José Maria Palhares,
56 anos, auditor fiscal do Tesouro Nacional, jamais falou palavrão. Ainda
assim, é considerado um dos sujeitos mais desbocados da repartição
Marcos Caetano
Se eu cozinho todo mundo come. Gosta de laranja? Se eu te
der um saco, você chupa? Com 10 quilos de carne, dá pra vinte te comer? Gosta
de verdura? O que você quiser, Paula traz. Gosta de frango? Então, deixe meu
pinto crescer. Qual é o aumentativo de dacueba? Você anda de carro ou só
caminha? Você vende quatro, te dou uma. Você gosta de café na máquina ou acha
que no coador é melhor? Cavalo no sol na bunda sua? Jacaré no seco anda?
Elefante no seco atola? Fui cozinhar um ovo e saiu um pinto de dentro. Imagina
se eu cozinho com o pinto dentro. Se você tivesse um cachorro chamado Nabunda,
estivesse passeando de canoa com ele e a canoa começasse a afundar, você levava
Nabunda ou deixava Nabunda? Você topa almoçar depois da uma? Bonita sua camisa.
Linho fio grosso? Vamos rachar a conta? Mil meu, com mil teu. Você chegou há
pouco de fora? A Coca-Cola vai lançar o litraço de quatro.
Meu nome é José Maria Palhares e sou funcionário público.
Apesar da péssima imagem da minha categoria, algo que considero bastante
compreensível, asseguro que toda a minha vida profissional foi dedicada ao bom
andamento das coisas do Estado. Jamais lancei mão de licenças remuneradas,
cumpro prazos e horários e sou absolutamente incorruptível. Com tantas
virtudes, desnecessário dizer que minha carreira de servidor foi um gargalhante
fracasso. Fracassei profissionalmente, mas a maior derrocada da vida deste
rábula de códigos contábeis e demonstrações financeiras é o fetiche da
inconveniência.
Tudo começou quando eu ainda era menino e um colega gaiato
perguntou se eu conhecia o Mário. “Que Mário?” – balbuciei, sem refletir. A
tréplica do garoto todo mundo sabe qual foi. Senti naquele momento, um misto de
humilhação e júbilo. Humilhação por conta das gargalhadas dos colegas ao redor,
júbilo devido à descoberta de uma nova forma de humor – o humor que precisa de
uma alma inocente para servir-lhe de alavanca. A partir dali, ao Mário
somaram-se o Sunda, seu irmão Birunda, o Lôcha e o Cartola. E até personagens
mais sofisticados, como Caio de Brussus e Jaime Destes.
O tempo passou e meus amigos foram abandonando essas
brincadeiras para cuidar de coisas mais elevadas. O engraçadinho que me
perguntou pelo Mário, por exemplo, virou pastor evangélico. Todos se tornaram
gente séria – e, de certa forma, eu também. Fiz concurso público e me tornei
auditor. Pode haver profissão mais vetusta? Ao contrário dos demais, no
entanto, continuei brincando com rimas e trocadilhos indecentes. Tornei-me
dependente dessas coisas, um verdadeiro estudioso da patifaria de duplo
sentido. Quanto mais séria a situação, maior minha compulsão por fazer uma
piadinha quase secreta, só entendida por quem se acostumou a ouvi-la na
infância.
Não suporto ouvir palavrões e muito menos dizê-los. Sou um
homem de princípios. Por isso, admiro tanto a arte dos trocadilhos fonéticos.
Através deles, é possível dizer as maiores barbaridades sem que ninguém possa
me acusar de nada. Toda criança sabe como fazer isso. Os adultos já esqueceram.
Eu não. E foi assim que, poucas semanas depois de ter passado no concurso,
justo quando o presidente da República decidiu visitar a repartição, em pleno
governo militar, eu me saí com esta: “Sou ótimo cozinheiro, Vossa Excelência.
Se eu cozinho, todo mundo come”. O general não percebeu. Aliás, acho que
ninguém percebeu, salvo o garçom, que se engasgou com a dentadura e teve que
receber atendimento.
A partir daquele episódio, minha fama se estabeleceu.
Tornei-me uma figura popular. Apesar do ar de coroinha, era convidado a
participar de todas as rodas de cafezinho do prédio do ministério. Como
construí minha lenda a partir de um trocadilho culinário, naquelas primeiras
semanas decidi concentrar minha verve no mesmo campo. “Você gosta de laranja?
Se eu te der um saco, você chupa?” – gargalhadas mil. E eu me empolgava: “Você
gosta de frango? Então espere o meu pinto crescer”. Passava o chefe de pessoal
e eu atacava: “Se eu fizer um churrasco, com 10 quilos de carne dá pra vinte
comer?” Quando o alvo era de patente superior, discrição: “O senhor gosta de
verdura?” Uma pausa, uma divisão silábica, um circunflexo jogado onde não deve,
qualquer sutileza é suficiente para transformar uma frase banal numa infâmia.
Minhas frases, para permanecer nas metáforas culinárias, são como quadros do
Arcimboldo: você vê um monte de legumes, mas a imagem que permanece é a de um
rosto.
“Minha amiga Paula é muambeira. O que você quiser, Paula
traz.” Vejam que beleza, que complexidade, que humor elaborado. “Qual o
aumentativo de dacueba? E de pirueba?”; “Você anda de carro ou só caminha?”;
“Me ajuda a vender camisetas? Você vende quatro, eu te dou uma”; “Quer trocar
uma calça nova por duas furadas na bunda?”; “Você gosta de café de máquina ou
acha que no coador é melhor?”; “Quanto você acha que eu peso, por cima?” –
perguntas assim, feitas com muito jeito e, fundamental, apenas na situação
precisa, não escandalizam ninguém. Ninguém: porque se a pessoa não passou a
infância no subúrbio, sequer percebe. E, se passou, morre de rir.
Poderia escrever um verdadeiro tratado sobre o tema e, com
efeito, dia destes pretendo levar a cabo tal empreitada. Penso em catalogar os
trocadilhos por assunto, como, por exemplo, animais: “Cavalo no sol na bunda
sua?”; “Jacaré no seco anda”; “Elefante no seco atola?”; “Em caminho de paca,
tatu caminha dentro?”; e “Cachorro de várzea late em terra firme?” são exemplos
consagrados. As situações podem ser mais elaboradas. Exemplos: “Outro dia fui
cozinhar um ovo e saiu um pinto de dentro. Imagina se eu cozinho com o pinto
dentro!” e “Se você tivesse um cachorrinho chamado Nabunda, estivesse passeando
de canoa com ele e a canoa começasse a afundar, você levava Nabunda ou deixava
Nabunda?” “Nabunda nada” seria a resposta de um verdadeiro iniciado para essa
charada. Gosto bastante desta outra, quase um romance: “Um índio está sentado
na floresta e outro no asfalto. Qual deles tem terra na bunda?”
Quando alguém é um mestre na minha arte, é capaz de lançar
dezenas de sinais de fumaça durante um simples almoço com a rapariga
pretendida. Se a moça tiver um mínimo de astúcia, entenderá suas intenções:
“Você topa almoçar depois da uma?”; “Bonita sua camisa. Linho fio grosso?”;
“Nesse calor, como sua a bunda, né?”; “Preciso abastecer o carro. Aqui na sua
redondeza você tem posto atrás?”; “Vamos rachar a conta? Mil meu com mil
teu...”; “Tem cartão pra me dar? Não? Então me dá sem cartão mesmo...”. Se a
rapariga não entender, desista.
Algumas de minhas frases ninguém, absolutamente ninguém,
percebe. Vejam este primor, que costumo dizer para toda e qualquer alma que
adentre a repartição: “Você chegou há pouco de fora?” Ou esta, em meio a uma
séria discussão: “Você é calmo pela frente, mas todo estourado por trás,
bicho!” E ainda esta: “Depois da garrafa de 2 litros, a Coca-Cola vai lançar o
litraço de quatro”. As minhas favoritas, as obras-primas, são aquelas frases
minimalistas, inocentes como uma cambaxirra, que podem ser usadas até no
confessionário, ou endereçadas a alguém no leito de morte, sem risco: “Tudo bem
por aí?” e “Desculpe por tudo”. Há quem goste dos contos de Guimarães Rosa. Eu
prefiro outro tipo de ourivesaria de palavras.
Sei que muitos leitores não enxergarão qualquer coisa além
de vulgaridade no meu texto. Mas tenho a esperança de que uns poucos sejam
capazes de perceber a verdadeira façanha que é cobrir uma página de toda sorte
de pornografia sem lançar mão de um mísero palavrão. Acho que isso é arte. E
aproveito para perguntar: “Tem culpa eu?”
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