Por Luiz Carlos Miele
A vida é um show, mas às vezes, nem tanto. Na verdade,
comecei a minha vida em São Paulo, e o show no Rio de Janeiro. Acho que desde
criança de colo, tive minha trajetória determinada, pois meu avô, ao convidar
os parentes para a festa do meu segundo aniversário, escreveu no cartão:
“lembrança do meu segundo ano de circo”.
Minhas aventuras infanto-juvenis no rádio e na TV já estavam
escritas em outros capítulos desta despretensiosa narrativa, quando os editores
sugeriram que o livro deveria ter uma cronologia por mínima que fosse. Assim,
acho que posso começar pela minha chegada ao Rio de Janeiro.
Trabalhando na TV Continental, estreei meu show, que eu
espero, ainda esteja em cartaz quando o livro for publicado.
De toda a equipe que veio de São Paulo para operar a
recém-inaugurada TV Continental, creio que ninguém conseguiu receber os
salários em dia; se é que alguém conseguiu receber algum salário. Era uma época
de extrema dureza, morávamos seis em um quarto, as camas enfileiradas como num
quartel. Sem o sargento, é verdade, mas também sem o rancho, café da manhã,
almoço etc.
Eu odiava o Rio de Janeiro. Não via a menor graça em ficar
enclausurado entre Laranjeiras e Catete, sem um tostão para ir conhecer
Copacabana. Eu já sabia que Copacabana era “a princesinha do mar”, mas ainda
não havia sido informado que “Ipanema era um estado de espírito” e nem estava
preparado para responder que, em compensação, “em São Paulo se come melhor”, e
outras bobagens daquela época.
Um dia, também não deu para pagar o tal quarto com as seis
camas e assim fomos todos para lugar nenhum.
De repente, o José Miziara, ator e diretor dos primeiros
teledramas da Continental, conseguiu um apartamento que tinha uma linda vista
para o alto. Ou seja, era no andar térreo e a janela dava para o paredão do
prévio vizinho, mas era um cinco estrelas para a época. Gentilmente (ou com
dó), ele cedeu um espaço para mim e Roberto Maya, também ator e apresentador,
cujo nome verdadeiro era Robert Clement Altman.
Descendente de alemães, seu tio era o querido Walter Foster,
e ele, o Robert, era incapaz de perder a fleuma e a dignidade, mesmo quando em
outra ocasião jogamos a roupa pela janela dos fundos de um hotelzinho na Lapa.
Deixamos a mala e saímos tranquilamente pela portaria para pegar as roupas na
rua de trás. Mas, para nossa surpresa, demos de cara com uma versão de Chão de
estrelas. E as nossas roupas comuns dependuradas nos fios elétricos pareciam um
estranho festival.
Não teve jeito, e voltamos para o quarto-e-sala do Miziara,
que carinhosamente nos oferecia o espaço. Mas não havia camas. Dormíamos no
chão, até que ele passou a receber inúmeros roteiros para serem encenados na
TV. Bem, os roteiros tinham centenas de páginas, que passaram a nos servir de
colchões, sendo que o melhor no qual eu dormi foi, sem dúvida, Sindicato de
Ladrões, que nós corajosamente encenamos.
Miziara era o Marlon Brando; o Maya, o Karl Maden; e eu, o
Lee. J. Cobb, quase o elenco original. Resolvida a questão da moradia, ficou
faltando a da alimentação. Havia o restaurante Lamas, ainda no Largo do
Machado, mas, depois de alguns meses sem receber, o garçom que bancava nossa
comida, resolveu suspender essa regalia, inclusive porque foi despedido por
isso mesmo. Salvou-nos então (às vezes) a perícia do Miziara na sinuca. A gente
reunia os eventuais trocados até fazer um mínimo razoável para que ele pudesse
desafiar os craques locais.
Miziara não era nenhum Toquinho ou Paulinho da Viola,
mestres do violão e do taco, mas quebrava um galho. Então ficávamos eu e o Maya
dormindo pelos bancos da sinuca, durante a madrugada. Caso o Miziara ganhasse,
sopa, ou ainda o “picadinho iugoslavo”, espécie de pot-pourri de tudo que
levasse carne no dia anterior. Se perdesse, sanduíche de mortadela (ótimo).
Algum tempo depois, alguém (Daniel Filho?) usou essa situação como argumento de
um filme.
O tempo foi passando, o Miziara foi se especializando na TV,
e também em algumas vedetes da época, que ele passou a namorar, com sucesso.
Sobrou para mim e para o Maya, que ficamos novamente com duas mãos na frente e
duas atrás. Acabou o luxo de dormir em cima de grandes autores.
Houve uma época em que encaramos as tubulações que estavam
sendo usadas para a construção do Aterro do Flamengo. No início, pensei em
dormir na praia, mas um colega milionário como eu me avisou: “Na praia não, que
eles levam o teu tênis.”
Até hoje não sei por que o Maya se recusava a aceitar
aquelas acomodações, e ficava mais bravo ainda, porque eu conseguia repousar
com a maior tranquilidade.
– Porra, como é que você consegue dormir nessa situação?
Acho que ele não gostava daquelas baratinhas d’água, que
também ocupavam o domicílio.
Passado um tempo, apareceu um novo trabalho para nós. As
dublagens dos seriados americanos.
Fazíamos vários personagens, e o único que dublava o ator
protagonista era o Daniel Filho, que fazia O
Último dos Moicanos.
E então chegamos ao nosso Waldorf Astoria. Daniel nos
acolheu num apartamento em frente ao Antonio’s (que ainda não era o maior bar
do Brasil). Um endereço nobre no Leblon, e tinha cinco quartos.
Ocupavam os luxuosos aposentos: Daniel, Hugo Carvana, eu, o
Maya e um decorador e cenógrafo chamado Joel. Emocionados com aquela fartura de
camas, tratamos logo de povoar aquele espaço.
Ruy Guerra, um dos gurus do Cinema Novo, estava sempre por
lá. Havia feito um tremendo sucesso com o filme Os Cafajestes, do qual o Daniel participava. Assim, era normal que
aspirantes ao sucesso procurassem o Daniel.
Por alguma razão, resolvemos concentrar nossas atenções no
futuro das atrizes do nosso cinema, deixando para outros batalhadores da nossa
cultura a incumbência de selecionar os elencos masculinos do cinema nacional.
Uma das coisas mais cafajestes que antecederam o Cinema Novo
foi o “teste da índia Kalu”. Eu já tinha ouvido falar muito, mas nunca, até
então, havia participado.
Uma incauta futura candidata à estrela ligou para o
apartamento, para saber se estavam fazendo o tal teste para um próximo filme.
Não sei quem deu o telefone, nem quem atendeu o próprio. Digamos que foi a
comissão técnica. Avisada da importância do momento, pois estaria presente o
célebre diretor americano Vincent Minelli (Minelli é quase Miele, ou não é?), a
moça chegou rapidamente.
Um amigo nosso chamado Raul (o Raul Vovô, que depois se
tornou personagem de Ipanema) fez as vezes do mordomo do diretor americano. Ele
era alto, louro, de grande porte e estava mais bonito ainda, pois envergava a
casaca do pai do Daniel, que havia encantado plateias como grande cantor de
tangos.
Bem, tudo que aquela garota esperava estava longe da figura
de um louro de um metro e oitenta, de casaca, e que abriu a porta recebendo-a
com um inglês impecável, que, aliás, tanto fazia, pois ela não falava uma
palavra do idioma (também não era muito forte no nosso).
Introduzida no luxuoso apê, deparou com o Maya, o Hugo e o
Daniel atarefadíssimos, com o script todo espalhado pelo chão, todos discutindo
o roteiro do filme, enquanto um ridículo Minelli/Miele, de cachimbo e robe
colorido, martelava a máquina de escrever. (O robe também fazia parte do acervo
portenho do pai do Daniel.)
A situação era absolutamente verossímil para qualquer
pessoa. Afinal, interpretando seus papéis, estavam ali alguns dos futuros
melhores atores e diretores do Brasil.
Entusiasmo com o ambiente (e com o próprio roteiro do
filme), nossa heroína se imaginou como a própria Kalu, a personagem principal.
Como todo mundo sabe, Kalu, a índia, deveria ter um corpo escultural e nada
mais justo que a convidada para o teste, revelasse à produção as suas
possibilidades físicas.
Ainda um pouco inibida, ela própria sugeriu um strip-tease,
para o qual pediu uma música ambiente que liberasse um pouco mais a sua
sensualidade. Imediatamente, Charles, o mordomo, foi chamado. Sentou-se
elegantemente ao piano, ajeitou a casaca, como convém aos concertistas.
Porém, infelizmente, além daquela ser a primeira vez na qual
envergava uma casaca, era também a sua estreia ao piano, de maneira que a
música tema, que serviu de fundo para aquela cena erótica, ficou restrita à
execução de La Paloma, tocada com um
dedo só.
De qualquer maneira, a índia era uma beleza e sua perfomance
convenceu imediatamente um dos componentes da equipe de produção, que, num
ímpeto cinematográfico, arrastou a índia para uma das nossas cinco tendas.
Terminada a sua primeira experiência com os bastidores da
indústria cinematográfica nacional, Kalu dirigiu-se ao chuveiro para um banho
revigorante. Quando, de repente, a cortina de plástico é afastada. É evidente
que ela não conhecia Alfred Hitchcock e a famosa cena de Psicose, por isso não gritou imediatamente.
Mas ficou indignada ao deparar com o nosso mordomo que, na
ocasião, vestia apenas uma sunga e a parte de cima da casaca. Portava também um
Martini, numa elegante bandeja, e ofereceu a bebida e ela, ainda com seu inglês
irreparável.
– Do you
like a drink, madam?
Ela não só entendeu, como não aceitou, e ainda saiu correndo
porta afora, carregando as roupas, vestindo-se pelo caminho e gritando:
– Eu não vim aqui pra dar pro empregado de ninguém.
Bobagem dela.
O mordomo era muito mais bonito que todos nós, e depois, não
foi nem original, pois todo mundo sabe que essa frase “eu não vim aqui pra dar
pro empregado de ninguém” foi dita, pela primeira vez, em Hollywood por Doris
Day.
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