Depois dos turistas,
dos maricas e dos camelôs, a tribo mais em evidência de Copacabana é chegada
num ray-ban
Marcos Caetano
É provável que você não esteja familiarizado com o termo,
mas certamente já deve ter visto alguns de nós, ali pela praia de Copacabana,
jogando vôlei, caminhando ou batendo papo no calçadão. Pense bem, remexa nas
prateleiras da memória: quantas vezes você se indignou com a quantidade de
vagabundos, dos ociosos que se refestelam nas areias das praias cariocas,
enquanto dirige seu carro (ou se inebria, em ônibus cheios, com os odores das
axilas alheias) em direção ao trabalho, no centro da cidade? Depois dos
turistas, dos maricas do Posto 6 e dos camelôs, nós, os sungas-pretas, somos
uma das tribos mais em evidência da fauna praiana.
Estamos sempre por lá, sem camisa, com nossas barrigas
acintosas queimadas de sol, meias brancas, tênis brancos – e a fatal sunga
preta. Por que preta e não azul-marinho, ou marrom, ninguém sabe. É claro que
calções de banho estampados e com cores vulgares sequer seriam cogitados por
militares da reserva, funcionários públicos aposentados e pequenos empresários,
grupos que compõem o grosso das fileiras sunga-pretenses. Brancos, muito menos:
sunga branca é coisa dos boiolas da Farme de Amoaids.
Muitos de nós, ainda que não seja o caso deste humilde
capitão-de-corveta reformado, foram homens célebres. O maior de todos, claro,
foi o inesquecível general Figueiredo. João Baptista de Oliveira Figueiredo,
presidente da República e sunga-preta dos mais ortodoxos. O velho general de
cavalaria sempre gostou de ser fotografado com os trajes da nossa seita, em
suas caminhadas pela Granja do Torto ou aqui mesmo, no calçadão. Todo domingo,
lá estava ele: sem camisa, pança proeminente, meias soquete, tênis brancos e
sunga preta. Ah, e óculos ray-ban escuros. Pena não ter ido adiante o movimento
para erigir uma estátua de Figueiredo – de sunga preta – no calçadão.
Ainda que o general Figueiredo também gostasse bastante de
equitação, a atividade física de um típico sunga-preta não vai além das
caminhadas (não cúper, que correr é coisa de frescos) e do voleibol. Voleibol
nem é o termo, posto que inventaram um termo desrespeitoso para descrever o
nosso esporte favorito. “Vovôlei” – dizem eles, insistindo que o nosso vôlei,
jogado em câmera lenta, e com regras algo lenientes no tocante à condução de
bola, pertence a uma outra categoria esportiva.
Sempre fui contra convidarmos aqueles garotos para jogar,
mesmo nos dias de pagamento de benefícios do INSS, quando nosso grupo fica
sobejamente desfalcado. Mas não tem jeito. Numa manhã de quarta-feira, você só
encontra na praia, além de nós, jovens desocupados e travestis. Uma rede de
sungas-pretas em frente à Galeria Alaska aceita a participação de pederastas
nos jogos de vovôlei. Mas estes, ainda que tenham boa impulsão e sejam sempre
dispostos, gritam em demasia e, o que é pior, com aquelas vozinhas esganiçadas
que dão vontade de arrebentar-lhes as fuças. Na minha rede, continuamos fiéis
aos princípios mais arraigados dos sungas-pretas. Alguém consegue imaginar o
general Figueiredo jogando com bichas-loucas? Acho que nem mesmo a prática do
abominável frescobol – que a cada dia vem sendo mais e mais praticado por
homens que eu julgava machos – seria tão questionável quanto essa mescla
indecente de gerações e opções sexuais.
Vez por outra, um abelhudo vem questionar por que diabos,
nós, maduríssimos senhores de pandulho eloqüente, usamos sungas – e não largos
calções, mais recatados e condizentes com a nossa idade e forma física.
Apresso-me em esclarecer que não é qualquer velhote que pode usar uma sunga
preta. Um autêntico sunga-preta tem a barriga protuberante, sim, porém dura.
Duríssima! Velhos de abdômen flácido não praticam exercícios e, portanto, não
devem ser considerados sungas-pretas, ainda que as trajem. Além disso, as
sungas (que os jubilados paulistas chamam de “maiô”, imaginem só!) ressaltam
nossa genitália, que, ao lado do nariz e das orelhas, são as únicas partes do
corpo humano que continuam a crescer depois da maturidade. Babás, prostitutas e
empregadas domésticas, as três principais espécimes femininas que freqüentam as
praias durante a semana, parecem gostar da nossa fatiota.
Por falar em fatiota, alguns sungas-pretas vêm tentando,
debalde, impor o uso de bonés como parte do nosso way of life. Questão
complexa, que causou celeuma na nossa grei. Um boné branco, ainda que
combinasse com tênis e meias, ficaria ridículo. Isso sem falar no risco de
passarmos a ser chamados de bonés-brancos, em lugar de sungas-pretas, o que
seria embaraçoso. Já um boné preto esquentaria demais as nossas cabeças,
esvaziando um de nossos bordões mais repetidos: “Já esquentei muito a cabeça
nessa vida, rapaz”.
Pior do que isso, só mesmo um falso sunga-preta, conhecido
ali no Posto 4. Um desonesto, que além do próprio – e acanhado – equipamento,
acomoda na sunga um tubo de Calminex, com o fito de aumentar-lhe os dotes.
Calminex é um bom remédio de cavalo, usado no tratamento de nossas dores e
contusões, que são muitas. Mas daí a usar a embalagem do ungüento como recheio
de sunga vai uma enorme distância – a distância que separa os velhos dos
velhacos, os militares dos paisanos, os machos dos nem-tanto.
Gilvânia era uma mulatona bonita, de uns 40 e tantos anos.
Todos os dias, ela desfilava em frente à nossa rede, a caminho do armarinho,
onde comprava aviamentos para a patroa. Passei a vida ressaltando os horrores
da miscigenação, algo que, sabidamente, é responsável por quase todas as
mazelas pátrias, inclusive o apagão aéreo (não é um acaso que o atual
comandante da Aeronáutica seja um nissei).
Era-me inconcebível ter relações com alguém de outra raça,
mesmo que apenas à guisa de desafogo hormonal. Mas toda vez que aquela
estupenda égua castanha cruzava o sinal da avenida Atlântica, eu pensava em
deixar de lado todos os pruridos e convicções para viver a mais inconseqüente
das aventuras. “Pensa em guerra, capitão, pensa em guerra!” – gritava-me um
amigo, para ver se eu esfriava o ímpeto e sossegava o periquito. Há alguns
anos, um sunga-preta sequer levaria em conta uma possibilidade de abater a
fogosa potranca sobre lençóis Santista. Era possível querer, mas, como poder
não podíamos, voltávamos mansamente ao nosso pacato voleizinho. O advento do
Viagra, no entanto, reconciliou o querer com o poder, e aí.
Eu bem que lutei. Toda vez que aqueles troncos de pernas
passavam por mim, pisando firme como as bailarinas profissionais de flamenco,
eu pensava em guerra. Como gosto bastante de guerra, na verdade, passei a
pensar naquelas fotos sórdidas do Ministério da Saúde nos pacotes de cigarros.
Tudo em vão. Certa manhã de sexta, a brisa que vinha do Arpoador ergueu
levemente a saia estampadinha que a Gilvânia usava, deixou entrever suas
portentosas ancas – e eu capitulei. Apesar de ser a minha vez de sacar, dei
vaga no time para um pivete das redondezas e corri para entabular conversações
com a mulataça. Estava disposto a abrir mão de tudo para ficar ao lado dela até
o fim da minha vida ou até a quebra do INSS, o que chegasse primeiro.
Estava disposto a tudo. Ou a quase tudo. Após horas de
conversa agradável e reveladora, quando tive certeza de que Gilvânia era a
balzaca da minha vida – ou do meu final de vida –, arrisquei um convite: “Quando
é que podemos ir à praia juntos?”. Ela disse que era só marcar, mas tinha que
ser num sábado ou num domingo, pois durante a semana a patroa não dava a menor
folga. Pensei um pouco, paguei a água de coco que estávamos bebendo, beijei as
mãos da moça, disse adeus e voltei para a minha rede de vôlei. Nunca mais
voltaríamos a nos falar. O amor, mesmo no outono da vida, é sumamente
importante. Mas as verdades imutáveis precisam ser respeitadas, entre elas esta
aqui: um sunga-preta jamais vai à praia nos finais de semana.
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