Nós, os 37, somos as
únicas pessoas livres do Brasil
Vanessa Barbara
O telefone celular não é apenas um artefato do Coisa-Ruim,
assim como a televisão é a Besta encarnada. É um rastreador do
governo/alienígenas/palhaços/Grandes Corporações que serve para manter cada
indivíduo sob o domínio deles. Via satélite, eles controlam aonde o senhor
9999-9999 vai, o que fala, quanto tempo demora a digerir um rosbife e tudo o
que está pensando, inclusive quando, silenciosamente, comemora: “Humm,
rosquinhas.”
Somos 37 os integrantes do combalido Grêmio Pan-americano de
Repúdio ao Celular, organização com fins lucrativos que se dedica a imprecar
contra o aparelho de telefonia móvel. No quadro de associados, figuram meu avô,
o Elton John, um sujeito que mora ao sul de Tocantins, uma velha chamada
Celeste que tem os dedos gordos e não consegue apertar as teclas
individualmente, o Chico Buarque, o Matheus Nachtergaele, o tio de uma amiga
minha, a cantora Stephany do Piauí, um andarilho chamado Ganesha Sol de
Oliveira e eu.
Nos últimos meses, o número de membros só tem diminuído,
devido à idade avançada dos fundadores e por conta de certos escândalos – como
telefones pessoais vibrando durante a reunião de diretoria.
Em dezembro do ano passado, o Brasil chegou a 169 milhões de
celulares, São 88,43 aparelhos para cada 100 habitantes. É questão de tempo
para que todos os terráqueos (menos nós, os 37) estejam sob o domínio deles.
É fácil reconhecer as vítimas deles. Vejam como ficam
desorientados, remexendo suas bolsas diante de qualquer ruído, mesmo quando a
gente imita som de telefone com a boca. Diante de um sinal preestabelecido,
como o hino do Palmeiras ou Adocica, de Beto Barbosa, todos sairão correndo
para atender seus respectivos telemóveis e receberão ordens de aplicar
petelecos uns aos outros. A senha para a instauração da balbúrdia será: “É o
meu! É o meu!”, e nós, os 37, assistiremos ao espetáculo com um sorriso no rosto,
tranquilos e gabolas.
Gostamos bastante de celulares que explodem. Apreciamos
macabros ringtones que provocam sustos nos proprietários. Exultamos ao ver as
filas à porta das operadoras, gente que tropeça no ônibus com o aparelho
equilibrado entre a orelha e o ombro e, sobretudo, o semblante de pânico e
prontidão no rosto de quem traz a maléfica engenhoca no bolso. Reagimos com
euforia às pesquisas que dizem que o celular dá gota, tifo e problemas
abdominais a esclarecer. Exemplo: a partir de 1994, a cidade de Londres
registrou um declínio de 75% na população de pássaros, o que coincide com a
popularização dos celulares na cidade.
Outro dia, li numa revista institucional uma matéria
definitiva sobre as benesses do celular, elaborada inteiramente a partir de um
gerador automático de artigos: cinco páginas de puro senso comum, com
estatísticas aleatórias e frases de efeito a cada fim de parágrafo. O texto,
que de resto era profundo como uma bateria de telefone portátil, terminava,
triunfantemente, da seguinte maneira: “Com ou sem radiação, símbolo de status,
objeto funcional ou companheiro virtual, não importa: o celular mudou
definitivamente as nossas vidas – e o seu alcance ainda nem chegou perto de
todo o seu potencial.”
Como se pode ver, o celular realmente frita os neurônios. Em
questão de minutos. “Com ou sem radiação” virou o mote do nosso grêmio, que se
gaba de ter um telefone fixo, de disco, só para receber ligações dos advogados
da Cooperativa de Telefonia Móvel. Também temos orgulho de haver eleito Edson
Celulari como inimigo número um da classe, num congresso que durou três horas e
terminou com uma feirinha de artesanato e papéis de carta.
Uma coisa que invejamos nos usuários, porém, é a capacidade
de realizar complexas operações matemáticas e calcular variantes. Exemplo: a
operadora X fornece 23% de desconto na franquia mensal para quem fala 280
minutos em ligações locais, envia 100 torpedos por mês, baixa três megabytes de
dados e tem uma tia chamada Lourdes. Já a operadora Y cobra só depois do
primeiro minuto, permite roaming gratuito, exige fidelidade de dezoito meses e
libera sem custos o envio de fotomensagens. É preciso ter doutorado em
estatística para computar esses dados. Pois bem, o detentor de um celular
considera todos esses fatores simultaneamente e, no final, escolhe o pior
plano, com os piores atendentes, e um sinal fanho que só melhora nas cercanias
do Pico do Jaraguá.
Em geral, o dono de uma linha iniciada com 6, 7, 8 ou 9
costuma estrear a engenhoca no ônibus. A quem interessar possa, se é que isso
algum dia interessaria a alguém, ele grita: alô? está me escutando? estou
entrando num túnel. E em seguida passa a fornecer informações em tempo real
sobre o itinerário. É esse o grande barato do telefone móvel: anunciar ao
pessoal de casa que já vou chegar, estou na frente do castelinho, e, pouco
depois: acabei de passar no ponto do frangão, mais uns cinco minutos... É comum
mentirem: em Copacabana, dizem que estão quase chegando no Méier. Ou então
engatam uma conversa íntima sobre o furúnculo do cunhado, a excursão feita pela
Europa, as enchentes, a evolução das espécies. Quando menos se espera, o
bate-papo já virou briga, com direito a descrição dos mais recentes escândalos
extraconjugais. O chato é que ninguém está autorizado a levantar a mão e tirar
suas dúvidas.
Há também os que atendem o telefone no cinema, gritando:
agora não dá, estou no cinema (não diga!). Ou os que resolvem checar as
mensagens durante os trailers, projetando um facho de luz celestial que cega
temporariamente até o homem da projeção. Ou então aqueles que usam o aparelho
como se fosse um walkie-talkie, no viva-voz, e nem têm a gentileza de anunciar
antes: “Estou aqui na praça com mais cinco desconhecidos, uns bebês, a moça do
sorvete, o varredor e o pessoal que saiu do filme por minha causa. Todo mundo
está ouvindo. O que você queria me contar sobre a sua micose?”
Como se não bastasse, os proprietários de celular são
comprovadamente culpados por acidentes de toda sorte, como o entupimento
involuntário de privadas e o congestionamento de pedestres nas calçadas. O
fenômeno ocorre quando um ou mais transeuntes atendem uma chamada e passam a
andar mais devagar, descrevendo um movimento de cambaleante zigue-zague, para
desespero dos que estão atrás. É ruim, mas nada é pior do que tentar conversar
com alguém que está mandando mensagens. De quando em quando, o sujeito levanta
a cabeça, faz a tradicional pausa de quem estava em outra era geológica e
pergunta: “Quem?”, alcançando o assunto com dois meses de atraso.
Nosso grêmio está aceitando novos membros. A prioridade é
para quem nunca teve um celular e não pretende ter, nem sob o seu cadáver,
mesmo que seja justamente para chamar a emergência e salvar a própria vida.
Também podem se candidatar aqueles que possuem o aparelho, mas desejam se
recuperar, os ex-nomofóbicos (dependentes patológicos) e os que o deixam
desligado na gaveta de casa, desde que não saibam “que botão eu aperto para
atender”.
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