Estudo confronta o
canibalismo ocorrido após o naufrágio do navio que inspirou “Moby Dick” com o
sutil tratamento dado por Melville ao abismo entre homem e natureza
Em novembro de 1820, o “Essex”, um baleeiro originário de
Nantucket, no estado americano de Massachusetts, foi atacado duas vezes por um
grande cachalote no Pacífico. Com a quantidade de comida, água e equipamentos
náuticos que pode agarrar no curto intervalo que o navio levou para soçobrar, a
tripulação de 20 homens abandonou o “Essex” em três escaleres. Pelos mais de 90
dias que se passaram até que fossem recolhidos, navegaram ao léu pelo Pacífico,
torturados pela sede, a fome e o delírio, bebendo a própria urina e finalmente
cedendo ao canibalismo. Apenas oito sobreviveram.
Essa é a história de caça à baleia que mais diretamente
inspirou “Moby Dick”, de Herman Melville. Mas Melville encerra seu romance com
o naufrágio do “Pequod” (seu “Essex”) e o afogamento de todos, com exceção de Ishmael,
o narrador. Talvez não considerasse pertinente a sequência da história real.
Melville compara o oceano aos “horrores da vida apenas semiconhecida” que cerca
“a Taiti insular” de cada alma. “Não te afastes dessa ilha”, adverte, “pois
jamais poderás voltar!”
Em certo sentido, a história do “Essex” afasta-se em direção
da “vida apenas semiconhecida”, mas talvez não de uma forma que inflamasse o
tipo de imaginação de Melville. Seu universo era enormemente metafórico. Ele
não conseguia descrever a tessitura de uma esteira ou a disposição de uma corda
de arpão sem encontrar simbolismo nelas. Seu Capitão Ahab e seu Moby Dick são
monumentos à execração mútua entre homem e natureza.
Mas, com o naufrágio do verdadeiro “Exssex”, a baleia branca
desaparece; a história se contrai e se volta para dentro; torna-se, como foi,
intestina. Todo o problema em torno de 85 g de biscoito de despensa e 280 ml de
água por dia debaixo do sol escaldante é que eles se resumem a isso; e que com
o passar do tempo, reduzirão a pessoa a devorar as entranhas do seu amigo. Não
é preciso dizer mais nada. Em outras palavras, os fatos falam por si sós.
Na realidade, a história se espalhou celeremente por toda a
comunidade de baleeiros. No ano seguinte o primeiro contramestre do “Essex”, Owen
Chase, publicou seu relato da penosa experiência, agora reeditado como “O
Naufrágio do Baleeiro Essex” (“The Wreck of the Whaleship Essex”). Depois, em
1960, encontrou-se um caderno de notas que encerrava outra narrativa sobre o
“Essex”, paralela à de Owen Chase, escrita por Thomas Nickerson, criado de
bordo no navio e um dos tripulantes do escaler de náufragos de Chase.
Agora, “No Coração do Oceano” (“In the Heart of the Sea”),
de Nathaniel Philbrick, usa a versão de Nickerson para ampliar o relato de
Chase, mais conhecido, além de uma enorme quantidade de leituras complementares
sobre todos os aspectos da história – desde a comunidade dos “quakers” do
começo do século XIX em Nantucket e a atividade baleeira até a psicologia da
sobrevivência e a incidência “in extremis” do canibalismo.
Philbrick está impregnado desse assunto e de todos os ramos
do conhecimento correlatos de uma forma que o próprio Melville teria aprovado.
Mas, naturalmente, onde Melville é exagerado e brincalhão, Philbrick fala a
sério. De modo geral ele realiza com grande habilidade sua pesquisa em torno do
drama da primeira mão de suas fontes, mas há momentos em que é infeliz. Teria
sido necessário, por exemplo, citar as provações dos combalidos soldados da
Segunda Guerra Mundial para explicar o desespero dos náufragos? E quando Owen
Chase decide “entregar-nos totalmente aos rumos e à vontade do Criador”, será
que nos interessa mesmo saber que isso é prova da compreensão intuitiva da
teoria do “ativo-passivo” das situações de sobrevivência, como descreveu o
psicólogo John Leach?
Na verdade, não é fácil escapar de ser eclipsado por Owen
Chase. Seu livro é ao mesmo tempo direto e cheio de estilo, flui aos ritmos e
imagens familiares a seu público leitor da Bíblia. Seu minúsculo barco lançado
ao sabor da tempestade, por exemplo, torna-se “uma partícula de matéria perante
o terror esmagador da tempestade”; e o sono dos homens, depois de uma vigília
longa e angustiante, torna-se tão profundo que “nenhum sonho poderia romper as
sólidas amarras do alheamento que agora aprisionavam a mente”. Mas Philbrick
tem a vantagem de ser moderno. Onde Chase, no século XIX, lança um véu, ele
pode levantá-lo num átimo.
Ele queria saber mais, conforme diz em seu prefácio, e nós
também – sem nos importar com os ritmos. Com um grau de minudência que quase
beira o de um voyeur, ele descobriu que, quando um organismo é privado de água,
os lábios se retraem como que amputados, a gengiva preteja, o nariz reduz-se à
metade e a pele se contrai a tal ponto em torno dos olhos que impede o
pestanejar. Descobriu que a gordura, em organismos desnutridos, transforma-se
numa “substância gelatinosa translúcida” e que a carne que um organismo nesse
estado pode fornecer será de valor nutritivo duvidoso, assim desprovida de
gordura. Ele nos fala também dos efeitos psicológicos da desnutrição, e da
degradação para um comportamento “bestial”, como foi demonstrado pelos
sobreviventes de Auschwitz.
E, de forma mais ampla, ele se interessa por coisas que
Chase e Nickerson ignoram; o papel desempenhado pelas mulheres de Nantucket na
ausência dos baleeiros; a posição dos membros negros da tripulação e os motivos
pelos quais eles foram os primeiros a morrer; a solidariedade dos habitantes de
Nantucket a bordo e seus efeitos sobre suas chances de sobrevivência. Ele
conhece a história de outros naufrágios e tripulações de náufragos, e os
motivos pelos quais se saíram melhor ou pior. Conhece a linguagem sibilante das
baleias e tem uma teoria sobre por que o barco foi atacado. Também sabe mais sobre
o Pacífico do que a tripulação do “Essex”, e entende por que eles não
conseguiram pescar na da na assim chamada Região Desolada.
Mas a coisa mais dolorosa que ele sabe é algo que a
tripulação do “Essex” também tinha todas as condições de saber, mas ignorava:
que a ilha de Taiti, que eles poderiam ter alcançado, não era habitada por
canibais. Isso, ironia cruel, era o que eles mais temiam. Os ingleses tinham
uma missão na ilha desde 1797, mas, por uma “combinação de arrogância,
ignorância e xenofobia”, diz Philbrick, os habitantes de Nantucket não quiseram
arriscar aportar em suas praias. Melville sabia que a ilha era segura, e anotou
esse fato em seu exemplar do livro de Owen Chase. O que nos traz de volta a sua
referência, em “Moby Dick”, à “Taiti insular” em meio aos horrores do oceano
circundante. Nessas circunstâncias, o leitor se pergunta se essa expressão não
teria sido uma alusão deliberada à incauta e desventurada tripulação do
“Essex”.
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