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quarta-feira, maio 14, 2014

A escrita terna e devastadora de Paul Bowles


O autor de “O Céu Que Nos Protege” levou sofisticação à literatura americana marginal

Rosane Pavam

Nos anos 40, exausto pelo trabalho diante de pilhas de pentagramas que de pouco lhe valiam, o então compositor Paul Bowles decidiu se lançar escritor. Discípulo de Aaron Copland, ele começou. Como os autores americanos compatriotas seus, pelas revistas de contos, dando-lhes uma dúzia para publicação. Em 1950, já se considerando destro na arte, e remunerado com justeza, presenteou seus editores com um romance inteiro, mítico, sobre as aventuras de um casal pelo Marrocos, país que vinha sendo sua moradia há três anos. “O Céu Que Nos Protege” foi esse livro simbólico que alimentou os ideais de uma geração estranhamente voltada ao mundo exótico e distante, de drogas alucinatórias. Paul Bowles compreendeu que o Marrocos era uma poderosa rima para a literatura do Ocidente.

O autor morreu em novembro de 1999, de problemas cardíacos, num hospital italiano dessa mesma Tânger que escolheu como sua residência de sonhos. Era um homem realizado em seus 88 anos. Homossexual, exercia as paixões como um cavalheiro, sem que o incomodassem. O cozinheiro Mohammed lhe servia regalos em todas as refeições. Seus livros haviam selado uma geração, a mesma de William Burroughs e seu “Almoço Nu”, e ele ficara rico, embora reclamasse da parca devolução de direitos autorais de suas obras. Mas Burroughs, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, todos americanos seus conhecidos, não escapariam de ser marcados na lembrança coletiva como outsiders de jaqueta. Bowles não. Usava seus anéis no dedo mínimo e não uivava para protestar. Tinha o toque do maestro, não do percussionista. Era vital, com contenção.

A vida média americana, e todos os leitores de espírito, amaram a sofisticação de Paul Bowles. Seus livros, especialmente os de contos, como “Chá Nas Montanhas”, têm a beleza que a melancolia dita. “O Céu Que Nos Protege”, essa obra triste e terrível, sobre um casal entregue aos ditames sexuais de inspiração árabe, e cujo espírito se elevava no deserto sob uma temperatura de açoites, era um relato decidido, mas simples. Como toda escrita de Bowles, esta se apresentava a um tempo terna e devastadora, imageticamente plena de poderes.

O diretor italiano Bernardo Bertolucci cometeu, então, uma deliciosa obviedade ao filamr este livro, em 1990. John Malkovitch interpretava Bowles, um tipo insano, intenso. Debra Wingers era a mulher maluquinha de Bowles, Jane, que, embora o filme não diga, afeiçoara-se sexualmente a uma dama do mercado de Tânger. O livro era perfeitamente dramático, ainda que palatável, e Bowles leu suas passagens como narrador, convocado por Bertolucci. No filme, o escritor também surgia em pessoa, com seu rosto enrugado de deserto. Os filmes, ele conhecera quando os musicava, a pedido de profissionais da arte como Orson Welles e Elia Kazan. Nascera para o cinema, e por ele trabalhara, em música e em palavra. Sob a condução de Bertolucci, saiu-se perfeitamente bem.

Paul Bowles tinha essa formação clássica do rebelde. Brigou com o pai, que, dizia, tentou mata-lo quando ele tinha pouco mais de um mês, e abandonou a família quando pôde. Viajou para longe desde quando isso não era exatamente usual para um americano: percorreu a América Central, a Europa, a África e a Ásia, antes de chegar a Tânger, aos 36 anos de idade. Quis ser pintor e almejou a poesia, mas foi desencorajado, nesta última pretensão, por Gertrude Stein, a escritora. Voltou-se ao teatro, para o qual compôs canções, até se fartar do mínimo dinheiro de que dispunha. Depois do grande sucesso de “O Céu Que Nos Protege”, que lhe deu a reputação ambicionada de escritor, surgiu em 1952 com outro romance, “Que Venha A Tempestade” (todos esses volumes permanecem em catálogo no Brasil, pela editora Rocco), sobre um americano que se fortalece em contato com a cultura dita “primitiva”.


Jane e Paul Bowles: eram homossexuais, mas mantinham entre si uma relação forte

Seus livros fascinantes são exatamente isso: o mesmo livro, protagonizado por idêntico personagem e ambientado no lugar de sempre. Neste “Que Venha A Tempestade”. Seu intérprete em primeiro plano é Dyar, um homem fraco e medíocre, americano por certo, que chega ao Marrocos sem razão firme, e que vai endurecendo sua existência sob o novo clima. Para Bowles, o Oriente é o que muitos escritores de sua estatura teriam pudor de admitir: mágico. Nessa educação pela pedra, mais exatamente pelas partículas de rochas em desagregação, de que a areia se constitui, qualquer homem se torna contraditoriamente inumano.

O escritor brasileiro Euclides da Cunha fez de seu sertanejo um forte e o diretor americano John Ford, de seus cowboys, seres existenciais. Não há muita novidade, portanto, no que Bowles promoveu. Seus personagens estão sujeitos ao meio, como os do americano Jack London, por exemplo, mas aqui acontece de uma personalidade vagar pelo deserto marroquino, não pelo mar. Há mais uma diferença importante na sua concepção de herói em relação aos autores citados, e ela reside no motor que movimenta as bizarras atitudes dos personagens envolvidos. No caso de Bowles, um ato pode ser justificado pelo tabaco, pela marijuana ou por haxixe. Drogas, para esse pensador tradicionalista, não significam libertação, antes uma passagem. Os homens as utilizam no limite do escárnio, para ofender a moral europeia burguesa e conservadora.

Bowles foi formado no surrealismo francês, como muitos intelectuais de sua idade, embora jamais tenha escrito inspirado na ideia de manifesto. Em princípio, adotou a escrita automática, mas não a praticou. E isto porque a escrita automática que os surrealistas pregaram nunca passou de um conceito de libertação, não a libertação em si, aproximadamente como aquilo que é apresentado em um desfile de alta costura. No prêt-à-porter de Bowles cabia o conceito de escritura inconsciente primordial, mas como molde impraticável. Erudito, maldito, irônico, o escritor usou a elegância para dizer verdades bem antigas.

Parece que não o entenderam assim, e nos anos 60 cultuaram a simples menção que fazia de coquetéis alucinógenos em seus textos. Bowles virou uma sensação. Mas ele havia condenado o tráfico em “Que Venha A Tempestade”. E só justificou a droga como procura, dentro de uma perspectiva oriental, decaída, de encantamento. Sua droga não é alienante, não participa do jogo do trabalho, do qual Bowles descrê. Jane, sua esposa, também escritora, viciada em haxixe e sexo, sofreu um derrame em 1957, jamais recuperou a saúde física e mental, e morreu numa clínica psiquiátrica na Espanha, em 1973, aos 55 anos. Ele não defendia, portanto, a droga como necessária. Eram homossexuais, ele e Jane, e mantinham entre si uma relação forte. Quando ela morreu, o autor perdeu uma ouvinte especialíssima para seus escritos.

Paul Bowles era músico também quando escrevia e a beleza de seus textos esteve encerrada em frases como “nada tem importância na vida, nem mesmo a própria vida”. Mas não se deve levar esse niilismo em consideração escrita: o autor meditou tranquilo, enquanto a civilização ocidental ensaiou seu fim, e dela ele tirou o proveito possível.

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