Cinema é ereção. É uma
vontade, uma necessidade que emana das vísceras
Renato Terra
O que me nutre é o sêmen dessa urbe anônima e brutal,
repleta de pequenos burgueses que tremem de medo detrás das grades de seus
condomínios de merda, enquanto tentam desviar os olhos das vísceras expostas
desse Brasil que meu cinema denuncia e condena. Me chamo Pedro Ivo e o Recife
entrou na minha corrente sanguínea como uma catuaba selvagem, expandindo a
minha mente e aguçando a minha sensibilidade. O bom gosto me enoja. Não tenho
medo de chafurdar no pântano e me lambuzar de sangue e bílis. O cinema da minha
terra é tão autoral e criativo que inventei um novo gênero: a cineautobiografia
visceral. Antecipo o roteiro de Soluço Líquido, enquanto espero o resultado do
Funcultura.
ATO I – O CANTO GUTURAL DE UM FREVO
Cena caseira filmada, em super-8, com os mesmos movimentos
de câmera usados em Terra em Transe.
Uma mulher em trabalho de parto declama Uma Mulher Vestida
de Sol,de Ariano Suassuna, aos berros, para se acalmar. O parto normal não
caminha bem, mas o médico não sabe o motivo. O bebê não consegue sair. Decide
fazer cesariana. Ao retirar a criança, o médico fica visceralmente estupefato.
MÉDICO: Descobri o que estava acontecendo. Seu filho nasceu
de pau duro.
O pequeno cabra recebe a palmada e, em vez de chorar, entoa
um trecho de O Barbeiro de Sevilha em ritmo de manguebeat.
MÉDICO: Parabéns, dona Armelinda, é um cineasta!
Dona Armelinda vai para o quarto e permanece estática. Num
plano silencioso de quinze minutos, olha pela janela e reflete sobre as
mudanças urbanísticas sofridas pelo Recife nesses últimos vinte anos.
MONTAGEM PARALELA
Corte seco: um tatuí é pisoteado no asfalto quente.
MONTAGEM PARALELA
Num puteiro, um latifundiário usa a primeira edição de Casa
Grande & Senzala para seviciar uma puta. (Ponto de vista da lombada do
livro.)
Inserção gratuita de entrevista de Lars von Trier, em
dinamarquês sem legenda.
ATO II – A VALSA DA CARNE CRUA
Plano fechado de xoxota, imagem consagrada do cinema
pernambucano. Fui eu, Pedro Ivo, que a incluí na Carta Visceral, nossa versão
do Dogma 95, um conjunto de regras compilado pela Associação de Cineastas
Viscerais de Boa Viagem.
A dita-cuja está com um baseado preso aos lábios. A brasa
morre.
VAGINA (voz em off, sotaque pernambucano): Ô, Pedro Ivo, tu
tem fogo?
Pedro Ivo, um jovem de 11 anos, abre o zíper.
PEDRO IVO: Serve?
A vagina não responde.
Magoado com o descaso, Pedro Ivo retalha o rosto com um
canivete enferrujado, deixando uma cicatriz visceral que o acompanhará pelo
resto da vida. Durante a cena, usa o próprio sangue para escrever na parede os
nomes de John Cassavetes e Charles Mingus.
Pedro Ivo grita que o mar virará sertão até estourar cinco
cordas vocais. Veste então uma camisa vermelha estampada com o rosto de
Apichatpong Weerasethakul, ajeita o cabelo na boina cubana e, com um gesto
visceral, pega o baseado, bate a porta e sai para desafiar o mundo. Está com
uma ereção.
ATO III – EROS CICATRIZANTE
Bar Central. Cercado por críticos e donos de cineclube,
Pedro Ivo, agora com 20 anos, bebe um coquetel de Natu Nobilis com benzina.
Está com uma ereção. Quem o serve é uma garçonete sem calcinha com sotaque
levemente francês.
CINECLUBISTA: Pedro Ivo, viste Tropa de Elite 2?
PEDRO IVO: Mais um desbunde de um bacana classe média que
adora pobreza em contraluz. Coisa de caboclo que quer ser Hollywood, né, velho?
CINECLUBISTA: E O Palhaço?
CRÍTICO: Sentimentalismo burguês mascarado de filme de arte.
Filme-anestesia, filme-Valium, filme-band-aid. Onde estão as entranhas, velho?
O soco, o murro, o vômito?
Pedro Ivo vomita em cima do crítico.
CRÍTICO: Obrigado, velho.
CINECLUBISTA: O Cheiro do Ralo?
PEDRO IVO: O pior do lote. Estética radical chique, fingindo
estar sob o cabresto de Tânatos quando não passa de angústia cheirosinha. Um
Bukowski de convento carmelita. Cinema é ereção, cacete. É uma vontade, uma
necessidade. Glauber dizia que o cineasta verborrágico tem de estar no topo da
cadeia alimentar de um povo. É um processo de seleção natural que Darwin
descreveu a 24 quadros por segundo. Recife une o talento de Florença à
tecnologia do Vale do Silício.
Os amigos fazem um brinde – “Foda-se o eixo Rio–São Paulo!”.
Em seguida, pedem uma porção de coração de galinha. As aves são trazidas vivas
e têm seus corações arrancados à mão diante de fregueses pequeno-burgueses.
Olhos pulando do rosto aterrorizado das galinhas para a
bunda carnuda da garçonete, Pedro Ivo tem uma epifania e decide fazer seu
primeiro filme.
ATO IV – A NOITE DA VAGINA LOUCA
Com a verba arrecadada com a rifa de suas vísceras, Pedro
Ivo compra um DKV Vemag e viaja pelo interior do estado com uma câmera na mão e
centenas de ideias na cabeça. Sem gasolina, abastece o carro misturando esterco
com sua testosterona. No trajeto, descobre as entranhas do Brasil profundo. Há
muita prostituição pelo caminho. Num ambiente eivado de miséria e prazer
carnal, Pedro Ivo abandona todo resquício de moral burguesa e se envolve
sexualmente com um liquidificador Arno, ao qual chama de “minha cabrita”. Na
bem-aventurança que se segue ao coito, Pedro Ivo ouve uma batida de maracatu e,
num milagre, é recompensado com a devolução de suas vísceras.
Ao retornar ao Recife, Pedro Ivo se depara com uma cena
dantesca: uma placa na porta do cinema da Fundação Joaquim Nabuco anuncia que o
local será demolido para dar lugar a um edifício projetado por Hans Donner com
fachada de Romero Britto.
Irandhir Santos, Hermila Guedes, Dira Paes, Matheus
Nachtergaele, João Miguel, Leona Cavalli e Chico Diaz se chicoteiam em torno do
edifício. Pedro Ivo lidera um levante para ocupar a Fundação, no qual todos os
invasores usam máscaras de Falconetti em A Paixão de Joana D’Arc, de Dreyer.
Preso e torturado pela polícia de Eduardo Campos, Pedro Ivo
termina seus dias crucificado no alto de uma árida colina em Garanhuns. A seus
pés, brota um pé de maconha.
Corte para preto e legenda: FINAL, PORRA.
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