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quinta-feira, novembro 16, 2017

Os alquimistas já estão no corredor


Por Miguel Duclós

Esta entrevista de Carlos Castañeda para a revista Psychology Today, em 1972, saiu logo depois da publicação do terceiro livro do autor, Viagem a Ixtlan. Castañeda estava procurando desvencilhar-se da alcunha de guru das drogas psicodélicas que havia recebido com a publicação dos primeiros livros.

Este entrevistador, Sam Keen, talvez tenha sido o mais competente na formulação de perguntas. Sua formação em filosofia e teologia em Harvard e Princeton o fazem buscar paralelos entre os ensinamentos e as tradições ocidentais e orientais já conhecidas. Aparece aqui até uma curiosa afirmação de Don Juan a respeito do filósofo austríaco Wittgenstein. Leia a seguir.

Sam Keen – Como eu acompanhei Don Juan através de seus três livros, suspeitei, às vezes, que ele era uma criação de Carlos Castañeda. Ele é quase bom demais para ser verdade. Um índio velho e sábio cujo conhecimento da natureza humana é superior ao de quase todo mundo.

Carlos Castaneda – A idéia de que eu forjei uma pessoa como Don Juan não é convincente. Ele dificilmente seria o tipo de figura que minha tradição intelectual européia levaria a conceber. A verdade é sempre algo muito estranho. Eu não estava sequer preparado para fazer as mudanças na minha vida que a minha associação com Don Juan requisitou.

Como e quando você encontrou Don Juan e tornou-se seu aprendiz?

Eu estava terminando meu trabalho de conclusão de curso na UCLA e planejando ir para a graduação em antropologia. Estava interessado em me tornar professor e pensei que poderia começar de maneira apropriada publicando um ensaio curto sobre plantas medicinais. Não podia ter me importado menos por encontrar um esquisitão como Don Juan. Eu estava em uma estação de ônibus no Arizona com um amigo do tempo do colégio. Ele apontou um velho índio yaqui e disse que ele tinha conhecimento sobre peiote e plantas medicinais. Fiz a melhor cara que pude e me apresentei a Don Juan dizendo: “Entendo que você sabe muito acerca do peiote. Eu sou um especialista em peiote (eu havia lido o livro de Weston La Barre's, O ritual do peiote) e pode ser gratificante para você almoçar e passar um tempo comigo”. Bem, ele apenas me lançou um olhar e minha audácia dissolveu-se. Fiquei completamente tímido e paralisado. Eu normalmente era muito vigoroso e falante, então foi um negócio sério ser silenciado com um olhar. Depois disso, comecei a visitá-lo e cerca de um ano depois ele disse-me que gostaria de me repassar o conhecimento da feitiçaria que havia obtido com seu mestre.

Então Don Juan não é um fenômeno isolado, mas faz parte de um grupo de feiticeiros que compartilham um conhecimento secreto?

Certamente. Conheço três feiticeiros e sete aprendizes e existem muitos mais. Se você pesquisar a história da conquista espanhola no México, encontrará que os inquisidores católicos tentaram acabar com a feitiçaria porque a consideraram como uma coisa do demônio. Ela tem estado por aí há muitos milhares de anos. A maioria das técnicas que Don Juan me ensinou é muito antiga.

Algumas das técnicas que os feiticeiros usam é amplamente usada também por outros grupos secretos. As pessoas às vezes usam os sonhos para encontrar objetos perdidos, e vão para jornadas fora-do-corpo durante seu sono. Mas quando você diz como Don Juan e seu amigo Don Genaro fizeram o carro desaparecer durante a plena luz do dia, eu poderia apenas coçar a cabeça. Eu sei que um hipnotista pode criar a ilusão de presença ou ausência de um objeto. Você acredita que foi hipnotizado?

Talvez, alguma coisa deste tipo. Mas temos que começar por perceber, como diz Don Juan, que existe muito mais no universo do que normalmente confessamos conhecer. Nossas expectativas usuais acerca da realidade são criadas por um consenso social. Nos ensinam como ver e perceber o mundo. O truque da socialização consiste em nos convencer que as descrições que estamos de acordo definem os limites do mundo real. O que chamamos de realidade é apenas um modo de ver o mundo, um modo que é sustentando pelo consenso social.

Então um feiticeiro, como um hipnotizador, cria um mundo alternativo construindo diferentes expectativas e fornecendo pistas premeditadas para produzir um consenso social.

Exatamente. Eu comecei a entender feitiçaria nos termos da idéia de “interpretação” (“glosses”) de Talcott Parsons. Uma interpretação (“gloss”) é um sistema completo de percepção e linguagem. Por exemplo, esta sala e é uma interpretação. Nós reunimos juntos uma série de percepções isoladas – chão, teto, janela, luzes, tapete, etc – para compor uma totalidade. Mas nós temos que ser ensinados a dispor o mundo junto desta forma. Uma criança experimenta o mundo com poucos pré-conceitos até que é ensinada a vê-lo de uma forma que corresponde à descrição que todos compartilham. O sistema de interpretações parece um pouco com caminhar. Nós temos que aprender a caminhar, mas uma vez que aprendemos ficamos sujeitos à sintaxe da linguagem e ao modo de percepção que ela contém.

Então a feitiçaria, assim como a arte, ensina um novo sistema de anotações. Quando, por exemplo, Van Gogh rompe com a tradição artística e pinta “O Céu Estrelado” (“The Starry Night”), ele estava efetivamente dizendo: aqui está uma nova maneira de ver as coisas. As estrelas estão vivas e rodam em volta de seus campos energéticos.

De uma certa forma. Mas existe uma diferença. Um artista normalmente apenas rearranja as velhas anotações que são apropriadas para seu grupo.

Don Juan estava lhe dessocializando ou ressocializando? Ele estava lhe ensinando um novo sistema de significados ou apenas um método para esvaziar o antigo sistema para que assim você pudesse ver o mundo como uma criança fascinada?

Don Juan e eu discordamos quanto a isto. Eu digo que ele está me “reinterpretando” (“reglossing”). Ensinando-me feitiçaria me deu um novo conjunto de interpretações, uma nova linguagem e uma nova maneira de ver o mundo. Uma vez eu li um pouco da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein e ele riu e disse: “Seu amigo Wittgenstein amarrou o nó com muita força em torno de próprio pescoço, assim ele não pode ir muito longe”.

Wittgenstein é um dos poucos filósofos que poderia ter entendido Don Juan. Sua noção de que existem muitos tipos diferentes de jogos de linguagem – ciência, política, poesia, religião, metafísica, cada um com sua própria sintaxe e regras – poderia ter permitido a ele entender a feitiçaria como um sistema alternativo de percepção e entendimento.

Mas Don Juan pensa que o que ele chama de “ver” é apreender o mundo sem nenhuma interpretação. Este é o fim almejado pela feitiçaria. Para quebrar a certeza do mundo que sempre lhe foi ensinado, você deve aprender uma nova descrição do mundo – feitiçaria – e então manter a velha e a nova juntas. Então você percebe que nenhuma das duas é final. No momento que você desliza entre as descrições, você pára o mundo e vê. Você é deixado com o assombro, o verdadeiro assombro de ver o mundo sem nenhuma interpretação.

Você pensa que é possível ultrapassar as interpretações usando drogas psicodélicas?

Eu penso que não. Está é minha briga com gente como Timothy Leary. Eu penso que ele estava improvisando dentro da sociedade européia e rearrumando meramente velhos sistemas de interpretação. Eu nunca tomei LSD, mas o que entendi dos ensinamentos de Don Juan é que os psicotrópicos são usados para interromper o fluxo das interpretações ordinárias, para aumentar as contradições dentro das interpretações e para romper as certezas. Mas somente as drogas não possibilitam você parar o mundo. Por isso que Don Juan teve de me ensinar feitiçaria.

Existe uma realidade normal que nós, ocidentais, pensamos que é “o” único mundo, e existe também a realidade a parte do feiticeiro. Quais as diferenças essenciais entre elas?

Na sociedade européia o mundo é construído em grande parte pelo que os olhos informam à mente. Na feitiçaria o corpo todo é usado como recipiente. Como europeus vemos o mundo ao redor de nós e falamos sobre ele. Nós estamos aqui e o mundo está lá. Os nossos olhos alimentam a razão e não temos conhecimento direto das coisas. De acordo com a feitiçaria esta sobrecarga dos olhos é desnecessária. Nós percebemos com o corpo total.

Ocidentais partem do pressuposto que sujeito e objeto são separados. Nós existimos a parte do mundo e temos de cruzar o vácuo para chegar até ele. Para Don Juan e a tradição dos feiticeiros, o corpo já está no mundo. Nós estamos unidos ao mundo, e não alienados dele.

Isso mesmo. A feitiçaria tem uma teoria diferente de personificação. O problema da feitiçaria é o de harmonizar e arrumar seu corpo para ser um bom receptor. Os europeus lidam com seus corpos como se eles fossem um objeto. Nós os enchemos de álcool, comida ruim e inquietações. Se alguma coisa está errada nós pensamos que germes de fora invadiram o corpo e então importamos algum medicamento para curá-lo. A doença não é parte de nós. Don Juan não acreditava nisso. Para ele a doença é a desarmonia entre um homem e seu mundo. O corpo é consciente e deve ser tratado impecavelmente.

Isto parece similar à idéia de Norman O. Brown onde as crianças, esquizofrênicos e aqueles com loucura divina da consciência  dionisíaca estão cientes das coisas e das outras pessoas como extensões de seu corpo. Don Juan sugere algo do tipo quando diz que os homens de conhecimento têm fibras de luz que conectam seu plexo solar ao mundo.

Minha conversa com o coiote é um bom exemplo das diferentes teorias de personificação. Quando ele chegou para mim eu disse: “Olá, pequeno coiote. Como você está?”. E ele respondeu de volta: “Estou bem. E você?”. Aqui eu não escutei as palavras da forma normal. Mas meu corpo sabia que o coiote estava dizendo alguma coisa e eu traduzi isto em um diálogo. Como um intelectual, minha relação com o diálogo é tão profunda que meu corpo automaticamente transpôs para palavras o sentimento que o animal estava comunicando a mim. Nós sempre vemos o desconhecido nos termos do conhecido.

Quando você estava no modo mágico de consciência onde os coiotes falam e tudo é adequado e entendido parece que o mundo todo está vivo e o ser humano está em comunicações que incluem animais e plantas. Se abandonarmos nossas concepções arrogantes de que somos a única forma de vida que conhece e comunica talvez conseguíssemos perceber toda a sorte de coisas se comunicando conosco. John Lilly falava com os golfinhos. Talvez nos sentíssemos menos alienados se pudéssemos acreditar que não somos a única forma inteligente de vida.

Nós podemos nos tornar capazes de falar com qualquer animal. Para Don Juan e os outros feiticeiros não havia nada de estranho na minha conversa com o coiote. Na verdade eles disseram que eu deveria ter pegado um animal mais confiável para amigo. Coiotes são trapaceiros e não pode se confiar neles.

Quais animais são os melhores para serem amigos?

Cobras são amigos estupendos.

Uma vez conversei com uma cobra. Uma noite sonhei que havia uma cobra no sótão da casa onde eu vivia quando era criança. Peguei um pau e tentei matá-la. De manhã falei sobre o sonho a um amigo e ela me disse que não era uma coisa boa matar cobras, mesmo se elas estivessem no sótão em um sonho. Ela me sugeriu que na próxima vez que aparecesse uma cobra em sonho eu deveria alimentá-la ou fazer alguma coisa para atrair sua amizade. Cerca de uma hora depois eu estava dirigindo meu patinete motorizado numa estrada pouco usada e lá, esperando por mim, estava uma cobra de quatro pés, estirada no seu banho de sol. Eu a contornei e ela não se mexeu Depois de nos olharmos um nos outros por um tempo eu pensei que deveria fazer algum gesto para mostrar que estava arrependido de ter matado seu irmão em meu sonho. Eu cheguei perto e toquei sua cauda. Ela se enrolou mostrando que eu havia invadido sua intimidade. Então eu voltei e fiquei apenas olhando. Cinco minutos depois lá se foi ela atrás dos arbustos.

Você não a espetou?

Não.

Era uma amiga muito boa. Um homem pode aprender a chamar as serpentes. Mas você precisa estar em excelente forma, calmo, controlado, com um humor amigável, sem nenhuma dúvida ou assuntos pendentes.

A cobra me ensinou que eu sempre tinha pensamentos paranóicos em relação à natureza. Eu considerava animais e cobras perigosos. Após meu encontro jamais mataria outra cobra e começou a ser mais plausível para mim que nós possamos ter uma espécie de conexão viva. Nosso ecossistema pode muito bem incluir comunicações com outras formas de vida.

Don Juan tinha uma teoria muito interessante acerca disso. As plantas, assim como os animais, sempre afetam você. Ele dizia que se você não pedisse desculpas para as plantas por colhê-las você provavelmente ficaria doente ou sofreria um acidente.

Os índios americanos têm crenças similares sobre os animais que eles matam. Se você não agradece o animal por dar a vida para que você possa viver, seu espírito pode lhe causar problemas.

Nós temos uma associação com toda forma de vida. Alguma coisa se altera toda vez que machucamos a vida vegetal ou animal. Nós tiramos a vida para sobreviver, mas devemos querer abrir mão de nossa própria vida sem ressentimentos quando chegar nossa vez. Nós somos tão importantes e nos levamos tão a sério que esquecemos que o mundo é um grande mistério que pode nos ensinar se escutarmos.

Talvez as drogas psicodélicas momentaneamente limpem o ego isolado e permitam uma fusão mítica com a natureza. A maior parte das culturas que conservam um senso de união entre o homem e a natureza também fez uso cerimonial das drogas psicodélicas. Você estava usando peiote quando falou com o coiote?

Não, de maneira alguma.

Esta experiência foi mais intensa das que teve quando Don Juan lhe ministrou plantas psicotrópicas?

Muito mais intensa. Todas as vezes que eu tomei plantas psicotrópicas eu sabia que havia ingerido algo e sempre podia questionar-me acerca da validade das minhas experiências. Mas quando o coiote falou comigo eu não tinha desculpas. Não podia explicar isso. Eu realmente parei o mundo e saí completamente do meu sistema de interpretações europeu.

Você acredita que Don Juan vive neste estado de atenção a maior parte do tempo?

Sim, ele vive num tempo mágico e ocasionalmente volta para o tempo normal. Eu vivo no tempo normal e ocasionalmente entro no tempo mágico.

Qualquer um que tenha viajado tão longe além do desgastado consenso deve ser alguém muito solitário.

Penso que sim. Don Juan vive num mundo impressionante e deixou as pessoas rotineiras bem longe. Uma vez eu estava junto com Don Juan e seu amigo Don Genaro e vi a solidão que eles dividiam e sua tristeza em deixar para trás os enfeites e pontos de referência da sociedade normal. Penso que Don Juan transformou sua solidão em arte. Ele contém e controla seu poder, mistério e solidão e os transforma em arte. Sua arte é o caminho metafórico em que ele vive. É por causa disso que seus ensinamentos têm tanta carga dramática e unidade. Ele deliberadamente constrói sua arte e sua maneira de ensinar.

Por exemplo, quando Don Juan levou-o às montanhas para caçar animais estava conscientemente encenando uma alegoria?

Sim. Ele não estava interessado em caçar por esporte ou por comida. Há 10 anos que o conheço e o vi matar apenas quatro animais, e apenas nas vezes em que ele viu que suas mortes eram um presente para ele, assim como sua própria morte um dia será um presente para alguma coisa. Uma vez apanhamos um coelho numa armadilha, ficamos imóveis e Don Juan achou que eu devia matá-lo, pois seu tempo havia acabado. Fiquei desesperado porque eu tinha a sensação de que eu mesmo era o coelho. Eu tentei libertá-lo, mas não conseguia abrir a armadilha. Então eu pisei na armadilha e quebrei acidentalmente o pescoço do coelho. Don Juan estava tentando me ensinar a assumir a responsabilidade por estar neste mundo maravilhoso. Ele inclinou-se e sussurrou no meu ouvido: “Eu lhe disse que este coelho não tinha mais tempo para vagar por este lindo deserto”. Ele conscientemente construiu a metáfora para me ensinar sobre os caminhos de um guerreiro. Um guerreiro é alguém que caça e acumula poder pessoal. Para fazer isto ele deve desenvolver a paciência e se mover deliberadamente sobre o mundo. Don Juan usou a situação dramática da caçada para me ensinar porque estava se dirigindo diretamente ao meu corpo.

Em seu livro mais recente, Viagem a Ixtlan, você revê a impressão dada nos primeiros livros de que o uso de plantas psicotrópicas era o método principal usado por Don Juan no intuito de ensiná-lo sobre a feitiçaria. Como você vê agora o lugar dos psicotrópicos em seus ensinamentos?

Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações. Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível muito baixo.

Don Juan usa drogas psicotrópicas regularmente para parar o mundo?

Não. Ele pode agora mesmo pará-lo com a sua vontade. Ele me disse que para mim a tentativa de ver sem a ajuda das plantas seria inútil. Mas se eu me comportasse como um guerreiro e assumisse a responsabilidade não precisaria delas; elas apenas enfraqueceriam meu corpo.

Isso pode soar um pouco chocante para vários admiradores seus. Você é uma espécie de santo patrono da revolução psicodélica.

Eu tenho seguidores e eles têm idéias estranhas a respeito de mim. Eu estava andando para dar uma palestra no Califórnia State, em Long Beach, outro dia e um rapaz que me conhecia me apontou para uma garota e disse: “Ei, esse é o Castaneda!”. Ela não acreditou nele porque tinha a idéia de que eu deveria parecer muito sobrenatural. Um amigo estava reunindo algumas das histórias que circulavam sobre mim. O consenso era que eu havia feito uma façanha mística.

Façanha mística?

Sim, que eu andava de pés descalços como Jesus e não tinha calos. As pessoas acham que devo estar doidão a maior parte do tempo. Eu também cometi suicídio e morri em vários lugares diferentes. Um colega de departamento quase fez um escândalo quando eu comecei a falar sobre fenomenologia e sociedade e explorar o conceito de percepção e socialização. Eles queriam que eu falasse pausadamente, os deixasse altos e fizesse suas cabeças. Mas para mim o entendimento é importante.

Os rumores voam no vácuo de informações. Sabemos alguma coisa de Don Juan e muito pouco de Castaneda.

Isto é uma parte proposital da vida do guerreiro. Para escapulir dentro e fora de diferentes mundos você deve permanecer discreto. Quanto mais você ser conhecido e identificado, mais sua liberdade vai ser reduzida. Quando as pessoas tiverem idéias definitivas sobre quem é você e como você vai agir, você não poderá mais se mexer. Uma das primeiras coisas que Don Juan me ensinou foi que eu tinha que apagar minha história pessoal. Se aos poucos você criar uma névoa em torno de si então você não vai ser tomado como garantia e você tem mais espaço para se mexer. É por causa disso que eu impeço gravações de áudio e fotografias quando dou palestras.

Talvez possamos ser pessoais sem sermos históricos. Você agora minimizou a importância da experiência psicodélica em relação ao seu aprendizado. E você não parece sair por aí fazendo o tipo de truques disponíveis no estoque dos feiticeiros. Que elementos dos ensinamentos de Don Juan são importantes para você? Você foi mudado por eles?

Para mim as idéias de ser um guerreiro e um homem de conhecimento, com a esperança de eventualmente parar o mundo e ver, têm sido as mais adequadas. Elas tem me dado paz e confiança na minha capacidade de controlar minha vida. Na época que encontrei Don Juan eu tinha muito pouco poder pessoal. Minha vida havia sido muito errática. Eu percorri um longo caminho desde o local do meu nascimento no Brasil. Exteriormente eu era agressivo e arrogante, mas interiormente era indeciso e incerto acerca de mim. Estava sempre forjando desculpas para mim mesmo. Don Juan uma vez me acusou de ser uma criança profissional porque eu estava cheio de auto-piedade. Eu me sentia como uma folha ao vento. Como com a maioria dos intelectuais, minhas costas estavam contra o muro. Eu não tinha lugar para ir. Eu não podia perceber nenhuma forma de vida que realmente me excitasse. Eu pensei que tudo o que poderia fazer era uma acomodação amadurecida para uma vida de tédio ou encontrar formas mais complexas de entretenimento como usar drogas psicodélicas, maconha e ter aventuras sexuais. Tudo isso era aumentado pelo meu hábito de ser introspectivo. Eu estava sempre olhando para dentro de mim e falando comigo mesmo. O diálogo interno raramente parava. Don Juan abriu meus olhos para o exterior e ensinou-me a acumular poder pessoal. Não creio que haja outro pode de vida para alguém que queira estar cheio de energia.

Parece que ele fisgou você com o velho truque dos filósofos de segurar a morte diante dos seus olhos. Eu estava impressionado em perceber quão clássica a abordagem de Don Juan é. Eu ouvia ecos da idéia de Platão de que um filósofo deve estudar a morte antes que possa ganhar acesso ao mundo real e da definição de Martin Heidegger de um homem como um ser-para-a-morte.

Sim, mas a abordagem de Don Juan tem um aspecto diferente, que vem da tradição da feitiçaria, que é o de considerar a morte como uma presença física que pode ser sentida e vista. Uma das interpretações da feitiçaria é: a morte está à sua esquerda. A morte é um juiz imparcial que lhe dirá a verdade e lhe dará conselhos precisos.  Afinal, a morte não está com pressa. Ela lhe pegará em um dia, uma semana, ou 50 anos. Não faz diferença para ela. No momento que você pensa que eventualmente deve morrer está reduzindo o lado direito. Eu acho que ainda não tornei esta idéia vívida o bastante. A interpretação “A morte está a sua esquerda” não é uma questão intelectual na feitiçaria, é percepção. Quando seu corpo está adequadamente sintonizado com o mundo e você vira os olhos para a esquerda, você pode testemunhar um evento extraordinário, a presença sombria da morte.

Na tradição existencial, as discussões sobre responsabilidade geralmente se seguem às discussões sobre a morte.

Então Don Juan é um bom existencialista. Se não há como saber se eu tenho apenas mais minuto de vida, devo agir como se cada instante fosse o último. Cada ato é a última batalha do guerreiro. Então tudo deve ser feito impecavelmente. Nada pode ser deixado pendente. Esta idéia foi muito libertadora para mim. Eu estou aqui falando com você e talvez nunca volte para Los Angeles. Mas não importa porque eu cuidei de tudo antes de vir para cá.

Este caminho de morte e determinação é distante da utopia psicodélica na qual a percepção do final do tempo destrói a qualidade trágica da escolha.

Quando a morte permanece à sua esquerda você deve criar o mundo a partir de uma série de decisões. Não existem decisões grandes ou pequenas, apenas decisões que devem ser tomadas agora. E não há tempo para dúvidas ou remorsos. Se eu passar o meu tempo lamentando o que fiz ontem eu evito as decisões que tenho de tomar hoje.

Como Don Juan lhe ensinou a ser determinado?

Ele falou com meu corpo através de atos. Meu modo antigo de ser deixava tudo pendente e nunca decidia nada. Para mim, tomar decisões era algo feio. Parecia injusto para um homem sensível ter de decidir. Um dia Don Juan me perguntou:  “Você acha que você e eu somos iguais?”. Eu era um estudante universitário e um intelectual e ele era um velho índio, mas eu fui condescendente e disse: “Claro que somos iguais”. Ele disse: “Eu não acho que somos. Eu sou um caçador e um guerreiro e você é um frouxo. Eu estou pronto a abreviar minha vida a qualquer instante. Seu mundo débil de indecisão e tristeza não é igual ao meu”.  Eu fiquei muito insultado e teria voltado, mas nós estávamos no meio do nada. Então eu sentei e fiquei absorvido nas armadilhas do meu ego. Eu ia esperar até ele decidir voltar. Após várias horas percebi que Don Juan ficaria ali para sempre se precisasse. Por que não? Para um homem sem assuntos pendentes este é o seu poder. Eu finalmente percebi que este homem não era como meu pai, que podia tomar 20 resoluções de ano-novo e não cumprir nenhuma. As decisões de Don Juan eram irrevogáveis enquanto durasse seu interesse. Elas podiam ser canceladas apenas por outras decisões. Então cheguei perto e o toquei, ele desistiu e voltamos para casa. O impacto deste ato foi tremendo. Ele me convenceu de que o caminho do guerreiro é um modo de vida poderoso e vigoroso.

O conteúdo da decisão não é tão importante quanto o ato de ser determinado.

Isto é o que Don Juan entende por fazer um gesto. Um gesto é um ato deliberado que é responsável pelo poder que advém de tomar uma decisão. Por exemplo, se um guerreiro encontra uma cobra que está dormente e fria, ele pode esforçar-se por levar a cobra para um lugar quente sem ser mordida. O guerreiro pode decidir fazer um gesto sem nenhum motivo. Mas ele vai fazê-lo perfeitamente.

Parecem existir muitos paralelos entre a filosofia existencialista e os ensinamentos de Don Juan. O que você disse sobre decisões e gestos sugere que Don Juan, como Nietzsche e Sartre, acredita que a vontade, ao invés da razão, é a faculdade mais fundamental do homem.

Acho que sim. Deixe-me falar por mim mesmo. O que eu quero fazer, e talvez consiga executar, é superar o controle da minha razão. Minha mente tem estado no controle a minha vida toda e ela preferiria me matar a abandonar este controle. Em um dado ponto de meu aprendizado, eu fiquei profundamente deprimido. Eu estava cheio de medo, obscuridade e pensamento sobre suicídio. Então Don Juan me alertou que este é um dos truques da razão para manter o controle. Ele disse que minha razão estava fazendo meu corpo sentir que não havia sentido na vida. Uma vez que minha mente travou esta última batalha e perdeu, a razão começou a assumir o local apropriado de ser apenas uma ferramenta do corpo.

 “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, e também o resto do corpo.

Este é o ponto. O corpo tem vontade própria. Ou melhor, a vontade é a voz do corpo. Este é o motivo de Don Juan consistentemente colocar suas lições em uma forma dramática. Meu intelecto poderia facilmente descartar o mundo da feitiçaria como sem sentido. Mas meu corpo foi atraído por este mundo e este modo de vida. E quando o corpo toma o controle, um reino novo e mais saudável se estabelece.

As técnicas de Don Juan para lidar com os sonhos me interessam porque ele sugere a possibilidade de voluntariamente controlar as imagens do sonho. Dessa forma ele propõe estabelecer um observatório estável e permanente dentro do espaço interior. Fale-me sobre o treinamento de sonhos de Don Juan.

O truque nos sonhos é sustentar as imagens tempo o bastante para que possamos examiná-las cuidadosamente. Para adquirir este controle você deve escolher uma coisa antes e aprender a encontrá-la nos seus sonhos. Don Juan sugeriu que eu usasse minhas mãos como ponto fixo e alternasse entre elas e as imagens. Após alguns meses eu aprendi a usar minhas mãos e parar o sonho. Fiquei tão fascinado por esta técnica que espero ansioso pela hora de dormir.

Parar as imagens nos sonhos é parecido com parar o mundo?

É similar. Mas existem diferenças. Uma vez que você se torna capaz de achar suas mãos quando quiser, você percebe que isto é apenas uma técnica. O que você quer na verdade é o controle. Um homem de conhecimento deve acumular poder pessoal. Mas isto não é suficiente para parar o mundo. É necessário algum abandono. Você precisa parar a conversa que está ocorrendo internamente e render-se ao mundo exterior.

Das várias técnicas que Don Juan lhe ensinou para parar o mundo, qual você ainda pratica?

Minha maior técnica no momento está em romper as rotinas. Eu sempre fui uma pessoa muito rotineira. Eu comia e dormia sempre nos mesmos horários. Em 1965 comecei a mudar meus hábitos. Eu escrevia nas horas quietas da noite e dormia quando sentia necessidade. Agora eu desmantelei tanto meus hábitos usuais que posso me tornar imprevisível e surpreendente até mesmo para mim.

Sua disciplina me lembrou de uma história Zen de dois discípulos vangloriando-se de feitos milagrosos. Um dos discípulos alegava que o fundador da seita a que pertencia podia ficar em uma das margens do rio e escrever Buda num pedaço de papel segurado por seu assistente do outro lado do rio. Um outro discípulo alegava que esse milagre não era muito impressionante. “Meu milagre”, disse ele, “é que quando tenho fome, eu como, e quando tenho sede, eu bebo”.

É este elemento de compromisso com o mundo que me mantém seguindo o caminho que Don Juan me mostrou. Não há necessidade de transcender o mundo. Tudo o que você precisa saber está aqui defronte nós, se prestarmos atenção. Se você entrar num estado de realidade extraordinária, como faz quando usa plantas psicotrópicas, está apenas usando a força que precisa para ver o caráter milagroso da realidade ordinária. Para mim o modo de se viver ”o caminho com coração” não é introspectivo ou de transcendência mística, mas a presença no mundo. Este mundo é o campo de caçada do guerreiro.

O mundo que você e Don Juan pintaram é cheio de coiotes mágicos, corvos encantados, e magníficos guerreiros. É fácil de ver como ele pode lhe atrair. Mas, e em relação ao mundo de uma pessoa urbana moderna? Onde está a mágica nele? Se todos nós pudéssemos viver em montanhas talvez conseguíssemos manter o mistério vivo. Mas como poderemos fazer isso se estamos perto de uma estrada?

Uma vez formulei a mesma questão para Don Juan. Nós estávamos sentados em um café em Yuma e eu insinuei que eu poderia me tornar apto a parar o mundo e ver se pudesse viver no ermo junto com ele. Ele olhou para a janela, viu os carros passando e disse: “Ali, lá fora, é o seu mundo”. Eu vivo em Los Angeles agora e sinto que posso usar o mundo para favorecer minhas necessidades. É um desafio viver sem rotinas em um mundo rotineiro. Mas é possível.

O nível do barulho e a pressão constante de massas de pessoas parecem destruir o silêncio e a solidão que poderiam ser essenciais para parar o mundo.

Não de todo. Na verdade, o barulho pode ser usado. Você pode usar o barulho da buzina para treinar a si mesmo para ouvir o mundo exterior. Quando paramos o mundo, o mundo que paramos geralmente é o que é mantido pelo diálogo interno. Uma vez que você pára o blá-blá-blá interno você pára de manter este mundo. A descrição entra em colapso. É quando começa nossa mudança de personalidade. Quando você se concentra nos sons, percebe que é difícil para o cérebro categorizar todos os sons, e em pouco tempo você para de tentar. Não é como a percepção visual que nos mantém formando categorias e pensando. É tão revigorante quando você consegue parar de falar, categorizar e julgar.

O mundo interno muda, mas e em relação ao externo? Nós podemos revolucionar a consciência individual, mas ainda assim não conseguir tocar as estruturas sociais que criam nossa alienação. Existe um lugar para a reforma social e política no seu pensamento?
Eu vim da América Latina onde os intelectuais estão sempre falando sobre revolução política e social e onde muitas bombas são lançadas. Mas a revolução não mudou muita coisa. Requer pouca coragem bombardear um prédio, mas para desistir de cigarros, parar de ser ansioso ou parar a tagarelice interna, você tem que reconstruir-se. É aí que começa a verdadeira reforma. Don Juan e eu estávamos em Tucson não muito tempo atrás quando estava tendo a Semana da Terra. Alguns homens estavam palestrando sobre ecologia e os males da guerra do Vietnã. Enquanto isto, eles fumavam. Don Juan disse: “Não posso imaginar como eles podem se preocupar com os outros se eles não se gostam de si”. Nossa primeira preocupação deve ser com nós mesmos. Eu posso gostar dos meus semelhantes apenas quando estiver no auge do meu vigor e sem depressão. Para estar nesta condição devo manter meu corpo preparado. Toda revolução deve começar aqui, neste corpo. Eu posso mudar minha cultura, mas apenas através de um corpo impecavelmente sintonizado com este mundo estranho. Para mim, a verdadeira realização é a arte de ser um guerreiro, a qual, como diz Don Juan, é o único meio de balancear o terror de ser um homem com a maravilha de ser um homem.


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