Sai no Brasil álbum
que reúne as produções que contam casos da vida do celebrado artista
Jotabê Medeiros – O Estado de S. Paulo
Quase toda a obra de Will Eisner (1917-2005) era
autobiográfica, mesmo quando não era. Porque sua narrativa gráfica se valia de
um acervo prodigioso da memória, de sua infância pobre no Bronx à depressão
econômica, depois às atribulações da Segunda Guerra Mundial e, finalmente, à
dificuldade de se afirmar como um artista de “subcultura”, um meio popular
cercado pelo preconceito.
Ou seja: mesmo quando ele parecia não perceber, falava de si
mesmo – mas numa perspectiva de humanismo universal, o que o tornou um dos
maiores autores de sua época. Assim, o volume póstumo Life, in Pictures (Vida,
em Quadrinhos), um calhamaço de gráfico de quase 500 páginas que a Criativo
Editora está lançando neste momento no Brasil, não careceria do selo que leva
logo na capa, Histórias Autobiográficas.
Todo o resto, no entanto, é perfeitamente justificável e
lógico: a escolha cronológica (póstuma) das histórias que formam uma linha
vital da experiência de Eisner no planeta foi feita pelo cartunista e editor
Denis Kitchen – e ninguém seria mais habilitado no mundo. Kitchen foi o
fundador da Kitchen Sink Press (1969-1999), editora que publicou mestres como
Al Capp, Harvey Kurtzman, Crumb e Eisner.
“Aqui, com memória seletiva, fato e ficção se misturam,
resultando em uma realidade especial. Acabei confiando na veracidade da memória
intuitiva”, escreveu Eisner na introdução de Ao Coração da Tempestade.
O livrão compila histórias que tratam do aprendizado, das
desventuras e da vida de Eisner em volumes já publicados, como o citado Ao
Coração da Tempestade, O Sonhador, O Nome do Jogo, Nova York – A Grande Cidade,
entre outros. Também apresenta, ao final, um espetacular sketchbook e uma
história em quatro páginas, O Dia em Que me Tornei Um Profissional, inédita
aqui no Brasil, que é uma espécie de haicai gráfico da saga de Eisner.
Nessa história, O Dia em Que Me Tornei Um Profissional,
Eisner se arruma todo para tentar mostrar seus originais para um prestigioso
executivo, o diretor de arte da Young American Magazine. Senta-se na sala de
espera ao lado de um homem de roupas mais simples, mais velho. Ele está impecável
em seu novo terno. A secretária o manda entrar.
“A história é horrível”, diz o diretor de arte. “Não
publicamos lixo.” Quando o artista sai da sala, totalmente arrasado, recolhendo
o casaco e seus próprios cacos, o homem que esperava para entrar depois dele
lhe diz: “Há uma passagem no Talmude que diz: ‘Se não pode vender sua
mercadoria nesta cidade, vá a outra’”. O homem era Ludwig Bemelmans (1898-
1962), famoso autor e ilustrador de livros infantis.
Os dois textos que abrem o livro, um de Scott McCloud e o
outro de Denis Kitchen, valem o volume. “Eisner, assim como os gigantes do
cinema, do romance e do teatro, se recusava a acreditar no mito do destino
manifesto; aquela suposição confortante, porém ilusória, de que as convenções
da narrativa popular de nossos dias são apenas fruto inevitável da época, lugar
e ferramentas do mercado. Ele sabia que as vidas das formas de arte não são
traçadas pelo destino, mas sim pelos caminhos arbitrários de indivíduos
criativos”, escreveu o ensaísta e crítico Scott McCloud, autor de Reinventing
Comics e Understanding Comics, entre muitos outros.
Denis Kitchen, que faz anotações sobre personagens que
aparecem nas histórias e são na verdade pessoas reais (como o criador do
Batman, Bob Kane), faz uma revelação importante no seu texto introdutório.
“Esta compilação, o último dos três livros de capa dura da
Biblioteca Will Eisner, foca na porção autobiográfica de seus romances
gráficos, apesar de não representar a íntegra desse tipo de trabalho. Alguns
elementos da trilogia Um Contrato com Deus são autobiográficos também. Eisner
se inspirou em experiências pessoais em muitas de suas histórias, mas evitou
autobiografia pura por muito tempo. Cartunistas amadores – meio desenhistas e
meio escritores – não apreciam as duradouras tradições como seus primos da
literatura. E até Eisner, inovador vitalício e pioneiro do gênero de romances gráficos
na última fase de sua longa carreira, seria influenciado, como ele mesmo
reconhecia, por uma geração mais jovem de cartunistas underground.” Entre eles,
Justin Green e o papa da contracultura, Robert Crumb.
O biógrafo de Eisner, o escritor americano Michael
Schumacher, disse ao Estado no ano passado que Eisner, ao morrer, estava se
aventurando numa novíssima e interessante direção ao fazer a graphic novel Os
Protocolos dos Sábios do Sião. “Até então, fizera histórias de ficção, embora
baseadas em memórias, coisas biográficas. E agora estava investigando uma nova
área, a não ficção. Não sei o que ele escolheria fazer hoje, e fico fascinado
em imaginar.”
Há alguns anos, Eisner, ao ser convidado para ilustrar uma
graphic novel sobre a vida do guitarrista Jimi Hendrix, abriu mão do convite
com a seguinte justificativa: “Eu estou muito mais para Glenn Miller do que
para Jimi Hendrix”. Com essa compilação de suas histórias autobiográficas, fica
claro que Eisner está muito mais para Marcel Proust do que para Robert Crumb.
VIDA, EM QUADRINHOS
Autor: Will Eisner
Tradução: Rene Ferri
Editora: Criativo (500 págs., R$ 99)
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