Ele sempre começa com
“Eu gostaria de fazer uma colocação”
Vanessa Barbara
Em dezembro passado, o escritor gaúcho André Czarnobai, o
Cardoso, publicou um diário na piauí intitulado “Pasfundo calipígia”. Salvo
engano, foi a primeira vez em que se utilizou em letra impressa o termo “louco
de palestra”. Imediatamente, a expressão ganhou densidade acadêmica e
popularizou-se nos redutos universitários nacionais, encorajando loucos
latentes e chamando a atenção da saúde pública para o problema.
O louco de palestra é o sujeito que, durante uma
conferência, levanta a mão para perguntar algo absolutamente aleatório. Ou para
fazer uma observação longa e sem sentido sobre qualquer coisa que lhe venha à
mente. É a alegria dos assistentes enfastiados e o pesadelo dos oradores, que
passam o evento inteiro aguardando sua inevitável manifestação, como se
dispostos a enfrentar a própria Morte.
Há inúmeras categorias de loucos de palestra, que olhos e
ouvidos atentos podem identificar em qualquer manifestação de cunho
argumentativo-reflexivo, com a palavra franqueada ao público.
Há o louco clássico: aquele que levanta, faz uma longa
explanação sobre qualquer tema, que raramente tangencia o assunto em debate, e
termina sem perguntar nada de específico. Seu único objetivo é impressionar
intelectualmente a plebe, inclusive o palestrante oficial. Ele sempre pede
licença para “fazer uma colocação”.
Há o louco militante, que invariavelmente aproveita para
culpar a exploração da classe dominante, mesmo que o tópico do debate seja
arraiolo & bordado.
Há o louco desorientado, que não entendeu nada da palestra –
e não vem entendendo desde a 2a série, quando a professora lhe comunicou que o
Sol é maior que a Terra – e, depois de circunlóquios labirínticos, faz uma
pergunta óbvia.
Há o que faz questão de encaixar no discurso a palavra
“sub-repticiamente”: é o louco vernaculista.
Uma criteriosa tipificação do objeto de estudo não pode
deixar de registrar o louco do complô, que, segundo integrantes do próprio
complô, é “aquele que acredita que toda a imprensa se reúne de madrugada com o
governo ou a oposição para pegar a mala de dinheiro”.
Ou o louco adulador, que gasta os trinta segundos que lhe
foram franqueados para dizer em dez minutos como o palestrante é divino. O
louco deleuziano, que não sabe o que fala, mas emprega muito a palavra
“rizoma”. E o louco pobre coitado, que pede desculpas por não saber se expressar,
o que não o impede de não se expressar durante minutos intermináveis.
Depois de falar “Gostaria de fazer uma colocação”, todos
podem usar a expressão “na chave de...”. Como nessa típica colocação: “O
jornalismo entendido na chave da sociologia é sem dúvida uma ocupação
rizomática, em termos de vir-a-ser.” São poucos os que dizem que algo acontece
por causa de outra coisa. É sempre “por conta” da qualquer coisa em questão.
No entender de Cardoso, é raro não haver um louco à espreita
quando ele está palestrando (ou painelando, ou debatendo, ou mesmo plateiando).
O mais recente de que ele tem lembrança manifestou-se num encontro de
blogueiros com editores, em São Paulo. Na ocasião, um camarada que até então
ouvia tudo com atenção – mas em silêncio – pediu a palavra. “Em primeiro lugar,
queria dizer que não sou blogueiro, não leio blogs, não entendo nada dessas
coisas, mas também tenho direito a uma opinião”, afirmou, à guisa de
apresentação.
E prosseguiu, o celerado: “Sou médico comunitário, organizo
saraus na periferia e quero dizer que discordo de tudo que todo mundo falou
aqui. Está todo mundo puxando o saco da Companhia das Letras.”
E disse mais: “O blog da editora está muito feio. Não tem
cara de blog. Tem mais cara de site, e além disso acho que ninguém quer ler
sobre os bastidores de como são feitos os livros.”
Em poucos minutos, ele invalidou audaciosamente tudo o que
havia sido postulado até então. É o louco de palestra majestático, que ouve a
conferência com ar de superioridade e acha tudo uma grande e gorda estultice.
Um bom louco de palestra é sempre o último a falar, pois
passa o tempo todo digerindo o que foi dito. Só então ele pode dar alguma
declaração desvinculada do tema, equivocada, mal-intencionada ou apenas
incompreensível. Para o jornalista Matinas Suzuki, o tipo contempla com
desprezo o que se discute, aguarda pacientemente a sua vez e, então, discorda
com virulência. “Me corrijam se eu estiver errado”, ele diz a certa altura, só
para parecer democrático. “Concordo com tudo o que vocês disseram, mas ao
contrário”, prossegue. Ou ainda: “A minha colocação engloba a do companheiro e
vai além”, num típico comentário condescendente de loucos de assembleia.
Há que se distinguir o maluco de palestra do desvairado de
assembleia estudantil ou sindical. Nesta última, não há palestrante; todos têm
o direito de incluir o nome na lista de oradores e falar, sem a necessidade de
se ater forçosamente a um tema.
Segundo uma enquete com personagens da época, um dos mais
célebres representantes dessa categoria, na década de 70, era o Gilson, um
estudante do curso noturno de economia na Universidade de São Paulo. Era um
gordinho trotskista que tinha a voz fina e usava um bigode ralo. O outro era o
Reinaldinho, da ciências sociais, que, qualquer que fosse o assunto, dava
sempre um jeito de encaixar a frase: “O concreto é a síntese de múltiplas
determinações.” É verdade. Até Marx sabia disso. Mas repetir o conceito em
todas as assembleias da USP dos anos 70 nem Engels aguentaria.
Embora essas duas categorias de louco (palestra vs.
assembleia) se diferenciem por motivos óbvios, existe a possibilidade de
infiltração de loucos de palestra numa típica assembleia estudantil/sindical. O
infiltrado, em regra, é aquele que toma o microfone à revelia de todos e
anuncia: “Questão de ordem!”, ainda que a alegação não proceda. Daí em diante,
a performance é livre.
São assim os loucos de palestra: audazes, imprevisíveis,
implacáveis, destituídos de noção ou sentido. Cardoso também se lembra de um
debate em Curitiba, quando “um senhor moreno, grisalho, com uma sacola
ecológica atravessada no peito e toda a pinta de quem pratica ioga, anunciou
que ‘a internet é como uma vaca mágica, de onde cada um extrai o leite que
deseja’”.
Infelizmente, é só isso que ele se lembra daquela longa e
bizarra colocação.
Há quem se depare com um louco contemplativo, que é dos mais
difíceis de lidar. Sobretudo na primeira mediação de sua vida. Foi o que
ocorreu com o escritor e editor Emilio Fraia, que, nervoso e pautado por dezenas
de papéis amarelos, conduziu um debate entre o cineasta Hector Babenco e o
escritor William Kennedy, no dia 11 de agosto, em São Paulo.
“Primeiro, a moça levantou a mão e disse: ‘Eu tenho uma
pergunta’”, contou Emilio Fraia com a pungência de quem luta contra um quadro
de estresse pós-traumático. “Então, ela disse não saber por que estava ali. Viu
que haveria uma palestra e entrou.” A moça era de Minas, estava há quatro dias
num quarto de hotel, sozinha. “Mas gostei muito do que o senhor Kennedy falou,
de ter sido recusado por treze editoras antes de publicar. Sou artista
plástica.”
Nesse instante, começaram os apupos da plateia: “Pergunta!”
Intrépida, ela não fez caso: “Tenho um trabalho baseado em cores e...” Apupos,
apupos.
Ao término do arrazoado, Fraia não conseguiu esboçar reação.
Ficou vermelho. Paralisado. “Até que a palestra encerrou-se por si só. Foi o
fim, nada mais poderia acontecer após aquela intervenção”, relata.
Outra recente ocorrência de louco contemplativo deu-se numa
palestra da escritora Fred Vargas, no Rio de Janeiro, acerca do caso Cesare
Battisti. Um sujeito pediu a palavra e falou vinte minutos sobre a sua
militância no Nordeste, nos anos 50, sem pronunciar nem uma vez o nome do
Battisti.
Com esse tipo de maluco em vista, o cartunista Laerte
Coutinho confessou imaginar o que restaria daquela experiência para o sujeito,
o louco propriamente dito. “Acho que tudo se reduz à sua própria intervenção”,
filosofou Laerte. E emendou uma teoria: dos debates, o louco de palestra deve
se lembrar tão somente da sua performance. “Lembra aquela vez, em Curitiba,
quando eu levantei a mão e comparei a internet a uma vaca mágica?”, diria o
sujeito, satisfeitíssimo, numa reunião de um hipotético Grupo Unificado de
Apoio aos Loucos de Palestra, o gulp.
O que poucos sabem é que a origem do louco de palestra
remonta à história do pensamento. “Acho que ele surgiu pela primeira vez na
Ágora grega: a democracia está cheia de loucos de palestra”, postula o editor
Milton Ohata.
Na peça As Nuvens (423 a.C.), o dramaturgo Aristófanes, por
exemplo, faz chacota dos sofistas – os loucos de palestra mais insignes da
Grécia Clássica. Naquele tempo, já existiam “profetas, quiropráticos, mocinhos
cabeludos, poetas ditirâmbicos, astrólogos, charlatões, impostores e muitos
outros mais”, diz o texto. Gente que se rendia ao arrebatamento do discurso e à
volúpia da articulação, um bando de consumados tratantes, palavrosos e
descarados. Tais como Cairefonte, discípulo de Sócrates, que levantou certa vez
a mão e perguntou ao mestre qual das duas era a teoria certa: “O mosquito, ao
zumbir, se utiliza da boca ou justamente do contrário?”
Na antiga Palestina, talvez durante o Sermão da Montanha,
devia haver loucos de palestra prontos para agir. Uma das perguntas lançadas ao
Filho de Deus, e omitida dos registros canônicos, teria sido: “E aí, o que está
achando de Cafarnaum?”
Especulações à parte, uma coisa é certa: foi um louco de
palestra fariseu que abordou o Messias com uma pergunta mal-intencionada, e que
recebeu como resposta: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”
Uma reação divina ao interlocutor maledicente.
O que nos leva ao difícil papel do mediador. É sabido que,
diante de um louco de palestra, ele tem poucas opções. Uma é dirigir-se a uma
rota de fuga predeterminada, levando os braços ao ar e abandonando o público à
própria sorte. A segunda é a solução escolhida por Emilio Fraia: a completa e
resignada paralisação, seguida de conclusão precoce do seminário e aceitação da
ruína. Numa variante pouco mais elegante, o mediador pode emitir um
constrangido “Fica aí a pergunta”, e encerrar a palestra com certo ar de
mistério.
A terceira saída é se fingir de louco e ignorar a
intervenção por completo. A tática é defendida por oradores calejados como o
jornalista Humberto Werneck. Durante um papo sobre seu livro O Santo Sujo, em
Belo Horizonte, um rapaz pediu a palavra e não fez pergunta alguma – divagou
sobre coisas que ninguém entendeu. “Acho que era doidinho, e não fiz mal em
esperar que esvaziasse a piscina verbal. Levou vários minutos. O cara terminou
sem ponto de interrogação. Agradeci a participação e fui ao perguntador
seguinte”, conta, sem constrangimento.
A quarta e última reação possível é a mais artística e
profissional de todas. No domínio dessa técnica estão mediadores experientes
como o crítico de arte Alberto Tassinari. Ele diz ter muita paciência quando um
louco desses se pronuncia, “pois sempre bate em algum lugar respondível e o
diálogo fica tremulando entre sua racionalidade intrínseca e sua irracionalidade
que vem de fora, fora de hora e quase inutilizando tudo”.
O professor Samuel Titan Jr., da USP, é do mesmo time. “Meu
louco favorito começa pedindo para fazer uma colocação e embarca imediatamente
na autopromoção, que pode ser pseudoacadêmica, pseudoliterária ou de fundo
ressentido (nas variantes de raça, sexo, classe, opção sexual ou todas as
anteriores)”, revela, com a sabedoria advinda da experiência.
Nesses casos, ele recomenda que a única saída para se livrar
da situação é “responder alguma coisa que não tenha nada a ver com o que ele
disse e que tenha alguma coisa a ver com o que você tinha tentado dizer, tudo
isso olhando no olho da criatura e usando cá e lá umas palavras difíceis, que é
pra ver se o bicho se intimida – em geral, nem um pouco”.
É preciso encarar essas coisas filosoficamente, pondera
Titan, que há poucos meses teve que enfrentar um belo exemplar da espécie.
O episódio ocorreu em 25 de março, na Casa do Saber, em São
Paulo, num debate sobre ensaísmo. Estavam presentes o arquiteto Guilherme
Wisnik, o artista plástico Nuno Ramos, Matinas Suzuki Jr. e, como mediador,
Samuel Titan Jr.
A gravação em vídeo do colóquio é uma verdadeira obra-prima
tragicômica. Por um feliz acaso, a câmera permanece focada nos quatro
palestrantes durante a longa peroração de uma moça da plateia, que deve ter
tomado fôlego antes de se levantar. Cada um dos intelectuais supracitados reage
à sua maneira, coçando a cabeça, esfregando o nariz, olhando pra cima e
tentando desesperadamente manter a compostura diante de ocorrência tão
alarmante.
A intervenção se dá em dois tempos. No primeiro, que dura
quase cinco minutos corridos, a moça expõe a sua verve: “A minha pergunta é
sobre lugares e fronteiras”, inicia, num tom didático que pressupunha prévia reflexão
sobre o tópico. “Eu vejo o ensaio como um espírito livre do pensamento expresso
na forma escrita. Então acho que ele merecia um lugar de destaque, mas pelo que
eu vejo da discussão, do debate entre vocês, há uma questão do lugar e das
fronteiras, quando se fala num lugar chamado ‘entre nós’, ou quando se fala no
Brasil, no mundo e, indo mais além ainda dessas fronteiras, na própria
realidade.”
Dominado por um compreensível reflexo instintivo, Nuno Ramos
passa a beber água compulsivamente. Samuel Titan alterna vigorosas coçadas de
cabeça a uma distraída extração da pele ao redor das unhas. No coração de
todos, a esperança de que a pergunta não tardará. A moça prossegue: “Eu vejo o
ensaio como esse espírito livre do pensamento escrito porque ele vai além do
pensamento escrito, chegando na realidade, com toda essa liberdade de conexões
intertemas, e não só temas intelectuais ou conceituais ou acadêmicos, mas os
próprios acontecimentos da realidade.”
Curiosamente, os quatro palestrantes decidem apoiar-se no
cotovelo esquerdo, recostam-se nas cadeiras e cruzam os braços, como que
tentando se defender da avalanche de conceitos que lhes são atirados
impiedosamente.
E a moça vai em frente: “Então vejo uma maneira de resolver
esses dilemas, essas questões que foram apresentadas, e me atendo ao que foi
debatido entre vocês, que os ensaístas deveriam eles mesmos se colocar como
espíritos livres.”
Sublinhe-se que ela faz referência à discussão e promete se
ater ao que foi debatido, como se procurasse despistar a audiência. Dito isso,
segue em frente: “Criar como que uma onda, o ensaio como uma pedra que cai na
água e gera ondas não só daquilo a que ele se propõe, mas indo além. Indo além
da própria subjetividade de quem escreve, ou do próprio arsenal de conhecimento
acadêmico restrito, então o próprio ensaio brasileiro precisa adotar a postura
de quebrar essa fronteira e se colocar como um ponto de convergência de forças
que estão presentes no mundo hoje, tanto politicamente, como literariamente,
cientificamente, artisticamente.”
Depois daquela peroração sem perguntas, Samuel Titan
interrompe a moça e faz o que pode para encaminhar o debate. Os palestrantes
comentam uma suposta “zona de conforto” no ensaísmo brasileiro, termo que a
moça citou a esmo, dentro de um contexto só dela. O debate parece que vai
engrenar. Que nada: num momento de deslize do mediador, a moça da plateia leva
a melhor e consegue retomar o raciocínio: “Tenho visto coisas riquíssimas”, ela
interrompe, e torna a abusar de advérbios: politicamente, literariamente,
cientificamente.
É o segundo momento de sua dissertação, quando, em resumo,
ela conclui que é preciso cultivar um ensaio “que também se dilui, também luta
sub-repticiamente. Tem que haver uma coragem de sair da zona de conforto,
quebrar essas fronteiras pra conseguir criar novas fronteiras, realmente fazer
diferença na realidade”. Assim é encerrada a sua fala e, com ela, o debate.
De tanto ver Nuno Ramos bebendo água temeu-se que ele
pudesse ter uma congestão.
A lenda é difusa, mas deve ter ocorrido nos anos 60, durante
uma aula do professor Bento Prado Jr., na rua Maria Antônia. Terminada a
explanação, em que o docente citou o filósofo Plotino várias vezes, um aluno
respeitosamente levantou a mão e disparou: “Com licença, professor. Esse
Plotino aí não seria o Platão, não?” Ao que o mestre respondeu: “Não, cretão.”
Como prova de que os tempos mudam, mas os loucos continuam,
o escritor Antonio Prata relembra um doido recente da USP. Sua alcunha: Santo
Agostinho. “Era um cabeludo, barbudo, meio sujão, sempre chegava com uns
jornais que a gente não sabia se estava lendo ou se tinha dormido com eles”,
descreve. O sujeito tinha lido uma única coisa na vida: Santo Agostinho. “E não
importava qual fosse a aula, não importava quanto tempo ele tivesse que
esperar, em alguma hora ele achava a ligação. Não fazia uma pergunta, ele
vomitava: “Professor, professor, isso aí que você está falando de – Descartes –
Platão – Adorno – neo-liberalismo – assentamento – greve – filtro solar – não
tem a ver com aquele conceito do Santo Agostinho?”
É o louco monotemático, de tendência obsessivo-compulsiva.
Vale observar que nem as grandes personalidades estão imunes
ao ataque verbal de um desatinado espectador. Conta-se que, durante uma reunião
da esquerda latino-americana em Paris, na época das ditaduras militares, um
louco de palestra investiu contra o escritor Mario Vargas Llosa. Da plateia, um
barbudão levantou e vociferou: Mientras Obregón se moria en la selva por el pueblo
peruano, tu, que hacias?
O público silenciou. Sem se abalar, Vargas Llosa respondeu
que dava aulas de literatura espanhola numa universidade. E devolveu a
pergunta: Y tu, que hacias?
Yo tenía la hepatitis, disse o barbudão.
Uma categoria popular é a do louco lírico. “É o cara que, a
todo custo, quer ler um poema, um conto, o primeiro capítulo de um romance. Já
aconteceu de pegarem o microfone da minha mão e saírem soltando o verbo”, disse
o escritor Marcelino Freire. Para ele, os poetas são os piores: estão sempre
pedindo a voz.
O cartunista Laerte aprecia em particular o louco
superespecialista, que conhece o seu próprio trabalho melhor que você, e aponta
incoerências e contradições no que acabou de ser dito. Esse tipo pode trazer
proventos vantajosos e é até possível forjar um deles para atuar em sua própria
palestra – o sujeito levanta a mão e diz que certamente naquele trecho você fez
uma referência velada à noção de witzelsucht tal qual é discutida em Heidegger.
Gênio, grande pensador, você emite um “arrã” de modéstia e segue para a próxima
pergunta.
Para o crítico Rodrigo Naves, que ministra um curso livre de
história da arte em São Paulo, os doidos mais comuns são os carentes, que se
põem a falar de seus problemas afetivos, existenciais, mercadológicos. “Tem um
oriental que já vi se pronunciar em três ocasiões diferentes”, conta, ele mesmo
um ocasional louco de palestra, do tipo agressivo, se bem que em recuperação.
Houve uma vez em que Naves se ergueu da cadeira e, indignado com a opinião do
palestrante, disse: “Não, não, não, não. Não, não, não”, como só um bom
profissional do ramo conseguiria exprimir.
Há um subgênero de louco latente que, no entender do
jornalista Elio Gaspari, é aquele que vai para as conferências, ouve tudo com
atenção, mas o negócio dele é a comida oferecida ao final do evento. “Conheci
um elegantíssimo, nos Estados Unidos, que ia de terno jaquetão. A piada era que
um dia ele faria uma pergunta recitando todas as palestras que ouvira”, conta.
O mais recente registro formal de um louco de palestra
ocorreu no último dia 10 de agosto, após um bate-papo com os cartunistas
Gilbert Shelton e Robert Crumb, em São Paulo.
A intervenção abilolada saiu nas páginas do Estado de S.
Paulo, registrada por Jotabê Medeiros: “Um maluco gritou lá de cima do mezanino
perguntando qual seria a personalidade morta que Crumb elegeria para tomar uma
cerveja consigo.” Crumb retrucou: “Não tomo cerveja com gente morta. Na
verdade, nem tomo cerveja.” Em outro momento da noite, o cartunista pediu que
um fã dominasse seus ânimos. “‘Shutupfuckoff!’, rosnou, e o menino riu.”
Bem-aventurado é o louco anônimo, o louco voluntário, o que
se levanta indômito no meio da palestra e parte rumo à consagração.
Amaldiçoadas sejam as perguntas por escrito, as regras contra a manifestação do
público, o apupo impaciente, a placa de aplausos obrigatórios, as pessoas que
jogam tomates em quem está atrapalhando o andamento da coisa.
Amaldiçoado seja o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que no
livro Minhas Palavras agradece aos alunos por suas reações “mudas, mas
perceptíveis” que lhe permitiram desenvolver o pensamento sem grandes
atropelos.
Viva aquele que comparece a palestras apenas para matar o
tempo, e que ainda assim não perde a chance de se expressar, pois que é
interessado em dividir suas opiniões com os outros seres. Viva a falta de
noção, de vergonha e de respeito às autoridades presentes.
Todos têm um louco de palestra dentro de si, esperando para
aflorar. Somos apenas reprimidos pelos grilhões da compostura, da sanidade
mental e da idade adulta, o que nos impossibilita de protagonizar, em
conferências, grandes momentos da história da argumentação humana – como
quando, na Flipinha de 2005, um ouvinte de 5 anos de idade levantou a mão e
perguntou ao escritor Luis Fernando Veríssimo: “Você gosta de suco de uva?”
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