O escritor recifense
sofreu uma parada cardíaca às 5h30 da última quarta-feira, dia 14
“Sou Liêdo Maranhão de Souza, nascido em 3 de julho de 1925,
no Recife, bairro de São José. Sou dentista e esquizofrênico cíclico, como um
amigo psiquiatra já me disse. Sou poliglota: falo espanhol, francês, e falo
gago também”. O depoimento concedido há dois meses dá pistas sobre o bom humor
insistente do escritor e pesquisador de cultura popular.
A alegria das anedotas, no entanto, deu lugar à tristeza
diante da notícia: Liêdo Maranhão, 88 anos, morreu na última quarta-feira, às
5h30, após parada cardíaca. Familiares e amigos acompanharam o velório no
Memorial Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes, que prosseguiu até 11h da
quinta-feira. A cremação do corpo ocorreu em seguida, no mesmo local.
Liêdo estava internado no Hospital Santa Terezinha há três
meses, em decorrência de sequelas provocadas por um acidente vascular cerebral
(AVC), que o deixou sem andar e falar. O escritor passou décadas coletando e
pesquisando a cultura popular do estado, trazendo a linguagem das ruas ao
ambiente acadêmico. Também foi escultor, cineasta, fotógrafo, dentista. Para
ele, a cultura popular se baseava em futebol, religião e sexo.
Nos fundos de casa, em Olinda, ele mantinha a Casa da
Memória Popular, onde está guardado o seu acervo. A paixão pela escultura
repousava nas obras de ferro e madeira, espalhadas pelo quintal, e nos
presentes recebidos de ícones da cultura nordestina, como Bajado, Samico, José
Cláudio, João Câmara, todos amigos. Ele morava com a esposa, espanhola
conhecida no período vivido na Europa, entre 11 países.
Em junho de 2013, o Viver visitou o espaço, uma sala com
dois ambientes, refrigerada. Revistas, santinhos, objetos antigos, livros,
fotografias, dedicatórias e a capa emoldurada de uma revista com a foto de Bill
Gates com a frase “vou doar 90% da minha fortuna”. A coleção de livros sagrados
convive com série de revistas pornográficas, publicadas na ditadura militar. No
quarto, dezenas de diários encadernados, escritos desde 1971, de onde saíram
todos os 14 livros.
Certa vez, o escritor Ariano Suassuna declarou: “Liêdo é um
dos maiores conhecedores da literatura de cordel do Nordeste.”
Liêdo deixa uma esposa, a espanhola Bernarda Ruiz, com quem
era casado havia 60 anos, além de dois fihos, Roman e Ruth.
A Cepe relançou três livros do escritor: “Classificação
popular da literatura de cordel”, com apresentação de Ariano Suassuna, “Que só”,
sobre a expressão usada para comparações, e “Marketing dos camelôs do Recife ou
O mundo da camelotagem”. A edição com as obras custa R$ 15.
Há um inédito: “O porto e a zona do Recife - Opening city
dos mariners”, sobre as zonas de prostituição nas décadas de 1950 e 1960.
Obras completas:
Classificação popular da literatura de cordel (1976)
O mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste (1977)
O povo, o sexo e a miséria ou o homem é sacana (1980)
O folheto popular: sua capa e seus ilustradores (1981)
Conselhos, comidas e remédios para levantar as forças do
homem (1982)
Cozinha de pobre (1992)
Que só (1993)
O marketing dos camelôs do Recife (1996)
Classificação popular da literatura de cordel (1976)
A fala do povão: o Recife cagado-e-cuspido (2004)
Rolando papo de sexo: memórias de um sacanólogo (2005)
No ano passado, Liêdo Maranhão concedeu essa entrevista à
jornalista Luiza Maia:
Nas décadas de 1950 e
1960, o senhor ia quase diariamente ao Mercado de São José e levava dinheiro
para o pessoal de lá. Sua mulher reclamava?
Minha mulher é espanhola, europeia, não gostava. Eu não
tenho ambição, não gosto de automóvel, ando de ônibus. Dirigi um tempo, mas é
um negócio horrível. O automóvel individualiza a pessoa. No ônibus, você vai
junto. E hoje, com essas minissaias...
As mulheres mudaram
muito?
Mudaram, claro. As mulheres são muito livres hoje, não tem
mais aquele preconceito, aquela vergonha que tinha no meu tempo. As pessoas
moralistas, puritanas, acho que isso é uma hipocrisia. Gosto do povo porque é
solto, é leve. As pessoas que têm posse têm até medo de se aproximar das
pessoas pobres.
O senhor ainda
frequenta o mercado? Qual a última vez que foi?
Há uns 15 dias. Agora, eu estou sem condições. A idade, o
medo de esquecer na rua. Eu ando com isso, olha (mostra o cartão que o filho
fez), porque posso perder a memória.
O senhor tem algum
livro inédito?
Eu tenho um sobre a zona do Recife. Eu era habitué da zona. Era
um negócio bonito, as radiolas de ficha, as pensões, as prostitutas. Eu tinha
uma ‘amigação’ lá no centro, Alice. Era o que a gente chamava ‘tabaco de
caridade’. Eu, liso, estudante, não pagava. Ela até comprou um pijama para mim.
Conheço muita zona. Em Hamburgo, eram as mulheres nuas, na vitrine, sentadas em
uma poltrona, com registradora e tudo. Na França, você estava na rua e a mulher
abria a capa de pelo, nua. Mostrava retratos, dizia que tinha filhos para
cuidar.
Qual o nome do livro?
O porto e a zona do Recife - Opening city dos mariners,
porque os americanos chamavam de cidade aberta. Aqui, quando veio Rossellini,
Gilberto Freyre mandou levar para a zona. Ele era casado com Ingrid Bergman e
se engraçou com uma prostituta. E ela ‘vou nada, um homem chato’. A zona era um
cartão de visitas do Recife.
Por que o senhor
gosta de pesquisar sobre a safadeza?
Porque é a sinceridade do povo. Lolita, o primeiro
homossexual a enfrentar a burguesia pernambucana, dizia “a delicadeza é um dom,
mas a safadeza é que é bom”. Antigamente, quando os frangos - que viado é coisa
do Pasquim - passavam, o povo gritava “bota água no fogo para pelar o frango”.
Havia uma discriminação muito grande.
O senhor tinha
preconceito?
Não. Eu comi muito frango. A gente comia ali nos pés de
escada. Tinha um, o frango Zé, naquele tempo ele tinha muito medo para não cair
na boca dos meninos. Aí ele me chamou para comer uma macarronada na Leiteria
Vitória e disse “Liêdo, vamos falar em inglês”.
E isso era comum?
Antigamente, mulher era um negócio meio difícil. A gente ia
para a zona e sobrava. Os frangos eram a saída, Pé de Papo, Gaguinho,
Carinhoso. A gente comia nos pés de escada. Antigamente, não se fechavam os pés
de escada. Imperatriz, Rua Nova, a gente levava para lá. Eu digo isso em um
livro meu.
Seu filho mora perto?
Mora, aqui na cidade. Roman tem umas coisas engraçadas.
Minha mulher queria que ele fosse engenheiro. E aqui meu filho era incapaz de
estudar. Então ela matriculou Roman na Espanha e voltou toda satisfeita. Aí um
dia ele escreveu “Mamãe, deixei de fazer suas merdas e quero fazer as minhas”.
O que o senhor faz no
dia a dia? Acorda cedo?
O sono de velho é acordar para mijar a cada hora. Levanto às
5h, 4h, 3h, faço um café, fico deitado, feito cobra de jardim, leio, vou à
padaria às vezes, brinco com um, com outro, conto piada.
O senhor ganha
dinheiro com os livros?
Sempre me custeei com o trabalho de dentista. Entrei por
concurso federal. A banca eram uns caras chatos, com nome estrangeirado,
metidos. Na véspera do concurso, fui a uma conferência com Josué de Castro, no
Teatro de Santa Isabel. Aí minha mulher: “você é um irresponsável. Amanhã, você
vai fazer concurso”. Eu disse: “mas o cavalo quando é bom descansa na véspera
da corrida.” Lá em Beberibe, o pessoal gostava muito de mim. Os médicos diziam
que eu dava muita liberdade. Porra, uma gente lascada, que chega de madrugada,
entra na fila e muitas vezes não encontra vaga.
Como o senhor começou
a gostar do mercado?
Quando a gente fica fora do país por muito tempo, fica mais
brasileiro. Quando eu estava na Espanha, visitei o Palácio da Alhambra. Ele
estava abandonado e foi redescoberto por um norte-americano, Washington Ivg,
que escreveu Cuentos de la Alhambra (Contos de Alhambra). Quando cheguei à
praça, começaram a me contar histórias. “Pronto, isso é minha Alhambra”. Aí
comecei a escrever e anotar. Naquela época da ditadura, eles tinham medo. Eu
era do partido comunista, do PCB, e arrecadava dinheiro da classe médica. Mas
sou muito covarde. No golpe, fiquei com um medo danado. Não aguento dor física.
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