Ronaldo Bressane
Aí o Senna chegou no céu perdidão e a primeira pessoa que
encontrou foi o Dener. “To ligado, acidente de carro é uma merda”, disse o
Dener. “O negócio é esquecer isso e se ligar nas gatinhas daqui, mano.” Senna
apontou uma morena: “E aquela princesa, conhece?” O Dener: “Ih, mano, mas
aquela é a Daniella Perez… Deixa quieto, essa mina é mó furada.”
Esse tipo de piada infame, juntando três defuntos frescos —
Senna havia morrido no dia anterior, o jogador de futebol Dener duas semanas
antes (em um acidente na Lagoa Rodrigo de Freitas) e a atriz Daniella Perez,
assassinada a facadas — já circulava na agência de propaganda em que eu
trabalhava assim que cheguei, às 11h. Numa era pré-internet, em um estranho
fenômeno, as piadas com o ilustre cadáver haviam se proliferado loucamente
menos de um dia após a tragédia de Tamburello.
Airbag emocional tipicamente brasileiro esse, o de fazer
piadas com pessoas que amamos e idolatramos. Um jeito infantil de nos
distanciar do medo comum da morte, ou forma de retirar os ídolos do pedestal da
eternidade e então trazê-los de volta, perto de nós, a ponto de virarem
personagens de piadas? É um tópico que retornará, aposto, quando Silvio Santos,
Pelé, Lula ou Roberto Carlos dobrarem a curva.
Só não espero mortes tão trágicas quanto a daquele domingo
cinzento. Eu comia um sanduíche na cozinha vendo a corrida distraído. Em 1994
já não era tão fã de Senna quanto em 1991, quando tinha me juntado às dezenas
que invadiram a pista de Interlagos para ovacionar o sujeito que tinha ganho a
corrida de modo tão épico, segurando o carro só no acelerador e no freio, uma
vez que todas as marchas haviam quebrado, menos a primeira e a sexta — feito
impensável hoje, quando os pilotos de F-1 são pouco mais do que robôs
teleguiados sem o mínimo carisma. Mesmo assim, no momento em que Senna bateu eu
soube imediatamente que havia morrido — e o sanduíche parou numa curva da
garganta.
Foi um dos domingos mais tristes; tristeza igual, ou pior,
só dali a três anos, com a morte de outro ídolo, e este próximo, pois era amigo
de amigos: Chico Science. O líder do manguebeat foi a última esperança da nossa
geração em limar o abismo que tornava inimigos o popular e a vanguarda. Suas
ideias influenciaram toda a MpopB que veio depois; no entanto, jamais surgiu
outra figura que condensasse tantos talentos quanto Chico — e perdemos aquela
batalha. Ambos, Senna e Science, aceleravam demais, e ambos foram mortos pela
mesma cultura do automóvel — a diferença é que, enquanto o paulista era devoto
da velocidade das McLaren, o pernambucano desfilava lento em um psicodélico
Galaxie, a nave favorita para viajar na música (se guiasse o Landau e não um
Uno naquele domingo talvez ainda estivesse entre nós).
Também nunca mais surgiu um carismático herói nacional como
Senna, que encarnava a audácia e esperteza macunaímicas frente aos desafios da
alta tecnologia dominada pelo “primeiro mundo”, expressão largamente usada na
época. Senna livrou os brasileiros do complexo de viralatas que vivíamos nos
hiperinflacionários anos pré-Plano Real. Science lidou com os complexos de uma
nação em especial — Pernambuco, cuja capital havia sido eleita a 4a pior cidade
do planeta —, só que transformou-os em resistência política, em arte
sofisticada, em orgulho e, por que não, em humor, ao criar a dança em que se
metamorfoseava em caranguejo, o meio de vida do lúmpen que vive enfiado na
lama.
Não vamos nos iludir: vinte anos depois da morte de Senna,
ainda vivemos enfiados na lama do “primeiro mundo” que nos atira bananas tão
logo nossas cabeças emergem do barro. E nem todos engolem o recalque com a
sagacidade do Dani Alves. As piadas daquela segunda após a morte do herói eram
um exemplo típico do retorno do recalcado: morto, Senna tinha perdido sua
guerra particular contra os gringos, e era legítimo ridicularizá-lo, como se
assim ele retornasse à origem — a lama da cova Silva que nos pariu. Estou
curioso em saber como lidaremos com nossos próximos lutos e recalques — que
podem aparecer numa derrota nesta Copa.
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