Janet Maslin, do The New York Times
São 15h. Horário de Nova York no escritório do agente de Keith Richards na cidade, um lugar que poderia parecer comum se todas as paredes e estantes não estivessem lotadas com alguns dos objetos mais gloriosos da história do rock n' roll.
“Entre, ele estará aqui em um minuto”, diz um assistente – e eis que ele chega em um minuto: às 15h01.
Isso vindo de um homem que já se orgulhou de funcionar no “horário Keith”.
A equipe de segurança comeu a torta de carne que Keith queria em seu camarim?
Então todo mundo nesse estádio lotado pode muito bem esperar.
Os Rolling Stones não tocam até que outra torta de carne apareça.
Coloque a assiduidade na conta da nova encarnação desse homem: agora ele é Keith Richards, escritor famoso.
Verdade, ele está longe de ser o único astro do rock que se transformou em escritor de memórias, e longe de ser o único Rolling Stone a escrever um livro sobre si mesmo – muito sobre si mesmo.
O cabelo espetado Ron Wood escreveu “Ronnie”, no qual ele descreve Brian Jones como “eu com uma peruca loira”.
Bill Wyman, o baixista e “contador” da banda aposentado, escreveu “Stone Alone”, no qual nem mesmo um disco demo de 15 shilling passou em branco.
Agora Richards escreveu um para ficar: “Life”, um relato grande, feroz, e de virar o jogo sobre a aventura de quase meio século dos Stones.
“Foi a coisa mais difícil que eu já fiz”, disse ele sobre o livro. “Prefiro fazer dez discos.”
Mas sua voz soa tudo menos cansada.
Ele parece revigorado, com quase nenhuma semelhança com o pirata-com-lápis-de-olho Keith Richars com cara de quem andou 50 quilômetros numa estrada ruim.
Hoje, usando roupas neutras do dia-a-dia e sapatos verde-escuro, ele está definitivamente estiloso.
Em suas mãos: o onipresente anel de caveira de prata, juntas inchadas, a fina cicatriz branca de um pedaço de minério de fósforo quente que queimou seu dedo até o osso enquanto ele tocava num show sem parar.
Em sua cabeça: uma bandana e um chapéu cor de palha, cabelos grisalhos espetados em todas as direções. Sem nenhum penduricalho.
“Passei dessa fase”, diz ele. “Não sei se o cabelo aguentaria essa pressão hoje.”
Ele passou por muitas fases.
E todas elas estão nas páginas de “Life”: o escoteiro (de verdade); o roqueiro amador; o garoto apaixonado (louco por Ronnie Spector, sem que Phil Spector soubesse); o novo astro surpreso; o viciado em heroína mais velho; o entediado veterano de incansáveis turnês mundiais; e o parceiro briguento de longa data de Mick Jagger.
(Apesar do choque dos tabloides com todas as reclamações do livro, esses dois vêm se xingando seriamente desde a década de 80.)
Tudo isso é contado com uma franqueza direta, e parte disso pode ser facilmente transformado em algo sensacionalista.
Mas o único e verdadeiro golpe do livro é um bilhete escrito à mão na orelha do livro: “Acredite ou não, eu não esqueci de nada disso.”
Como, perguntam a ele, isso é humanamente possível para um homem tão conhecido pela estupefação de “Satisfaction?”.
“Acho que minha maior preocupação no começo era se minha memória era de fato confiável”, diz ele. “Fox teve que investigar um pouco”.
Fox é James Fox, o jornalista e autor de “White Mischief”, que é amigo de Richards há muitos anos e foi seu colaborador para escrever “Life”.
(O livro foi vendido para a Litte, Brown & Co. com um adiantamento de mais de US$ 7 milhões.)
Fox pesquisou à exaustão o passado de Richards, fazendo entrevistas com aqueles que o conheciam há muito tempo e trazendo cartas antigas e francas e anotações de diário.
“Passei o dia praticando”, escreveu Richards, com 19 anos de idade, em janeiro de 1963, quando os Stones estavam começando a tocar em público. “Espero que valha a pena!”.
Ele também exumou uma carta de Richards de 1962 para sua tia Patty descrevendo um garoto que ele havia conhecido na escola primária: Mick Jagger.
Ele assina a carta: “Luff/Keith xxxxx”.
Esses artefatos acabaram se tornando para Richards o equivalente às madeleines de Proust, embora Richards, cujo gosto pela leitura vai de história naval aos romances de Patrick O'Brian e George MacDonald Fraser, dificilmente diria isso.
Em todo caso eles trouxeram recordações que ele jamais esperava redescobrir, e “Life” começou a tomar vida.
Depois que suas histórias foram contadas e o rascunho escrito, ele e Fox sentaram-se juntos com duas cópias do manuscrito enquanto Fox lia todo o livro em voz alta.
“O que eu não imaginava é que ele seria um editor nato tão bom”, disse Fox sobre Richards por e-mail. “Ele cortava, no lugar certo, para ganhar movimento e ritmo – um verdadeiro corte musical.”
Na hora de batizar o livro de “Life” [“Vida”], Richards também editou um pouco.
O livro deveria se chamar “Minha Vida”.
“Eu disse: 'faça o seguinte, corte esse 'minha', e você tem um título”, conta Richards.
Ele poderia também ter usado outro título que ele gosta, 'Keep It Dark” [“Deixe Escuro”]. Mas, diz ele: “Estou guardando para uma música.”
As histórias de “Life” já são sombrias o suficiente.
O livro começa com uma batida antidrogas em Arkansas em 1975 e um juiz que foi convencido a soltar Richards depois de confiscar sua faca de caça (que ainda está pendurada no tribunal) e a tirar uma foto ao lado dele.
Como Richards teve tanta sorte?
“Não sei mesmo explicar isso”, diz ele, impassivo, sobre o caso. “Talvez eu tenha um rosto honesto.”
O livro cobre muitas outras prisões também, assim como as exaustivas tentativas de Richards de deixar o vício em heroína, coisa que ele disse que conseguiu há 30 anos.
“Histórias como esta não são muito contadas”, ele insiste. “Não há muitas pessoas dispostas a contá-las.”
O livro também descreve outros danos à saúde. Como os choques elétricos.
“O mais espetacular foi um em Sacramento...”, diz ele hoje com um sorriso, divagando num devaneio do qual ele parece gostar, no qual uma corda da guitarra tocou num microfone que não estava aterrado e nuvens de fumaça saíram ondulando de sua boca.
Ele dá risada ao lembrar de quando se viu no hospital e ouviu o médico dizer: “Bem, ou eles acordam ou não.”
“Life” já atraiu uma atenção indevida por causa de uma crítica anatômica escolar contra Jagger.
Mas este é não é um livro tão agressivo, e a maior parte de suas provocações são mais sérias do que essa.
“Sangue-frio” e “cruel” são duas das palavras menos ofensivas que ele usa para descrever Brian Jones.
Allen Ginsberg era um “velho tagarela”.
Mick Taylor, o ex-Rolling Stone, “não fazia nada” depois de sair da banda.
Donald Cammell, diretor do filme “Performance” (com Jagger e Anita Pallenberg, amante de Richards por um longo tempo e sua parceira no crime) não se suicidou tão logo quando Richards queria.
(Cammell se matou com um tiro em 1996.)
Quando Marlon Brando fez a proposta a ele e Pallenberg, Richards lembra-se de ter respondido, “Mais tarde, cara.”
Quanto a Jagger, as reclamações são profundas.
Elas envolvem mesquinharia, escalada social, egomania, insegurança, falta de ética empresarial e – aí vem um feriado freudiano para qualquer um que tenha assistido Jagger sem camisa e Richards improvisarem juntos – identidade sexual incerta.
Também há uma fria condescendência quanto às contribuições de Jagger para o processo de escrever músicas.
E um ou outro apelido sacana como “Disco Boy”.
Ao conversar sobre tudo isso, Richards é enfaticamente blasé: “com certeza é um pouco rude, mas o ponto é que estou tentando contar a história a partir do primeiro dia até agora”, diz ele.
E é claro: “Há um conflito aqui e ali. Mas se você pesar tudo isso, essas coisas não representam nada.”
Richards fez questão de que Jagger soubesse tudo o que estava no livro antes de publicá-lo.
“O importante para mim”, diz ele, “era que Mick tivesse lido e visto isso e soubesse o que era o que”.
E será que existe alguma coisa que um Stone possa dizer sobre outro Stone que seja uma ofensa nesse ponto? “Não”.
Mas há algo novo que possa ser dito sobre os Stones?
Como “Life” demonstra enfaticamente, a resposta é sim.
E parte do material mais revelador e surpreendente aparece no que Richards chama brincando de “Keef's Guitar Workshop”.
Aqui estão os segredos de alguns dos mais famosos riffs de rock e o equipamento quase de brinquedo no qual eles eram gravados, como o toca-fitas no qual Richards gravou faixa sobre faixa de guitarra para “Street Fighting Man”, “Jumpin'Jack Flash” e parte de “Gimme Shelter”.
Foi assim que as batidas silenciosas de “Heartbreak Hotel” de Elvis Presley abriram caminho em alguns dos solos mais inspirados de Richards.
Fox descobriu que a própria “Heartbreak Hotel” era uma chave para as melhores memórias musicais de Richards.
Algumas das quais são agora bem conhecidas dos críticos de música.
Mas Richards torna isso fascinante para o leigo.
E ele se surpreendeu ao descobrir que os primeiros leitores não pulam a parte da musicologia, embora o livro os convide cordialmente a fazer isso.
O que ele acha mais gratificante por ter escrito “Life” é a chance para que ele e seus leitores entendam a amplitude e a extensão do material desse livro.
Ele é um raro memorista que pode dizer, sem hipérboles, “que o que eu esperava que valesse à pena compartilhar com as pessoas acabou sendo muito mais importante do que eu poderia imaginar.”
Está ficando tarde.
É hora de sair dessa sala cor de laranja viva onde o nome de Richards está gravado numa cadeira de diretor; onde diversos prêmios de música e discos de platina estão por toda parte; onde há uma caveira pequena e discreta no meio do espelho de parede; onde sua capa de guitarra Louis Vuitton – ele fez um comercial para a marca – está encostada num canto.
Mas os itens que mais provavelmente chamam-lhe a atenção são os que estão sobre a mesinha de centro: cigarros soltos arrumados numa cigarreira, um isqueiro, mais cigarros num maço.
“Você se importa se eu fumar?”, perguntou ele logo que apareceu.
Essa é fácil: quem, fora Keith Richars e algumas autoridades legais, já impediu Keith Richards de fazer alguma coisa?
Mas uma hora se passou, e ele não tocou os cigarros.
Ele nem olhou para eles.
Ele não fez nada que lembrasse a criatura sombria, assombrada, diabolicamente bela na capa de seu livro, aquela com o fogo do inferno queimando em sua mão em direção àquela coisa desfocada e branca que ele está fumando.
“Aquilo?” diz ele inocentemente quando perguntado sobre a foto. “Ah, sou apenas eu acendendo um cigarro. Era tudo o que eu estava fazendo.”
Tradutor: Eloise De Vylder
Publicado em 25.10.2010
Nota do Editor do Mocó:
Estou publicando este texto da Janet Maslin porque aproveitei esta semana de poucas atividades em Manacapuru para ler o livro “Vida”, do Keith Richards, que havia comprado há mais de seis meses.
Confesso que me surpreendi com alguns relatos do guitarrista.
Por exemplo, eu achava que eles terem expulsado o Brian Jones da banda tinha sido uma tremenda filhadaputice.
Agora, estou convencido de que o filho da puta era o Brian Jones.
Estranhei, também, ele ter citado o baixista Bill Wyman (um “stone” autêntico) meia dúzia de vezes e citar o guitarrista Ron Wood (que nunca foi considerado um “stone” legítimo, mas um simples “músico de apoio”) uma dezena de vezes.
Keith não nega que ficou puto quando soube que Jagger havia comido Anita Pallenberg (mulher de Keith e mãe de seus dois primeiros filhos, Marlon e Angela).
Só que na mesma época, Keith estava comendo às escondidas a estonteante Marianne Faithfull, então esposa de Mick Jagger, sem nenhum remorso.
Keith diz que Jagger tinha um pinto minúsculo e bolas grandes, mas em nenhum momento diz que tem um pinto maiúsculo e bolas pequenas.
Freud explica?
A inserção do guitarrista no esfumaçado mundo musical da Jamaica é simplesmente hilariante.
E saber que John Lennon foi um de seus melhores amigos, me deixou de alma leve.
Eu também sempre preferi os cascas grossas Richards & Lennon aos açucarados Jagger & McCartney.
No mais, é um livro que recomendo para todos os amantes do legítimo rock’n’roll. Oh, yeah!
Um comentário:
KKKK adorei a forma como usou os termos, Belo artigo! OtimoBlog!
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