o velho”, como ela o chamava (o Ronaldo, não o Sinatra), adorava. Foi engraçado, eu vinha chegando de moto e vi passando toda aquela coleção de discos voadores. E logo do Sinatra.
O casamento durou pouco para uns e até muito para outros. Eram dois temperamentos altamente combustíveis e explodiu logo. Outros casamentos vieram para eles, outros filhos. Ronaldo já se foi, Elis também. Ruy Castro escreveu que “Miele enxugou as lágrimas e foi em frente”.
Agora, eu ligo às vezes para o João Marcelo Bôscoli, diretor da gravadora Trama, ouço o CD do Pedro Camargo Mariano, ou vou assistir ao show da Maria Rita. E vou em frente.
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