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sábado, outubro 31, 2015

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (1)


Moacir Andrade é o nome artístico de Moacir Couto de Andrade, filho de Severino Galdino Andrade e Jovina Couto de Andrade, nascido na Santa Casa de Misericórdia, em Manaus, às 10 horas do dia 17 de março de 1927, numa manhã chuvosa em plena época carnavalesca, dia em que se comemorava o aniversário de Santa Gertrudes, sua padroeira.

O professor Temístocles Pinheiro Gadelha foi escolhido como padrinho de Moacir e como madrinha, a professora Clotildes de Araújo Pinheiro, filha única de Fausto Pinheiro, um importante comandante fluvial da Amazon Rivers & Company Limited. Seu batizado foi realizado pelo frei José de Leonissa, capelão da igreja de São Sebastião.

Logo após o seu nascimento, Severino e Jovina, com o filho Mozart, de apenas um ano, e Moacir, com poucos dias de nascido, viajaram para a zona rural de Manacapuru, onde a família de Jovina possuía um vasto terreno. Sem trabalho em Manaus, pois Severino era mestre-de-obras e já há muito as construções estavam completamente paralisadas na cidade pela absoluta falta de dinheiro decorrente do debacle da borracha, ele resolveu tentar a vida no interior como agricultor, pescador e caçador de subsistência.

Severino instalou sua família num terreno de mais de 5 mil metros de frente para o rio Solimões. Ali, o mestre-de-obras construiu sua barraca de palha e paxiúba, onde acomodou sua mulher e os dois filhos. Jovina era professora normalista assim como suas outras irmãs, Maria (“Mariquinha”), Josefa e Camila. Enquanto Severino cuidava da roça, Jovina ensinava as primeiras letras para os caboclinhos da vizinhança. Com cinco anos, Moacir e Mozart já sabiam ler, escrever e contar.

Em 1933, quando Moacir Andrade tinha apenas seis anos de idade, a família resolveu retornar para Manaus a fim de dar uma melhor educação aos filhos. Ao chegarem a Manaus, instalaram-se num hotel de seringueiros no final da Av. Joaquim Nabuco, depois se mudaram para um quarto de estância à Rua Miranda Leão e depois para a Rua dos Andradas, onde os meninos foram matriculados no Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Av. Joaquim Nabuco. Algum tempo depois, se mudaram outra vez para a Rua Ramos Ferreira e, finalmente, foram morar na Rua Dr. Machado nº 115.

Foi nesse tempo que Moacir começou a frequentar a residência de sua madrinha Clotildes de Araújo Pinheiro, localizada na Av. Joaquim Nabuco, nas proximidades da Primeira Igreja Batista de Manaus. Ali, Moacir, incentivado pela sua madrinha, começou a desenhar em papel com lápis da marca alemã Johan Faber nº 6, muito comum naquela época.

Mais tarde, sua mãe o matriculou no Grupo Escolar Ribeiro da Cunha, na Rua Silva Ramos, onde o menino estudou do terceiro ao quinto ano do curso primário. Foi também nesse grupo que Moacir conquistou seu primeiro prêmio como artista plástico, por ter desenhado à mão livre a fachada daquele colégio público, quando cursava o quarto ano primário, em 1937.

Segundo o próprio Moacir Andrade, a grande influência para sua dedicação precoce às artes plásticas veio da profissão de seu pai:

– No final do século 19, aí por volta de 1896, 1897, quando Manaus foi incendiada pela febre das construções residenciais provocada pelo dinheiro fácil oriundo do alto preço da borracha, muitos pedreiros portugueses chegaram à cidade, vindos dos mais distantes recantos de Portugal, para se dedicarem à construção de prédios com as características da art noveau da época, experiência que eles já haviam exercitado nas colônias africanas ultramarinas.

Eles eram exímios construtores de casas com fachadas de uma porta e duas janelas altas, pé direito com cinco metros e porão arejado com gateiras que correspondiam ao número de janelas. Meu pai, apesar de pernambucano, foi um desses profissionais que ajudaram a fazer da capital amazonense a cidade sorriso, com suas casas pintadas de várias tonalidades de cores quentes, forradas em dois níveis com madeira importada, telhados com quatro águas e fachadas encimadas com belíssimos frontões, cheios de desenhos em alto relevo e monogramas com as iniciais dos proprietários e o ano de suas construções.

Todas as ruas do centro da cidade eram cheia dessas construções, que datam de 1898 até 1920, quando a borracha perdeu sua competitividade internacional e o sonho acabou. Dentre os grandes pedreiros que se dedicaram a esse ofício e construíram os mais belos frontões de Manaus estava o português Clara, um sujeito de altura avantajada, vermelho como um pimentão, olhos profundamente azuis, que muitas vezes vi sobre os altos andaimes, esculpindo ou reformando velhos frontões das muitas casas de Manaus, em companhia do meu pai. Lonas enormes cobriam o local de trabalho do Clara, pois todo esse exercício era realizado longe da vista dos curiosos e de outros colegas que desejavam imitá-lo. Clara tinha o cuidado de esconder seu trabalho para não revelar o segredo da criação de tão belas peças, que trouxera consigo de Lisboa, onde aprendeu a profissão.

Meu pai trabalhou muitos anos como ajudante do Clara. Considerando que o português era sem dúvida o mais capacitado e o maior artista nesse ramo da construção civil, meu pai teve a oportunidade de ouro de aprender com esse excelente profissional o segredo de esculpir em cimento e cal aquelas belíssimas obras de arte, das quais são poucas as remanescentes da destruição provocada pelo advento da Zona Franca de Manaus. Meu pai morreu em fevereiro de 1945 e deixou num velho barracão de madeira, no fundo do quintal de nossa residência, dezenas de formas com os mais variados padrões de ornamentos. Muito deles eu cheguei a reconhecer em vários frontões, antes que começasse a derrubada desse singular patrimônio arquitetônico pelos comerciantes que invadiram a cidade, atraídos pelos incentivos da área de livre comércio. No meu livro “Manaus, Ruas, Fachadas e Varandas”, de 1984, eu conto em detalhes essa triste história.


Terminado o curso primário, Moacir Andrade foi matriculado no 1º ano ginasial do Ginásio Amazonense Pedro II, em 1939. Com a notícia da abertura do Liceu Industrial de Manaus, dedicado ao ensino profissionalizante, cuja inauguração oficial de suas novas instalações ocorreria no dia 10 de novembro de 1941, data da implantação do Estado Novo pelo caudilho Getúlio Vargas, seus pais, em comum acordo com seus padrinhos, decidiram interna-lo nesse novo estabelecimento de ensino secundário profissional, tendo em vista que o menino era um exímio desenhista e suas pinturas já despertavam admiração nas autoridades da época.

Para as solenidades de inauguração das novas instalações da escola, o Diretor de Instrução Pública, Dr. Claudiomiro Leite, juntamente com o Diretor do Liceu, Dr. Luiz Paulo Sarmento, resolveram realizar uma mostra de seus desenhos e pinturas, cuja exposição foi carinhosamente organizada pelo então professor de desenho Pojucan Rafael de Souza, seu antigo mestre e amigo.

Assim, a primeira mostra de arte individual de Moacir Andrade, com os desenhos que ele vinha fazendo na residência de sua madrinha desde 1934, acabou se transformando em um evento muito concorrido dentro do programa oficial.

Em fevereiro de 1942, sua mãe internou-o no Liceu Industrial de Manaus, onde ele ficou até 1945, quando concluiu o curso industrial – equivalente ao curso ginasial. Na sequência, Moacir Andrade matriculou-se no Colégio Brasileiro, do professor Pedro Silvestre da Silva, onde concluiu o curso de contabilidade, e depois fez o curso científico no Ginásio Amazonense Pedro II, atual Colégio Estadual do Amazonas.


Dotado de uma memória prodigiosa, Moacir Andrade guarda algumas recordações pitorescas dessa sua época de adolescente.

– Eu fui internado no Liceu Industrial de Manaus para fazer o primeiro ano industrial um mês antes de completar meus 15 anos. Por ser muito tímido, eu acreditava em tudo que os mais velhos me falavam, principalmente se fossem professores, que eu considerava uma classe extremamente importante e impoluta.

Em 1943, em plena guerra mundial, havia dois médicos no liceu que eram muito queridos pelos alunos: o Dr. Djalma da Cunha Batista, tisiólogo de grande capacidade e festejado por toda a sociedade de Manaus, e o Dr. Jorge Abrahim, sendo que ambos eram amigos íntimos do professor Kideniro Teixeira e do antropólogo Nunes Pereira.

Os quatro se reuniam diariamente para discutir assuntos literários e científicos. Kideniro Teixeira era poeta e professor de português do Liceu Industrial de Manaus, que depois passou a chamar-se Escola Técnica de Manaus, depois Escola Técnica Federal do Amazonas, depois Centro Federal de Tecnologia (CEFET), hoje Instituto Federal do Amazonas (IFAM).

Em dezembro daquele ano, época das provas finais do curso, eu estava estudando biologia numa das salas de aula, quando, de repente, entrou na sala o Dr. Djalma Batista, acompanhado de Nunes Pereira e Kideniro Teixeira. O antropólogo aproximou-se de mim e perguntou-me o que eu estava estudando. Respondi-lhe que estava estudando a parte da biologia que diz respeito ao sistema digestivo, que seria minha prova oral. Eu havia feito um resumo e estava decorando o texto para não esquecer nenhuma palavra. Nunes Pereira mandou que eu lesse o resumo para que eles ouvissem. Não me fiz de rogado. Li toda a lição começando pela boca e terminando pelo reto.

Nunes Pereira, que eu conhecia somente de vista, me parecia um homem muito importante e sério, pois só falava com o Dr. Djalma Batista e Kideniro Teixeira, daí eu confiar plenamente em tudo que ele dizia. O antropólogo falou que o que eu estava decorando não correspondia com a verdade, explicando que o sistema digestivo não terminava no reto, mas num esfíncter chamado cu, fato confirmado pelos seus dois acompanhantes. Ele mandou que eu recitasse alto, de novo, mas desta vez dizendo que o sistema digestivo terminava numa abertura ou esfíncter chamado cu. Fiz o que ele me pediu, já que confiava plenamente na palavra de Nunes Pereira, ainda mais contando com a aprovação de outros dois renomados intelectuais.

Alguns dias depois, com a sala cheia de alunos que seriam examinados, fui chamado pela professora que, por sinal, era extremamente moralista e católica fervorosa. A lição estava decorada na ponta da língua. Não demorou muito e fui chamado pela banca examinadora, constituída de três mestres, para falar sobre o assunto. Cheio de vaidade e orgulho besta, comecei a declamar bem alto a lição, começando pela boca até finalmente concluir que o aparelho digestivo terminava em uma abertura vulgarmente denominada de cu. Ao ouvirem essas palavras, meus colegas de classe irromperam em uma estridente gargalhada, a qual logo se seguiu um silêncio tumular. A professora, espumando de ódio, olhou para mim e perguntou:

– Terminou?

– Sim, professora, terminei! – respondi, timidamente.

Ela bateu nervosamente na campainha sobre a mesa, chamando o inspetor de alunos:

– Leve esse boca-suja daqui, imediatamente! – disparou. – E, como castigo, coloque ele sete dias na prisão disciplinar! Também não esqueça de deixar bastante sabão e creolina pra ele lavar a boca...

Eu não sabia onde me esconder, de tão nervoso que fiquei. Tirei zero na prova oral. Como tinha tirado dez com louvor na prova escrita não fui reprovado. A nota mínima para ser aprovado era cinco. Naquela época, a disciplina do colégio era ministrada pelo Exército, que tomava conta principalmente dos alunos internos. O inspetor de alunos era um sargento camarada, mas cônscio de suas responsabilidades militares. Fui trancado numa sala no pavimento superior, entre o teatro e o dormitório, onde tinha um banheiro, uma cama e um armário, além de uma janela que dava para o pátio interno. Só saía dali para as refeições, para assistir as aulas ou para ir à enfermaria por algum problema, mas sempre acompanhado por um soldado.

Quando os autores da minha desgraça souberam o que havia acontecido foram à sala onde eu estava preso, oportunidade em que expliquei o que ocorrera. Na mesma hora, Nunes Pereira foi buscar um dicionário de Cândido Figueiredo e me mostrou que eu estava certo, que a palavra era aquela mesma e que estava devidamente inserida no mais importante dicionário do país. O antropólogo me garantiu ainda que eu devia lutar pelos meus direitos e que deveria mostrar ao diretor a injustiça que estava sofrendo por ter simplesmente citado uma palavra de uso comum e já devidamente dicionarizada.

Nunes Pereira ensinou-me como explicar a situação para o Dr. Paulo Sarmento, que além de diretor do liceu, era presbiteriano, exigente e muito rígido na aplicação disciplinar. Como estávamos em plena ditadura de Getúlio Vargas, argumentou o antropólogo, ficava muito mal para eu ter a minha ficha suja com aquela prisão por indisciplina, principalmente em se tratando de uma instituição federal. O próprio Nunes Pereira escreveu numa folha de papel tudo o que eu devia dizer ao diretor, devidamente decorado, sem esquecer uma vírgula.

Fui à diretoria, acompanhado do inspetor de alunos, pedi licença à secretária e, conforme havia sido instruído, falei ao diretor:

– Senhor Diretor. Por que somente os cabelos, os olhos, os braços, as pernas, o corpo, as mãos – veja as mãos de Eurídice, existe poema mais lindo? – são glorificados em prosa e verso e não o cu, palavra de uso corrente e perfeitamente dicionarizada pelos nossos maiores linguistas? Por que essa discriminação abjeta contra o cu, quando todos nós sabemos de sua extrema importância para o organismo, embora tenha nascido tão escondido e esmagado por duas muralhas da bunda? Por que essa discriminação arbitrária contra o pobre cu, sempre asfixiado, coitado, sob o peso do corpo que sentamos? Por que, senhor Diretor, me diga por quê?...

O diretor, fixando-me com seus olhos intensamente azuis, sem dizer uma palavra, fez um sinal quase imperceptível para o inspetor de alunos se aproximar e me deu 30 dias de prisão...

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse era o poeta. GENIAL>