Bruno Cava
Zé Bonitinho, Helena Ignez, Maria Gladys e Aparecida descem
a ladeira do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro. Alucinados, desnorteados,
correm de um lado pro outro, gesticulam, berram. Cercados por uma multidão
entre a perplexidade e o riso, mexem com os favelados, tocam neles, rompem a
“quarta parede” cinematográfica, como fazia o Teatro Oficina, em Rei da Vela.
Inexiste diálogo ou esboço de enredo. A cena converge na convulsão de personagens
que não sabem quem são, senão criaturas sem destino ou história, de um país
fora do mapa: “terra de araque! subplaneta!”
Apenas um dos longos planos-sequência episódicos de Sem Essa, Aranha. Filmado em cinemascope, divide-se em blocos narrativos autônomos, sem
continuidade ou conexão narrativa. Os episódios se articulam pela constância
dos personagens e seus bordões — “Tô com fome! Tô com dor de barriga! Porra!”,
— enunciados num grito estridente, um grito-sirene. Esse procedimento de
colagem opera por metonímia: justapõem-se os blocos, independente de lógica
superior ou escopo unificador. Ao invés de narrativa-mestra, o filme se
constitui de mini-narrativas de mesma atmosfera de avacalhação, mau-gosto,
kitsch e pastelão.
A atitude de profanação atravessa o longa e as personagens
vão se despir, xingar, vomitar, dançar com putas num inferninho, masturbar-se
com uma garrafa e pisar lascivamente num ícone de Jesus Cristo. Dessacralização
do corpo e da alma, levada a cabo sem qualquer estilização. As dançarinas são
toscas; as perfomances, cafonas; as tomadas, sujas e relaxadas. A câmera se
choca com os personagens, a luz do Sol estoura, o áudio corta sem motivo, o
técnico de som aparece.
Pode parecer culto gratuito à marginalidade, a certo gosto
pela radicalidade em si que rapidamente se converte em maneirismo cultural, por
sua vez a ninar num vanguardismo descarnado e bacaninha. Mas não é: Rogério
Sganzerla faz simultaneamente o mais corporal e o mais intelectualizado dos
longas-metragens, maturação da poética antropofágica disparada por O Bandido da
Luz Vermelha e A Mulher de Todos. Mas aqui, a avacalhação não tem a
sofisticação de referências do Bandido, nem o resquício de verniz estético da
saga pornô de Ângela Carne-e-Osso.
Corporal porque a imagem encarna da realidade orgânica,
terrosa e fragmentária de um terceiro mundo sem mistificação, alegoria ou
embelezamento. Além do cinemanovo, além do neorealismo, além da nouvelle vague.
Intelectualizado porque responde à ânsia do modernismo brasileiro por identidade.
Ao procurá-la, encontra só a diferença, o país fora da página — o “país do
futuro” como desculpa para a expropriação e a desigualdade do presente.
Síntese da ética da obra, e mesmo da produtora Belair, é o
espelho que, numa das cenas finais, reflete não só os personagens, como também
a equipe de filmagem. Ali, fica claro que a Belair quer o oposto do cinema pelo
cinema, ou seja, da celebração vazia do meio, como valor de culto, que conforma
com uma cinefilia enciclopédica e deslumbrada — inútil. A Belair de Sganzerla,
Bressane e Ignez quer, isso sim, fazer o cinema pela vida e a vida pelo cinema,
num amálgama de ética, estética e política.
Em Sem Essa, Aranha, o Brasil não se concretiza nas fábulas
do sertão ou da metrópole, na estética da fome ou no transe do poeta-político,
mas no cafona, na colagem desagregadora (tão bem expressa na sequência do
camarim), no terremoto de gritos e revoltas dos personagens surtados, no
popularesco cru incorporado por Luiz Gonzaga e Moreira da Silva.
Rogério Sganzerla consegue no cinema o que Hélio Oiticica
realizou na arte conceitual e Zé Celso no teatro — todos possuídos por Oswald
de Andrade. Numa realidade cultural em frangalhos, o tropicalismo bate na cara
do espectador, e o chacoalha a reagir, a gritar e a pensar, fora dos esquadros
mistificadores, das demandas de distribuição e de ideologias reducionistas.
Livre.
Mais atual, impossível.
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Sem Essa, Aranha, Rogério Sganzerla, 1970, Brasil, Prod.
Belair, 98 min., 35 mm, cor.
Em DVD pela Coleção Cinema Brasileiro Marginal, da Lume
Filmes.
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