Dona
Rosalina Bandeira – minha avó materna e a única que conheci – nasceu em Coari,
no médio Rio Solimões, e era supostamente descendente de índios Apurinãs.
Vovó
Rosa tinha o perfil e a personalidade de uma autêntica guerreira apache: falava
firme e não admitia contestações.
Ela se casou com o seringalista José Bonifácio
da Silva, com quem teve sete filhos: Edith (aka “Dica”), Rosalina (aka “Rosa”),
Maria, Celeste, Lucas, Algemira (aka “Algima”) e José.
Quando José Bonifácio
também foi abatido pela malária, vovó Rosa abandonou as terras que possuía em
Coari, colocou as tralhas (incluindo os moleques) dentro de uma canoa e se mandou
para Manaus, conduzindo a embarcação no muque.
Se não tivesse parado na cidade
para comprar mantimentos era bem capaz de Vovó Rosa só acabar desembarcando em
Belém. Ou na Europa. A velha era determinada.
Aquele bando de moleques
remelentos dentro de uma canoa, fazendo perguntas impertinentes (“Ainda falta
muito?”, “Não vai parar não?”, “A senhora tem certeza de que é por aqui?”),
devem ter contribuído para ela desenvolver uma fobia a curumins.
Assim que
pisou em terra firme, vovó Rosa se encarregou de “dar” os filhos para serem
criados por famílias em melhor situação financeira do que ela e passou a morar
sozinha.
O caçula José chegou a ser entregue para adoção a um casal de
missionários norte-americanos, mas foi resgatado por Edith e Rosalina algumas
horas antes de embarcar no navio rumo aos EUA.
Zé
Bandeira, como se tornou conhecido, nunca esqueceu esse episódio. Sempre que
enchia a cara de truaca e constatava a merda de vida que estava levando, ele
ficava revoltado:
–
Se não fossem minhas duas irmãs mais velhas, eu hoje seria um fazendeiro no
Arkansas, estaria casado com uma gringa de cabelos ruivos e teria um casal de
filhos loirinhos e de olhos azuis! A Dica e a Rosa afuleilaram o meu futuro!
Hoje eu não sou um cidadão do primeiro mundo por causa delas!
A
casa da vovó Rosa ficava no bairro de São Francisco, na beira de um sacovão que
a gente chamava de “Cafundó” porque devia ser lá que o Judas perdeu as botas.
O acesso ao vale do sacovão exigia perícia e coragem para descer por meio de
uma precária escada de barro de quase trinta metros, íngreme ao extremo (quase
90º de inclinação) e cavada no próprio morro.
O sacrifício valia a pena: era lá
que estavam as “cacimbas”, todas devidamente identificadas, que os moradores
utilizavam nos seus afazeres diários.
Eu ficava mesmerizado observando aquele
quadrilátero de madeira fincado sobre uma espécie de areia peneirada de onde
brotava um olho d’água.
Meus primos não viam graça nenhuma naquilo, obrigados
que eram diariamente a descer e subir a escada de barro levando uma lata d’água
na cabeça.
Tia Dica e Giovani, na Praça da Matriz
Quituteira
de mão cheia e dona de um coração ultra generoso, tia Dica teve um casal de
filhos: Giovani e Arinéia. Durante muitos anos, ela foi a governanta oficial da
casa da minha irmã Simone.
Uma das lendas da família diz que tia Dica, para
sustentar seu primeiro filho, Giovani, foi trabalhar como diarista na casa do
velho Aristeu e criou gosto pelo patrão. Acabou sendo engravidada por ele.
A mulher
do sujeito, uma catimbozeira oriunda de Codó, no Maranhão, não gostou da
presepada e fez um feitiço para deixar tia Dica aleijada pelo resto da vida.
A
catimbozeira não devia ser do ramo porque o feitiço acabou atingindo a vovó
Rosa, que não tinha nada a ver com o peixe: um belo dia, a vovó acordou e não
conseguiu flexionar a perna direita.
Apesar dos vários exercícios de
fisioterapia e dos tratamentos pouco ortodoxos (reza, massagens com banha de
cobra, unguentos milagrosos, etc), vovó Rosa ficou com a perna dura pelo resto
da vida.
Tia
Rosa, cuja formosura enchia os olhos de milhares de admiradores e vivia
permanentemente de bom humor, teve quatro filhos: Carlito, Marluce, Vera e
Júlio.
Por ser o primeiro neto, Carlito virou o xodó da vovó Rosa, tendo sido
praticamente criado por ela.
Eu gostava muito de frequentar a casa da tia Rosa,
no centro histórico de Manaus, onde era sempre recebido com carinho, pudim de leite
e refresco de mangarataia.
Altair, tia Maria, Cília e Sônia, na Praça São Sebastião
Tia
Maria, que tinha os traços imponentes de uma rainha africana, teve seis filhos:
Auxiliadora (aka “Cília”), Altair, Sônia, Ana, Dagnês e Solange.
Durante trinta
décadas, Altair foi campeão absoluto de dominó nos bairros de Petrópolis, Raiz,
São Francisco e adjacências.
Abusado ao extremo, ele costumava levantar todas
as pedras nas mãos, gritava os pontos que estava fazendo e aí deixava uma das
pedras cair sobre a mesa.
Um de seus xerimbabos rapidamente pegava a pedra e
colocava na “ponta” onde ele gritara os pontos.
Se por acaso o xerimbabo
errasse o posicionamento da pedra, seria brindado com um bonito tabefe no pé do
ouvido.
Meu primo Altair faleceu de câncer há alguns anos.
Tia
Algima, a caçula e a mais bonita de todas, se casou com Adamor, o melhor
jogador de dominó que já vi na vida, e teve sete filhos: Marcondes, Nalu, Narley,
César, Lincoln, Nara e Adamorzinho.
Pintor, bombeiro hidráulico e eletricista,
Adamor era um verdadeiro homem dos sete instrumentos.
Foi o único sujeito que
conheci capaz de comer duas dúzias de pimenta malagueta com um único pedaço de
jaraqui frito.
E o único a fazer 495 pontos, sentando sozinho todas as pedras
do dominó, saindo com as carroças de ás, de duque e de terno (saindo com a
carroça de duque, até eu faço...).
O tio Adamor morreu há alguns anos, de complicações
decorrentes da diabetes.
Meu primo Adarmozinho morreu ainda rapaz, durante um
dilúvio que se abateu de madrugada sobre o bairro de Petrópolis.
Adarmozinho
estava ajudando seus vizinhos a fugirem da alagação quando um muro desabou
sobre ele.
Tio
Zé Bandeira nunca se casou, mas teve um casal de filhos: James e Joana.
Ao
longo de sua existência, foi um fervoroso pregador rastafári e seus olhos
permanentemente vermelhos faziam jus ao sobrenome.
Ele conhecia a Bíblia de
trás pra frente e da frente pra trás e era capaz de citar passagens inteiras do
Apocalipse sem errar na colocação de uma única vírgula.
Fosse um pouquinho mais
ambicioso, teria ficado rico como pastor de igreja neopentencostal.
Tio Lucas e meu primo Carlito, na Praça da Polícia
Tio
Lucas, que na juventude tinha a compleição física de Cassius Clay, se casou com
a doce Maria e teve sete filhos: Luiz Carlos, Edmilson, Lucas, Nádia, Tânia,
Sandra e Clissia Greice.
Extremamente educado, cortês, bem-humorado e um
tremendo pé de valsa, tio Lucas era um dos maiores abatedores de lebres da
cidade (meu primo Edmilson tem dado continuidade à saga...), mas aposentou as
armas depois de casado. Não sei bem por que, mas nunca acreditei muito nessa
história.
Tio Lucas trabalhava como motorista da Prefeitura, por onde se
aposentou, e teve papel decisivo na minha formação cultural. Explico melhor.
No
começo dos anos 70, tio Lucas passou a dirigir a caçamba da Prefeitura responsável
pela coleta e destinação final de revistas da Amazonas Distribuidora.
Naquela
época, as revistas recolhidas das bancas tinham o título da capa recortado e o
miolo era descartado no lixão da Prefeitura para ser incinerado – porque era
mais barato do que pagar o frete de reenvio das revistas encalhadas para as
editoras do sul do país.
A prestação de contas do “encalhe” era feita mediante
envio dos títulos recortados.
Tio Lucas começou a nos presentear semanalmente
com dezenas de exemplares de gibis e revistas (Mickey, Tio Patinhas, Pato
Donald, Mônica, Batman, Superman, Recreio, Veja, Capricho, Geração Pop, Placar,
etc.), recolhidas diligentemente do lixão antes da incineração final.
Comecei
a colecionar a revista Placar a partir dos exemplares que ganhava dele – coisa
que seria impossível de fazer bancando do próprio bolso.
Quando tio Lucas
estacionava a caçamba em frente de casa e nos entregava de 30 a 40 gibis novinhos
em folha de uma vez só, somente faltando o título na primeira capa, aquilo era
uma verdadeira festa para os olhos.
Até hoje não entendo por que, em vez de
serem incineradas, as revistas não eram doadas para as escolas públicas da
periferia, já que uma revista onde está faltando apenas o título não faz a
menor diferença pra quem tem vontade de ler. Coisas do capitalismo selvagem,
desconfio.
Nascida
no dia 18 de maio de 1932, minha mãe foi criada por uma família de comerciantes
libaneses no bairro da Cachoeirinha, onde recebeu uma educação esmerada.
Ela
conheceu meu pai quando estava com 18 anos, se casaram dois anos depois e a
Simone nasceu no mesmo dia em que minha mãe completava 21 anos. A Silene nasceu
em junho do ano seguinte. Eu demorei um pouco mais e só nasci em maio de 1956. Depois nasceram a Silane (dezembro de 58), a Selane (agosto de 59) e o Simas (outubro de 61).
Tia Maria Pessoa e minha prima Raquel
Quando eu estava
com sete anos de idade, tia Maria, irmã do Pai Simão, resolveu me criar.
Minhas
primas Raquel, depois esposa do advogado Lourenço Braga, ex-reitor da UEA, e
Rossicler, depois esposa do centroavante matador Rodrigo Marques e uma das mulheres
mais lindas que meus olhos já viram (uma Brigite Bardot nativa), acabaram
virando minhas tutoras. Deu no que deu. Não as culpo por isso, claro.
Morei com
a tia Maria Pessoa durante quatro anos (de 1963 a 1966) e desconfio que foram alguns
dos anos mais felizes de minha vida.
Não
tive um irmão mais velho (apesar de a Simone valer por quinze), daí ter me
afeiçoado tanto ao meu primo José Alberto Régis Batista, o Cazuza.
No final dos
anos 60, ele era o “endiabrado demônio louro” do juvenil do Olímpico
(radialistas adoram pleonasmos), ao lado de Wandi, Calderaro, Bioca, Mário
Bacuri e outros craques.
Lembro-me dele no quintal da casa batendo sacos de
cimento vazios para tirar a “sobra”, sacos esses que ele recolhia peregrinando
pelos poucos canteiros de obras existentes na cidade.
Na sequência, Cazuza
preparava uma panela de goma de maisena numa fogueirinha de gravetos e eu
ficava hipnotizado observando aquela alquimia poderosa.
Depois, pacientemente,
Cazuza ia lavando os sacos de cimento, secando ao sol, abrindo, dobrando, colando, costurando e
transformando aquilo tudo em sacolas de papel, que no dia seguinte seriam
vendidas no Mercado Adolpho Lisboa para carregar carne. Uma mão de obra
federal!
Socorro, Rossicler, Cazuza, sua esposa Lia e a filha do casal, Liliam
Também me lembro dele já vendedor da Livraria Colegial, trazendo
revistas de HQ em consignação, pra ler em casa, que eu roubava na maior cara
dura e depois traficava para as meninas (Simone e Silene), na casa de meus
pais, sem saber que aquilo era descontado no salário do meu primo.
Ele nunca
ter me dado umas porradas por isso diz mais do caráter dele do que do meu.
Um comentário:
Corrigindo* insinua que minha avó teve filho do sr aristeu.
Postar um comentário