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quinta-feira, novembro 30, 2017

Poeira de Estrelas – Histórias de Boemia, Humor e Música (final)


Por Luiz Carlos Miele

Na verdade, o que eu gostaria mesmo era terminar essas lembranças com uma grande festa. Em que os convidados fossem todos aqueles que fizeram essa Poeira de estrelas. Os que ainda estão conosco e aqueles que já foram para o infinito. Que já viraram estrelas, como no texto de Elis: “Agora, eu sou uma estrela.” É isso aí. Estão todos convidados.

Vejam só em que festa de arromba de repente eu fui parar. Roberto e Erasmo, que raramente são vistos juntos em qualquer outra festa, vieram prestigiar a minha. Estão compondo juntos novamente, para felicidade geral da nação. Eu mudei um pouco a letra da Festa de Arromba:

Vejam quem chegou de repente
Erasmo Carlos em seu novo carrão
Roberto tira um sarro guiando um caminhão
Levando na boléia a Fafá e a Wanderléa
Eu também tô nessa, nessa festa não vou só
Pego uma carona com Chitãozinho e Xororó.
Eh, eh, que onda que festa de arromba.

Os convidados continuam a chegar. Elis passa às gargalhadas, cantando que “tá cada vez mais down no high-society”. Várias biografias da Elis ignoraram sua fase “Miele & Bôscoli”. Achavam que era politicamente incorreto uma cantora do porte da Elis ficar dançando e sapateando comigo, fazendo graça, cantar vestida de Carlitos etc. Eu adorei. E como Gonzaguinha, que está tomando uma batida de limão ali no bar, fico com a pureza do sorriso das crianças, e com a manchete do Jornal do Brasil, no dia seguinte da estréia do show com Elis: “Elis deu o salto.”

Fagner chegou que eu já vi
Tá dançando com a Rita Lee
Até Lulu Santos faz parte da patota
Saiu o Ed Wilson, mas entrou o Ed Motta
Marina diz que a festa só acaba de manhã
Emílio Santiago vai cantar com Djavan
Eh, eh, que onda, que festa de arromba

E atenção, a Adeg informa: entra Roberto Menescal na festa e na minha vida. Vem com ele, é claro, Wanda Sá. Durante um show dos dois, eu comecei a fazer umas graças da platéia, até que eles me chamaram para o palco. Ficamos improvisando durante uns 40 minutos, até que o dono da casa nos convidou para fazermos juntos o próximo show.

Fizemos Uma Mistura Fina. Depois, em face do estrondoso sucesso do CD que gravamos (minha mãe comprou o outro), fizemos novo show, Apenas Bons Amigos. Daí pra frente, Menescal me convenceu de que, além de contar piadas, eu podia também cantar. O que fez com que um crítico tenha dito para ele: “Ah, então foi você.”

A festa continua animadíssima. Minha irmã Eliana está muito emocionada com a presença de tantos artistas famosos, alguns deles seus ídolos. Ela é muito emotiva e chora facilmente quando encontra um deles. Principalmente os que já morreram. Silvio Caldas pergunta para Billy Eckstine porque é que ele não senta durante uma hora antes de começar o show:

– É para não amassar o vinco da calça do smoking.

Igual ao pessoal do Rappa, não é mesmo?

Paulinho da Viola cantava na piscina
Simone no terraço, Alcione no salão
Tim Maia não vem mesmo, eu quero meu ingresso
Acabaram de chegar os Paralamas do Sucesso

Num canto da sala, Tim Maia é entrevistado pelo Otávio Mesquita, que ele insiste em chamar de Amaury Jr. Só de sacanagem, é claro:

– Ô Amaury/Otávio, já sei que você vai me perguntar sobre o negócio de drogas. Seguinte: vou declarar aqui de uma vez por todas para seus milhões de telespectadores. Eu não bebo, não cheiro e não fumo. Só tenho um defeito na vida. Minto pra cacete.

Durante toda a carreira, Tim nunca faltou a um compromisso profissional comigo. Aproveito e convido ele para fazer um show numa convenção.

– Tudo bem, Mielão. O show é só comigo?

– Não, o cliente quer três artistas bem diferentes. Você, o João Gilberto e o Baden.

– Tá legal. Então, também não vou.

É festa, é festa, é festa, é festa. Até o sol raiar. Simone chega de braços com o Ivan Lins e o Paulinho Cesar Pinheiro, autores do seu novo sucesso. Vieram juntos com o Manoel Poladian, empresário competente e muito vivo, que veio ver de perto o conjunto que tem a Cris Delano e o filho do Menesca no grupo. É o Bossacucanova, que fez um tremendo sucesso na entrega do Grammy.

Quando o livro da festa for publicado, eles já devem estar também fazendo um grande sucesso no Brasil. Se não, azar do sucesso. Eles cantam os grandes sucessos da Bossa Nova, incrementados com uma batida atual, participação do DJ Marcelinho da Lua etc. Quer dizer que o meu sobrinho, Quico, adora. Meu sobrinho mesmo. Filho da minha irmã. Tem que explicar direto se não fica aquela coisa das bichas que apresentam seus garotões:

– Oi, querido (a). Conhece meu sobrinho?

– Claro que conheço. Ele foi meu sobrinho na semana passada.

E a zoeira continua. Que vai rolar a festa, canta Ivete Sangalo, junto com a Daniela Mercury, que eu apresentei no início da carreira, no programa Coquettel, que eu fazia no SBT e que o Jô anunciava assim:

– Não percam, a seguir: Coquetetas.

Grandes Jô Soares. Ele está numa roda formidável. Não dá pra saber quem está rindo de quem. Estão todos juntos lá: os maiores humoristas do mundo. Jô, Agildo, Chico Anísio, Cantinflas, Danny Kay, Jerry Lewis, Paulo Silvino, Oscarito & Grande Otelo, Fernandel, Totó, Tom Cavalcante e todo o elenco maravilhoso da Escolinha do Barulho da TV Record, do qual adorei ter participado. Como adorei ter participado da Praça da Alegria nos domingos antigos da Globo. Eu tinha um certo preconceito idiota quanto ao humor “popular”. Aprendi com o Ronaldo Golias que só existem dois tipos de humor no mundo: engraçado e sem graça.

Falando nisso, Dercy Gonçalves aproveita para mandar tudo pra puta que pariu, principalmente a idade.

Lembro que, para a Praça da Alegria, foi o Boni que insistiu para que eu fosse escalado. O diretor de humorismo da Globo era o Lucio Mauro, que estranhou:

– Mas Boni, Miele não tem nada a ver com aqueles humoristas. O Miele está sempre de smoking nas boates, imitando aqueles musicais da Metro.

Mas Boni bateu o pé e eu fiquei durante um ano, sentado no banco da praça, onde está hoje Carlos Alberto de Nóbrega, com a maior autoridade. Que lhe foi legada por seu pai, o grande Manoel de Nóbrega, de quem eu fui assistente de estúdio, no começo da carreira. As voltas que o mundo deu, até chegar nessa festa. Aproveito para dar um abraço no Lucio Mauro e vamos rindo dessa história e de nossas próprias piadas, pois dela é que os humoristas gostam mais.

De repente, vou ficando com muita saudade dos programas dos quais falei.

Aliás, vou ficando com saudade de qualquer programa, pois estou fora da televisão há algum tempo. É difícil me acostumar com isso, pois estive na TV desde a inauguração da primeira emissora: a PRF3-TV Tupi de São Paulo. Não faz mal. Daqui a pouco alguma outra emissora convence o Boni a voltar, e a TV brasileira volta a ser uma das melhores do mundo. Acho que o Boni é insubstituível. Para mim, ele deixou a Globo num fim de semana e na segunda-feira toda a televisão brasileira piorou.

Enquanto isso, ele está batendo um papo com o Astor Piazzola, como ele, um transformador. No caso do Piazzola, do tango. Por conta de uma grande amizade, Carlos Valenzuela, advogado argentino, me mandou há muitos anos vinte LPs de Piazzola, por cuja música eu havia me apaixonado. Era o primeiro disco dele, chamava-se Tango em Hi-Fi. Os vinte LPs eram iguais e andei distribuindo para os músicos e compositores brasileiros que ainda não conheciam o novo tango. Vários deles, quando iam a Buenos Aires, comentavam isso com o próprio Piazzola e, assim, ficamos íntimos sem nos conhecermos.

Quando ele veio pela primeira vez ao Brasil, para tocar numa festa da embaixada da Argentina, descobriu meu telefone e pediu para que eu apresentasse o show, lembrando que eu devia explicar o que era o novo tango, temendo que os tradicionais convidados do embaixador fossem odiar as ousadas harmonias e andamentos que ele introduziu. Não deu outra. Somente quando ele tocou Uno é que a platéia aplaudiu com entusiasmo.

Depois do show, ele perguntou quanto me devia pela apresentação e eu respondi que não devia nada, é claro, que era uma honra e tal. Mas ele queria pagar de qualquer maneira e eu disse que ficaria já muito feliz se ele fosse assistir ao show que Miele & Bôscoli orgulhosamente apresentavam como sua primeira produção no Teatro Santa Rosa, Quem tem bossa vai à Rosa, com Simonal, Marly Tavares e o Bossa Três.

Ele não só foi, como levou o quinteto com os instrumentos e pediu para tocar no intervalo, como forma de, finalmente, me pagar. A platéia, fascinada com o suingue, o talento e a pilantragem do Simonal, quase me bateu, quando eu anunciei que antes do segundo ato ia apresentar o quinteto de tangos de um amigo argentino. Pois para tirar o homem do palco, depois do primeiro número, foi um sufoco, tal o sucesso.

O próprio Simonal foi para platéia e só reiniciou o show quase uma hora depois. Eles mesmos, Simonal e Piazzola, podem confirmar isso, pois estão ali, num canto da festa, conversando com o Luiz Carlos Vinhas sobre como o Rio de Janeiro era mais divertido. Mas vem chegando mais gente pra nossa festa.

O ministro Gil, que legal
Eu já tô a mil, pinta a Gal
E Milton Nascimento, legal prazer em vê-lo
Bethânia traz Caetano e o caracol dos seus cabelos
Chega mais um craque pra cantar com nossa banda
Chico “paratodos” de Buarque de Holanda
Eh, eh, que onda, que festa de arromba.

Como todas as mulheres da festa, Chiara, minha sobrinha, fica entusiasmada com a chegada do Chico. Ela é jornalista do bloco inteligente, portanto não vai pedir uma entrevista com ele durante a festa. A jornalista fica frustrada, mas a mulher vai fantasiando uma das letras maravilhosas:

“E, na solidão do armário embutido,
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o teu sapato ainda pisa no meu.”

Rita Lee, que não usa mais a saia justa, lembra que já arrombou a festa: “Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu, com a música popular brasileira?” Rita continua acontecendo. Cantando e compondo. E na sala ao lado, explica para Maria Rita por que nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda. Falando nisso, passa uma ótima, e eu mais o Rito Luiz vamos atrás dela. Pra ver a bunda passar.

Rito foi meu secretário-amigo-empresário durante mais de 20 anos. Quando ele se foi, prematuramente, fez muita falta, principalmente o amigo. Lembro de uma sacada genial dele. Quando chegamos em Macapá, no trajeto do aeroporto para o clube, ele me disse:

– Miele, não é por nada não, mas acho melhor você tirar aquelas frescuras sofisticadas do teu show, como a canção do Cole Porter e a Balada para um Louco. Inclusive, nem acho bom usar o smoking inglês, porque acho que seu show não vai dar pé por aqui.

– Mas não vai dar pé por quê, Rito?

– É que eu reparei que todos os hotéis são térreos.

Bem, nossa festa é numa casa maravilhosa. Nosso anfitrião é o Lula Freire e a gente lembra que, nos tempos do início da Bossa Nova, a turma da música ficava numa sala, enquanto na outra, seu pai, o senador Vitorino Freire, recebia sempre o presidente Juscelino. Conviviam todos muito bem. Eles não davam palpite nas nossas músicas e nós nunca interferimos nos destinos do país (a não ser, talvez, musicalmente). De qualquer maneira, Juscelino era o presidente bossa-nova, segundo Juca Chaves, que não era da Bossa Nova.

Vinicius chega na nossa rodinha pra confirmar essa história. Ele e Baden estavam sempre lá, sendo que o poetinha chegava a qualquer hora do dia ou da noite. Mesmo que não houvesse ninguém nem dono da casa, nem senhor ou presidente, a empregada servia um uisquinho e ficava ouvindo em primeira mão que a lua que no céu surgiu não foi a mesma que se viu brilhar nos olhos teus. Não conheci a empregada, não sei se era bonita, nem se foi inspiração para uma das frases mais surpreendentes que já ouvi do poeta:

– E então Mielinho, o cara estava com um tesão extraordinário, sabe? (risos) Um tesão insuportável, daquele tesão que a gente sentia pelas empregadas.

Vai ver que foi por isso que o Lula escreveu pra ele:

“Que seja na medida e nada mais
Feitinha pro Vinicius de Moraes.”

Minha outra irmã, Regina, vem avisar que o Eduardo Dusek não vai poder ir à gravação do meu DVD. Que pena. Não vai assistir ao número em que eu vou dançar com o Carlinhos de Jesus. Que peito, hein? Mas o Carlinhos vai fazer o número comigo só de farra. Só para mostrar que eu já me recuperei da fratura da rótula. Até quebrar, eu nem lembrava para que é que existia a rótula. Mas é incrível o que você NÃO pode fazer com a rótula fraturada.

Nesse período da cadeira de rodas-andador-muleta-bengala, Regina foi o meu anjo da guarda. Ela me lembra que, além do Carlinhos de Jesus, Simoninha, Menescal, Wanda e Guta Menezes, que toca pistom e gaita, a turma que participou do DVD, acabou de chegar. Essa foi uma maneira sutil como uma revoada de búfalos para lembrar a você, caro leitores, que, quando do fim dessa festa, o DVD também estará à venda. Assim, ao assisti-lo, você talvez possa dizer: “Gostei mais do livro.”

A turma toda já está indo embora, é quase de manhã. A festa acabou. E agora, José? Carlinhos Lyra avisa à rapaziada:

“Vamos, carioca, é hora da gente trabalhar.”

Vou apagando as luzes e na rua pego no bolso aquela garrafinha de metal para uísque, presente de uma fã. Quando tiro a tampinha, sai um gênio completamente de porre, cantando:

O show já terminou…

Mas o gênio está por fora. Meu show ainda vai continuar.

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