Marcelo Rubem Paiva
Invejo quem não tem celular. Existem e são admiráveis. São
poucos. Estão em extinção. Quando precisam falar com alguém, ligam de um fixo.
Admiro pessoas que ligam do fixo. São econômicas. Sem contar
que a ligação é clara e não cai.
Invejo quem não tem carro, nem carta ou carteira de
motorista. Vai a lugares a pé, usa “condução” ou bicicleta, e volta de carona
ou racha um táxi. Nunca soprou num bafômetro. Não estão em extinção.
Negam a revolução industrial. São pessoas mais econômicas e
descomplicadas. Talvez por isso mais felizes.
E invejo quem não está no Face, Twitter, Insta, Linkedin,
G+, WhatsApp, em lugar nenhum: o que não existe virtualmente, nunca “teve”
Orkut e nem sabe o que é o extinto MSN.
São seres analógicos, mais evoluídos do que a maioria.
Caminham, olham o nada ou algo sem a urgência de um registro fotográfico ou um
comentário, uma curtida, uma postagem.
Mandam cartas e cartões postais escritos a mão. Negam a
revolução tecnológica. Estão no topo da linha evolutiva.
Sim, existe gente que não se comunica, nem curte, nem posta.
Não critica, nem milita, nem lamenta a morte de um ídolo para amigos,
conhecidos, seguidores desconhecidos e amigos de amigos. Não se indigna, não se
revolta, não se mostra. Não mostra seus gatos, seus pratos, sua mãe no dia
delas. Nem relata suas viagens. Não pensa, não expõe, não se exibe para
centenas ou milhares de pessoas. Logo, não existe? Nem o pôr-do-sol retrata.
Nem a lua tem o seu momento. O que dirá de um nascer do sol? Existe?
Sobre os Guarani-Kaiowá, o alienado analógico não emitiu
opinião em público, nem militou contra a sua extinção. Raquel Sherazade? Nem
sabe quem é. Não entende por que algumas celebridades aparecem com cartaz
escrito “bring back our girls”. Não lamenta para muitos a onda de linchamentos,
o descaso com o dinheiro público, não cita Mahatma Ghandi, Caio Fernando Abreu,
Nelson Rodrigues, Cazuza, Veríssimo, Renato Russo, Millôr.
Ainda não anunciou sua nova posição ideológica, nem em quem
não vai votar, não elogiou a simplicidade de José Mujica, o presidente
uruguaio, não se revoltou contra a perseguição a gays e garotas da banda Pussy
Riot na Rússia, não riu das barbeiragens que eles, os russos, bêbados, praticam
nas estradas, nem comentou que no Rio de Janeiro se diz “bandalha”, não
barbeiragem, ou transgressão.
Não postou fotos do carro sem permissão na vaga de
deficiente, do prefeito de Londres indo de bike pro trabalho, do
primeiro-ministro do Reino Unido indo de metrô pro trabalho, do príncipe
William flagrado na classe econômica como um plebeu. Não viu o comercial que
todos devem ver, o vídeo a que todos devem assistir, a foto que vai fazer as
pessoas pensarem de outra maneira, fotos que vão mudar a vida, a rotina, a
forma como trabalhamos, do animalzinho que quer apenas ser amado, do outro que
ao invés de devorar a presa cuida dela.
Não soube da cidade que DEVE visitar, do livro que DEVE ler,
do filme que DEVE ver, do clipe que TEM que assistir, do hotel em que um
conhecido ficou para ser invejado, da nova banda de que TODOS estão falando, da
criança que surpreende e faz algo incrível e inesperado, que prova como existe
inteligência em quem menos se espera. Não leu sobre o alerta contra golpes
praticados, a torcida para que não haja Copa, que algum repórter internacional
falou (mal) de nós, sobre o complexo de vira-lata que temos, e que a
unanimidade é burra.
Não viu a foto de uma flor que desabrochou numa selva de
pedras, a piada, a gostosa, a amiga fazendo biquinho, a amiga fazendo cara de
sexy, a lista do que difere os homens das mulheres, as últimas sobre maconha,
as fotos da repressão policial brutal, de como era antigamente, o filme raro
encontrado, bons exemplos feitos por pessoas altruístas, enquanto o acomodado
só reclama, a denúncia contra maus tratos contra animais, o poema, a charada, o
superatleta que faz coisas com uma incrível habilidade, voa sobre abismos,
pedala sobre montanhas, a ilusão de ótica que faz bolinhas se moverem e que
parece mágica, o pedido de que “alguém tem que fazer alguma coisa”, as provas de
que houve a realização de um sonho, o astro com uma banana na mão. Nem
descobriu que alguns amigos têm opiniões aterradoras.
Pensar que há dez anos não existiam redes sociais.
Há 20, a internet não era regulamentada, nem existia o
consórcio W3C (World Wide Web Consortium).
Há 30, não tinha celular nem computador pessoal no Brasil.
A maioria não tinha telefone nem máquina fotográfica.
E éramos bem informados e educados.
Militávamos contra a possível extinção de uma nação
indígena, protestávamos contra linchamentos e o descaso com o dinheiro público,
líamos Mahatma Ghandi, livros de Caio Fernando Abreu, Veríssimo e Millôr,
comprávamos discos do Cazuza e Renato Russo, anunciávamos nossa posição
ideológica em bótons, broches e pins na jaqueta, víamos o comercial que todos
deviam, sabíamos do livro que DEVÍAMOS ler, do filme que DEVÍAMOS ver, da nova
banda de que TODOS estavam falando, do “complexo de vira-lata”, cria do Nelson
Rodrigues (cujas peças assistíamos) em maio de 1958, meses antes do Brasil
ganhar a primeira Copa do Mundo, numa crônica publicada na Manchete Esportiva,
relembrada por Ruy Castro no livro Os Garotos do Brasil (Foz).
Víamos fotos da repressão policial brutal, desvendávamos a
charada, o poema, a ilusão de ótica que faz bolinhas se moverem, no livro de
ilusões de óticas que todos tinham.
Éramos mais discretos.
Menos ansiosos.
Não precisávamos da aprovação alheia.
Não precisávamos chamar tanta atenção, nem criar a ilusão de
que somos melhores do que somos.
Somente éramos.
Juliana Sayuri entrevistou para o caderno ALIÁS o grande
filósofo Michel Maffesoli, ou melhor, antropólogo urbano, nosso teórico
favorito dos anos 1980, da pós-modernidade.
Que agora tem 69 anos e anda mais lúcido do que nunca –
diretor do Centre d’Études sur l’Actuel et le Quotidien (CEAQ) da Université
Paris Descartes – Sorbonne.
Vale a pena.
Aqui, o pingue pongue entre os 2:
Qual é o papel das
mídias sociais na pós-modernidade?
Podemos dizer que, na pós-modernidade, as mídias estão se
tornando mais e mais importantes, especialmente as chamadas “mídias sociais”.
Lembremos Hegel, que dizia no século 19: a leitura do jornal é a oração do
homem moderno. Podemos pensar que as mídias interativas serão a oração do homem
pós-moderno. Contrariamente às críticas tradicionais, porém, acredito que essas
mídias favorecem a mediação, isto é, a relação e a inter-relação entre as
pessoas. Se a modernidade, particularmente no seu momento final, viu o triunfo
da “multidão solitária”, a pós-modernidade nascente verá se desenvolver uma
multiplicidade de novas tribos urbanas, cuja essência é o relacionismo.
Com os avanços
tecnológicos, nós estamos observando a emergência de uma geração ‘selfie’?
Certamente o selfie está no ar. Entretanto, na minha
opinião, essa mise en scène de si mesmo não é, como se costuma dizer, o símbolo
de um aprisionamento de si. Nessa perspectiva, discordo dos teóricos que
abordam abusivamente o narcisismo. Prefiro dizer que os selfies compõem a forma
contemporânea da iconofilia. Assim, podemos indicar um narcisismo tribal. Isso
quer dizer que, ao difundir essas fotografias, nós pretendemos nos posicionar
em relação aos outros da tribo. Se traçarmos um paralelo com uma imagem
religiosa, o selfie tem uma finalidade sacramental, que torna visível a força invisível
do grupo. O que me liga aos outros da minha tribo? Nós nos definimos sempre em
relação ao outro. Assim, o fenômeno tribal repousa essencialmente no
compartilhamento de um gosto (sexual, musical, religioso, esportivo, etc.). É
preciso dizer que essa “partilha” cresce exponencialmente com o desenvolvimento
tecnológico.
Nas mídias sociais,
publicamos ‘selfies’ sempre felizes. Somos tão felizes? Ou filtramos nossos
retratos justamente para esconder nossas angústias atuais?
De fato, as mídias sociais (Facebook, Instagram, Twitter,
etc.) tendem a dar uma figuração feliz de nós mesmos. Certamente não estamos
sempre felizes. Mas há aí um movimento de pudor: nós tendemos a dar à tribo, ou
às diversas tribos às quais pertencemos, imagens reconfortantes de nós mesmos.
No entanto, historicamente, é preciso lembrar que os quadros e as esculturas,
as imagens próprias a todas as civilizações destacaram essencialmente essa
figuração de felicidade. Os últimos livros de Michel Foucault (História da
Sexualidade: O Cuidado de Si e História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres)
mostram que isso marcou a Grécia e a Roma antiga. Foi o caso também na Idade
Média. Para resumir em uma expressão: isso traduz um “pudor antropológico”, que
é um elemento essencial do viver em sociedade.
Há quem argumente que
a tecnologia está nos tornando antissociais. Temos muitos amigos no Facebook,
mas estamos mais solitários?
Contrariamente aos críticos que sublinham o isolamento
crescente, que seria característico das megalópoles pós-modernas, considero que
a multidão solitária – na minha expressão, a solidão gregária – é uma das
especificidades da modernidade decadente. Paradoxalmente, o desenvolvimento
tecnológico não nos direciona ao antissocial. Tende, ao contrário, a consolidar
essa mise en relation – no seu sentido forte e etimológico, o comércio das
ideias, dos bens, dos afetos. É evidente que o termo “amigo” particularmente no
Facebook não pode ser reduzido à concepção de amizade clássica, feita de
relações intensas e recíprocas. Entretanto, a multiplicidade de amigos nos
permite saber, se necessário for, onde e com quem manter relações sociais. E
uma das pistas que será preciso estudar sobre o desenvolvimento tecnológico
próprio às mídias sociais é a emergência de novas formas de generosidade e de
solidariedade, nas quais os uns e os outros são causa e efeito de uma
“horizontalização societal”.
Divulgado nos últimos
dias, um estudo da OMS mostrou que a depressão é a principal enfermidade entre
os jovens. A vida virtual e a fragilidade das relações ‘tête-à-tête’ teriam
impacto nessa geração?
É preciso ter bastante cuidado com os diversos estudos
institucionais focados principalmente no campo da saúde, que tendem a dizer que
a depressão é a doença específica das jovens gerações. Valeria questionar se
essa depressão não é característica das gerações no poder, quer dizer, das
próprias gerações que comandam esses estudos e que talvez, num processo de
compensação como destacou o psicanalista Carl Gustav Jung, tendem a projetar ao
exterior o mal-estar que nós mesmos sofremos.
Há tempo para
contemplação do mundo atualmente?
No livro A Contemplação do Mundo, tento demonstrar que a
tendência geral da pós-modernidade, perceptível particularmente nas jovens
gerações, consiste menos em querer mudar o mundo – e mais em se acomodar ao
mundo. Adaptar-se, ajustar-se a ele. Isso pode nos conduzir a evitar a
devastação, cujos “saques” ecológicos são exemplos cotidianos. Com o sociólogo
italiano Massimo De Felice, no Centro de Pesquisa Atopos da Universidade de São
Paulo (USP), tentamos justamente desenvolver pesquisas sobre essa “ecosofia”.
Acredito que é assim que precisamos compreender o “ritmo da vida”, isto é,
pensar a existência a partir de um ponto fixo – a natureza, o território –,
todos os elementos que fazem com que o ambiente social dependa do ambiente
natural. Se a modernidade foi um pouco paranoica, levando à dominação e à
devastação do mundo, na pós-modernidade uma nova sabedoria está em gestação.
Por fim, a tecnologia
é um meio? Ou uma mensagem?
É habitual considerar que, com a prevalência de um
racionalismo exacerbado, a tecnologia moderna contribuiu para um
desencantamento do mundo. No entanto, na minha opinião, é paradoxal observar
que, atualmente, esse desenvolvimento tecnológico, especialmente nos seus usos
sociais, nos direcionam a um reencantamento do mundo. Nessa perspectiva, as
mídias sociais são ao mesmo tempo um meio e uma mensagem, que confortam a vida
em sociedade. Se a modernidade se firmou a partir de um princípio
individualista, a tecnologia pós-moderna abriga um relacionismo galopante – uma
relação, como frisei, entre nós e os outros.
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