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quinta-feira, maio 22, 2014

Os melhores filmes nacionais ruins de todos os tempos: “Sem Essa, Aranha” (Sganzerla, 1970)


Bruno Cava

Zé Bonitinho, Helena Ignez, Maria Gladys e Aparecida descem a ladeira do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro. Alucinados, desnorteados, correm de um lado pro outro, gesticulam, berram. Cercados por uma multidão entre a perplexidade e o riso, mexem com os favelados, tocam neles, rompem a “quarta parede” cinematográfica, como fazia o Teatro Oficina, em Rei da Vela. Inexiste diálogo ou esboço de enredo. A cena converge na convulsão de personagens que não sabem quem são, senão criaturas sem destino ou história, de um país fora do mapa: “terra de araque! subplaneta!”

Apenas um dos longos planos-sequência episódicos de Sem Essa, Aranha. Filmado em cinemascope, divide-se em blocos narrativos autônomos, sem continuidade ou conexão narrativa. Os episódios se articulam pela constância dos personagens e seus bordões — “Tô com fome! Tô com dor de barriga! Porra!”, — enunciados num grito estridente, um grito-sirene. Esse procedimento de colagem opera por metonímia: justapõem-se os blocos, independente de lógica superior ou escopo unificador. Ao invés de narrativa-mestra, o filme se constitui de mini-narrativas de mesma atmosfera de avacalhação, mau-gosto, kitsch e pastelão.


A atitude de profanação atravessa o longa e as personagens vão se despir, xingar, vomitar, dançar com putas num inferninho, masturbar-se com uma garrafa e pisar lascivamente num ícone de Jesus Cristo. Dessacralização do corpo e da alma, levada a cabo sem qualquer estilização. As dançarinas são toscas; as perfomances, cafonas; as tomadas, sujas e relaxadas. A câmera se choca com os personagens, a luz do Sol estoura, o áudio corta sem motivo, o técnico de som aparece.

Pode parecer culto gratuito à marginalidade, a certo gosto pela radicalidade em si que rapidamente se converte em maneirismo cultural, por sua vez a ninar num vanguardismo descarnado e bacaninha. Mas não é: Rogério Sganzerla faz simultaneamente o mais corporal e o mais intelectualizado dos longas-metragens, maturação da poética antropofágica disparada por O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos. Mas aqui, a avacalhação não tem a sofisticação de referências do Bandido, nem o resquício de verniz estético da saga pornô de Ângela Carne-e-Osso.

Corporal porque a imagem encarna da realidade orgânica, terrosa e fragmentária de um terceiro mundo sem mistificação, alegoria ou embelezamento. Além do cinemanovo, além do neorealismo, além da nouvelle vague. Intelectualizado porque responde à ânsia do modernismo brasileiro por identidade. Ao procurá-la, encontra só a diferença, o país fora da página — o “país do futuro” como desculpa para a expropriação e a desigualdade do presente.

Síntese da ética da obra, e mesmo da produtora Belair, é o espelho que, numa das cenas finais, reflete não só os personagens, como também a equipe de filmagem. Ali, fica claro que a Belair quer o oposto do cinema pelo cinema, ou seja, da celebração vazia do meio, como valor de culto, que conforma com uma cinefilia enciclopédica e deslumbrada — inútil. A Belair de Sganzerla, Bressane e Ignez quer, isso sim, fazer o cinema pela vida e a vida pelo cinema, num amálgama de ética, estética e política.


Em Sem Essa, Aranha, o Brasil não se concretiza nas fábulas do sertão ou da metrópole, na estética da fome ou no transe do poeta-político, mas no cafona, na colagem desagregadora (tão bem expressa na sequência do camarim), no terremoto de gritos e revoltas dos personagens surtados, no popularesco cru incorporado por Luiz Gonzaga e Moreira da Silva.

Rogério Sganzerla consegue no cinema o que Hélio Oiticica realizou na arte conceitual e Zé Celso no teatro — todos possuídos por Oswald de Andrade. Numa realidade cultural em frangalhos, o tropicalismo bate na cara do espectador, e o chacoalha a reagir, a gritar e a pensar, fora dos esquadros mistificadores, das demandas de distribuição e de ideologias reducionistas. Livre.

Mais atual, impossível.

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Sem Essa, Aranha, Rogério Sganzerla, 1970, Brasil, Prod. Belair, 98 min., 35 mm, cor.

Em DVD pela Coleção Cinema Brasileiro Marginal, da Lume Filmes.

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