Ele compra rodos de
pia, chega sempre adiantado, acompanha os folhetos de desconto das farmácias,
tem o coração grande e um quintal comprido
Vanessa Barbara
O distrito do Mandaqui, como todos sabem, localiza-se na
Zona Norte de São Paulo, entre os condados de Santana e Cachoeirinha. Segundo
uma pesquisa recente, tem área de 13 quilômetros quadrados e população de 103
mil moradores, dentre os quais 53% são católicos e 37%, corintianos. Ainda
segundo a pesquisa, 46% dos mandaquienses possuem cachorros e 1% deles são
felizes proprietários de coelhos. A média de idade é de 38 anos, com
predominância de mulheres e solteiros. Há 6% de viúvos e 15% de fãs de música
sertaneja. Exatos 35% são gordinhos.
O nome do bairro vem do tupi “rio dos bagres”, o que
dispensa comentários, mas há outras versões. Uma delas remete a um antigo
morador, que, ao encontrar em sua propriedade os funcionários da Companhia da
Cantareira, disse que quem mandava ali era o “filho do meu pai”, ou seja, ele
mesmo. Os vizinhos, de irredutível natureza trocadilhesca, passaram a se
referir à área como terra do Mandaqui.
Os primeiros mandaquienses tinham o sobrenome Zumkeller e
chegaram à região no início do século XX. Ali plantaram videiras e criaram gado
leiteiro. Com a prosperidade, veio o estrelato: o patriarca Alfredo, sua esposa
Judith e os filhos Eduardo, Jorge, Maurício, Lídia e Julieta viraram
logradouros. Tornaram-se avenida Zumkeller, rua Judith Zumkeller e por aí vai –
ainda não há consenso se a pronúncia é “Zúncler” ou “Zumquéler”. Esses foram os
pioneiros e mais ilustres mandaquienses, mas não sabemos quais eram os seus
anseios e preocupações.
Hoje se sabe que o mandaquiense típico não é pontual: sempre
chega com escandalosa antecedência, como se considerasse o ônibus quebrado, a
enchente no caminho, a manada de ovelhas interditando o farol. A antecipação
oscila entre quinze e sessenta minutos, com picos de até duas horas, e o
mandaquiense, invariavelmente aflito, vai procurar uma padaria para tomar um
suco enquanto o compromisso não vem. É comum encontrar mandaquienses vagando
pelas ruas do Itaim, sentados no meio-fio, brincando com tampinhas de guaraná e
checando o relógio de cinco em cinco minutos.
O mandaquiense usa relógio de pulso. Gosta de acordar cedo,
ouve rádio de pilha e acompanha a meteorologia. Quando criança, divide o cabelo
ao meio e tem um desses estojos de lata, cheios de canetas e borrachas
coloridas. O mandaquiense gosta de grifar, de fazer tabelas e de cumprimentar
os vizinhos. Ele lê muito, pois de Santana ao Mandaqui os ônibus tendem a ficar
presos no tráfego. E não é só isso: o mandaquiense acompanha com zelo os
folhetos de ofertas dos mercados e das farmácias. É ele quem enfrenta multidões
às cotoveladas só para comprar um abacaxi com 60 centavos de desconto.
No âmbito emocional, o mandaquiense tem um senso de humor
complicado e é fácil ofendê-lo sem querer. Por outro lado, é dificílimo magoar
um mandaquiense de propósito. Os mais vis xingamentos não atingem o habitante
local, que, distraído, nunca acha que é com ele. Costuma ter o coração grande e
um comprido quintal. Gosta de plantas e de vendedores de mandioca, nessa ordem,
estuda em colégio religioso e dificilmente repete de ano.
Ele se interessa pelo mecanismo de funcionamento das coisas
e pode passar semanas tentando consertar um espremedor de laranjas, debruçado
sobre uma mesa cheia de arruelas e chaves de fenda. Faz ele mesmo os reparos no
telhado, só para não precisar pagar um especialista. Quanto aos especialistas,
os mandaquienses são os mais tenazes. Resolvem qualquer questão hidráulica,
elétrica ou mecânica, e, se não resolvem, é garantia de que passarão meses
tentando. Fornecerão as instruções pelo telefone, se for o caso, agregando
informações recentes sobre a família, o clima e os boatos locais.
Os nativos do Mandaqui são às vezes avoados, mas, quando
decidem se concentrar, gastam um tempo desproporcional em tarefas que só
interessam a eles, como mandar cartas-resposta à fábrica de doce de abóbora
reclamando da dificuldade de abrir os potes, com datas e horários das
tentativas de libertar a guloseima. É ele que dá consistência às filas nos
açougues, que congestiona a linha telefônica da Eletropaulo quando falta luz e
que grita “Vai, Curíntias” durante a formatura dos sobrinhos.
Um diálogo típico entre dois mandaquienses pode se dar da
seguinte forma:
NUNO: “O Robert Altman morreu.”
SILAS: “A Odete Roitman?”
O mandaquiense não tem senso de direção e se confunde com
facilidade. Veste o pijama às quatro da tarde e adora sair para comprar
engenhocas de plástico, patinhos de borracha, rodos de pia, pregadores de
madeira e papa-bolinhas que não funcionam. (No bairro, ainda existem amoladores
de faca e vendedores de biju.) O mandaquiense faz a lista de compras no
computador e usa a fonte Comic Sans, dividindo por cores os itens de higiene
pessoal, alimentação e jardinagem.
São mandaquienses em potencial aqueles que classificam os
livros em ordem alfabética, dispõem as camisas do armário em degradê e possuem
o mesmo arranjo de gavetas desde 1964. São mandaquienses desde criancinha
aqueles que fazem uma refeição respeitando o equilíbrio dos componentes no
prato – o arroz deve chegar ao fim concomitantemente ao feijão e à mistura, e
esta ao suco, sob pena de “dar nojo” aos comensais.
“Dar nojo” é uma expressão típica, empregada quando algo
está fora do lugar ou um forasteiro deixa a gaveta aberta, por exemplo. O nojo
está para o mandaquiense assim como a guerra, a fome e a peste estarão para a
humanidade no Juízo Final. Se quiser apoquentar um habitante local, é só largar
uma meia do avesso em qualquer lugar da casa e ficar atrás da porta, esperando.
Os resultados são imediatos.
Outra conversa característica entre dois autóctones, na
porta da farmácia:
NUNO: Silas, lembra do que eu te falei agora há pouco? Sobre
aquele meu primo que mora no Lauzane, e que casou na semana passada?
SILAS: Não.
O nativo do Mandaqui costuma ter opiniões fortes sobre os
enxaguatórios bucais e não atende o telefone dizendo “Alô”, mas “Alôncio” – e
aí cai na gargalhada sozinho, antes de engatar uma conversa com quem quer que
seja do outro lado da linha. Principalmente se for engano. É comunicativo, mas
não sabe contar piadas. Não resiste a um calemburgo do tipo “Aldo, você está
atrasaldo!”. Confraterniza com os patrícios em cadeiras nas calçadas ou no
balcão das padarias, onde reclama do colesterol alto e pergunta como vai o João
Perninha, da bocha.
A propósito: para ter respeito e receber a alcunha de
“senhor” no bairro, é necessário que o proponente seja proprietário de um
comércio – o sr. Eliseu da quitanda, o sr. Irineu do bar do clube e o
microempresário sr. Firmo Farias –, ou ter sobrevivido a uma hecatombe nuclear –
sr. Nakamura. Agora, se o sujeito foi alçado à glória terrena apenas por jogar
bocha, deve se contentar com apelidos como João Perninha, Pedro de Lara, Zé
Colmeia ou Frangão.
O mandaquiense sobe e desce os morros com um guarda-chuva em
punho e meia dúzia de garrafas pet na sacola, toma o 118-C lotado e sobrevive à
fúria do motorista, que faz as curvas como quem toma a Prússia. Se o mundo
fosse só de mandaquienses, certamente seria melhor, mas todos teriam que usar
pochetes.
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