O autor de “O Céu Que
Nos Protege” levou sofisticação à literatura americana marginal
Rosane Pavam
Nos anos 40, exausto pelo trabalho diante de pilhas de
pentagramas que de pouco lhe valiam, o então compositor Paul Bowles decidiu se
lançar escritor. Discípulo de Aaron Copland, ele começou. Como os autores
americanos compatriotas seus, pelas revistas de contos, dando-lhes uma dúzia
para publicação. Em 1950, já se considerando destro na arte, e remunerado com
justeza, presenteou seus editores com um romance inteiro, mítico, sobre as
aventuras de um casal pelo Marrocos, país que vinha sendo sua moradia há três
anos. “O Céu Que Nos Protege” foi esse livro simbólico que alimentou os ideais
de uma geração estranhamente voltada ao mundo exótico e distante, de drogas
alucinatórias. Paul Bowles compreendeu que o Marrocos era uma poderosa rima
para a literatura do Ocidente.
O autor morreu em novembro de 1999, de problemas cardíacos,
num hospital italiano dessa mesma Tânger que escolheu como sua residência de
sonhos. Era um homem realizado em seus 88 anos. Homossexual, exercia as paixões
como um cavalheiro, sem que o incomodassem. O cozinheiro Mohammed lhe servia
regalos em todas as refeições. Seus livros haviam selado uma geração, a mesma
de William Burroughs e seu “Almoço Nu”, e ele ficara rico, embora reclamasse da
parca devolução de direitos autorais de suas obras. Mas Burroughs, Jack
Kerouac, Allen Ginsberg, todos americanos seus conhecidos, não escapariam de
ser marcados na lembrança coletiva como outsiders de jaqueta. Bowles não. Usava
seus anéis no dedo mínimo e não uivava para protestar. Tinha o toque do
maestro, não do percussionista. Era vital, com contenção.
A vida média americana, e todos os leitores de espírito,
amaram a sofisticação de Paul Bowles. Seus livros, especialmente os de contos,
como “Chá Nas Montanhas”, têm a beleza que a melancolia dita. “O Céu Que Nos
Protege”, essa obra triste e terrível, sobre um casal entregue aos ditames
sexuais de inspiração árabe, e cujo espírito se elevava no deserto sob uma
temperatura de açoites, era um relato decidido, mas simples. Como toda escrita
de Bowles, esta se apresentava a um tempo terna e devastadora, imageticamente
plena de poderes.
O diretor italiano Bernardo Bertolucci cometeu, então, uma
deliciosa obviedade ao filamr este livro, em 1990. John Malkovitch interpretava
Bowles, um tipo insano, intenso. Debra Wingers era a mulher maluquinha de
Bowles, Jane, que, embora o filme não diga, afeiçoara-se sexualmente a uma dama
do mercado de Tânger. O livro era perfeitamente dramático, ainda que palatável,
e Bowles leu suas passagens como narrador, convocado por Bertolucci. No filme,
o escritor também surgia em pessoa, com seu rosto enrugado de deserto. Os
filmes, ele conhecera quando os musicava, a pedido de profissionais da arte
como Orson Welles e Elia Kazan. Nascera para o cinema, e por ele trabalhara, em
música e em palavra. Sob a condução de Bertolucci, saiu-se perfeitamente bem.
Paul Bowles tinha essa formação clássica do rebelde. Brigou
com o pai, que, dizia, tentou mata-lo quando ele tinha pouco mais de um mês, e
abandonou a família quando pôde. Viajou para longe desde quando isso não era
exatamente usual para um americano: percorreu a América Central, a Europa, a
África e a Ásia, antes de chegar a Tânger, aos 36 anos de idade. Quis ser
pintor e almejou a poesia, mas foi desencorajado, nesta última pretensão, por
Gertrude Stein, a escritora. Voltou-se ao teatro, para o qual compôs canções,
até se fartar do mínimo dinheiro de que dispunha. Depois do grande sucesso de
“O Céu Que Nos Protege”, que lhe deu a reputação ambicionada de escritor,
surgiu em 1952 com outro romance, “Que Venha A Tempestade” (todos esses volumes
permanecem em catálogo no Brasil, pela editora Rocco), sobre um americano que
se fortalece em contato com a cultura dita “primitiva”.
Jane e Paul Bowles:
eram homossexuais, mas mantinham entre si uma relação forte
Seus livros fascinantes são exatamente isso: o mesmo livro,
protagonizado por idêntico personagem e ambientado no lugar de sempre. Neste
“Que Venha A Tempestade”. Seu intérprete em primeiro plano é Dyar, um homem
fraco e medíocre, americano por certo, que chega ao Marrocos sem razão firme, e
que vai endurecendo sua existência sob o novo clima. Para Bowles, o Oriente é o
que muitos escritores de sua estatura teriam pudor de admitir: mágico. Nessa
educação pela pedra, mais exatamente pelas partículas de rochas em
desagregação, de que a areia se constitui, qualquer homem se torna
contraditoriamente inumano.
O escritor brasileiro Euclides da Cunha fez de seu sertanejo
um forte e o diretor americano John Ford, de seus cowboys, seres existenciais.
Não há muita novidade, portanto, no que Bowles promoveu. Seus personagens estão
sujeitos ao meio, como os do americano Jack London, por exemplo, mas aqui
acontece de uma personalidade vagar pelo deserto marroquino, não pelo mar. Há
mais uma diferença importante na sua concepção de herói em relação aos autores
citados, e ela reside no motor que movimenta as bizarras atitudes dos
personagens envolvidos. No caso de Bowles, um ato pode ser justificado pelo
tabaco, pela marijuana ou por haxixe. Drogas, para esse pensador
tradicionalista, não significam libertação, antes uma passagem. Os homens as
utilizam no limite do escárnio, para ofender a moral europeia burguesa e
conservadora.
Bowles foi formado no surrealismo francês, como muitos
intelectuais de sua idade, embora jamais tenha escrito inspirado na ideia de
manifesto. Em princípio, adotou a escrita automática, mas não a praticou. E
isto porque a escrita automática que os surrealistas pregaram nunca passou de
um conceito de libertação, não a libertação em si, aproximadamente como aquilo
que é apresentado em um desfile de alta costura. No prêt-à-porter de Bowles
cabia o conceito de escritura inconsciente primordial, mas como molde impraticável.
Erudito, maldito, irônico, o escritor usou a elegância para dizer verdades bem
antigas.
Parece que não o entenderam assim, e nos anos 60 cultuaram a
simples menção que fazia de coquetéis alucinógenos em seus textos. Bowles virou
uma sensação. Mas ele havia condenado o tráfico em “Que Venha A Tempestade”. E
só justificou a droga como procura, dentro de uma perspectiva oriental,
decaída, de encantamento. Sua droga não é alienante, não participa do jogo do
trabalho, do qual Bowles descrê. Jane, sua esposa, também escritora, viciada em
haxixe e sexo, sofreu um derrame em 1957, jamais recuperou a saúde física e
mental, e morreu numa clínica psiquiátrica na Espanha, em 1973, aos 55 anos.
Ele não defendia, portanto, a droga como necessária. Eram homossexuais, ele e
Jane, e mantinham entre si uma relação forte. Quando ela morreu, o autor perdeu
uma ouvinte especialíssima para seus escritos.
Paul Bowles era músico também quando escrevia e a beleza de
seus textos esteve encerrada em frases como “nada tem importância na vida, nem
mesmo a própria vida”. Mas não se deve levar esse niilismo em consideração
escrita: o autor meditou tranquilo, enquanto a civilização ocidental ensaiou
seu fim, e dela ele tirou o proveito possível.
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