Por Luiz Carlos Miele
Na inauguração da Sala Baden Powell, no Rio de Janeiro,
vários shows foram realizados. Homenagens obrigatórias a um dos gigantes da
música brasileira. Conheci Baden logo que vim para o Rio, na TV Continental, no
programa Is e Rosana.
“Is” era a marca de cigarros. Rosana Toledo, a cantora.
Ótima e muito bonita, na linha da Maysa. Sua irmã, Maria Helena Toledo, era
namorada de Luiz Bonfá, o que prova que as duas irmãs entendiam tudo de
violões.
Estabelecemos, eu e Baden, uma razoável intimidade. Alguns
anos depois, eu e Ronaldo produzimos o seu show. Estávamos em período de
ensaios, no Teatro da Praia. Baden vinha de uma sofrida separação com sua
mulher, Tereza, que, de musa inspiradora, virou alvo da revolta do Baden. Ele
brigou do jeito que sabia. Com sua música.
Para não deixar dúvida, chamou letras talentosas do parceiro
Paulo César Pinheiro e a primeira das composições dessa safra cheia de farpas.
“Todo mundo se admira, da mancada que a Terezinha deu e deu no pira, sem levar
um nada ter de seu. Ela não quis levar fé, na virada da maré, mas que malandro
sou eu pra ficar dando colher de chá se eu não tive colher. Quá quá rá quá quá,
quem riu, quá quá rá quá quá, fui eu.”
Durante os ensaios, Baden e Ronaldo foram alimentando a tese
de vingança e resolveram colocar no show o título de Trator na margarida. Achei que era um pouco demais e, quando os
dois se distraíram, coloquei o título Baden
é de lei.
Ronaldo ainda produziu sozinho outros espetáculos dele e nos
encontramos novamente em Vivendo Vinicius,
que foi realizado inicialmente no Metropolitan, com o poetinha recebendo as
homenagens dos parceirinhos queridos, Baden, Toquinho, Carlinhos Lyra e Tom
Jobim. Esse, nas vozes de Miúcha e Leila Pinheiro. Baden tinha agora, como
esposa e guardiã, Silvia, que lhe deu os dois filhos maravilhosos, Marcel e
Phillipe, herdeiros do talento do pai, no violão e no piano.
Os dois me convidaram para a apresentação dos shows que
citei no início desse texto. Artistas como Alcione, Wanda Sá e muitos outros
faziam parte dos convidados das três noites de espetáculo. Sempre ao lado dos
“meninos” do Baden.
Na primeira noite, eu na vez de mestre-de-cerimônias do
evento, Marcel, no palco, me convida:
– Ô Miele, manda aí o Refém
da solidão. Depois a gente faz Lapinha
para encerrar.
No canto do cenário, havia uma enorme foto do Baden, cujo
olhar apontava diretamente para o centro do palco. Como se fosse dizer para
mim:
“Miele, vê bem o que é que você vai aprontar com a minha
música.”
Falei dessa preocupação com os garotos, mas eles me
“carregaram no colo” com o acompanhamento e eu cheguei são e salvo ao fim das
músicas. Agora, eles fazem parte de vários projetos que eu ando sonhando.
Afinal, é importante para mim saber que eu estou trabalhando com os filhos de
artistas maravilhosos que eu tive a honra de produzir.
Nesses shows de homenagem ao Baden, cantei também com a
Carol Saboya, filha do Antonio Adolfo, com quem gravei uma canção infantil
quando ela tinha 9 anos de idade. E espero que seja assim com o Jairzinho de
Oliveira, Luciana Mello, Pedro Camargo Mariano e agora Maria Rita, a cujos
shows fui assistir emocionado.
Bom, com o netinho da Elis acho que não vai dar mais tempo
para show juntos, não. Mas com Simoninha deu. Fizemos já três apresentações, no
Rio e em São Paulo, e é muito divertido. Claro que o tema do show é o
relacionamento profissional (e pessoal) que eu tive com seu pai, Wilson
Simonal.
Além dos sucessos de seu repertório atual, Simoninha
relembra os grandes sucessos do “velho”: Vesti
azul, Meu limão, meu limoeiro, Mamãe passou açúcar em mim, País tropical, Minha namorada etc. Durante o show, Simoninha me chama
carinhosamente de “tio Miele”. É melhor do que vovô, não é mesmo? E vamos
lembrando um pouco das aventuras do artista que uma noite regeu “o maior coral
do mundo”, no Maracanãzinho, quando, com sua habitual irreverência e domínio
absoluto do público, comandou:
– Agora, só os quinze mil do lado de cá. Depois os 15 mil do
lado de lá.
Eram 30 mil pessoas que lotavam o estádio, aguardando o show
de Sergio Mendes, que voltava consagrado dos Estados Unidos e,
inadvertidamente, convidou Simonal para “abrir” o show. Pois ele abriu e quase
fechou. Sergio teve que esperar um bom tempo, até a rapaziada sossegar e ele
poder se apresentar.
Fizemos muitos espetáculos juntos até a tragédia artística e
pessoal que ele sofreu. Recentemente, seus filhos prepararam uma primorosa
caixa especial com várias das inúmeras gravações de uma carreira
extraordinária, no Brasil e no exterior, prematuramente encurtada por uma série
de acontecimentos nebulosos.
O trabalho de Simoninha e Max resgata (em parte) essa carreira,
o que as autoridades brasileiras se preparam também para fazer, com justiça. Na
época do processo, “um processo sem réu” na opinião do juiz responsável, pois
nunca houve uma acusação formal contra Wilson Simonal, eu fui solicitado a dar
um depoimento sobre o mesmo, assim como Chico Anysio, a cuja reputação o Brasil
deve grande respeito.
Meu depoimento:
À
Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH-OAB),
Atendendo
à solicitação do Dr. Antônio Ribeiro Romanelli, venho dar o meu testemunho
sobre o processo de reabilitação moral do cantor Wilson Simonal (proc.
01/2002/cndh protocolo 595/2002).
Prezados
senhores,
Não
pretendo fazer nenhuma literatura com relação ao meu depoimento sobre o resgate
da memória de Wilson Simonal.
Acredito
que a simples citação dos momentos profissionais e pessoais de nossa
convivência bastem para definir a minha opinião o artista e o homem.
Durante
os anos 60, eu e Ronaldo Bôscoli nos tornamos os produtores dos espetáculos que
tornaram famoso o Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, onde foram revelados,
entra tantos artistas, Elis Regina, Sergio Mendes, Leny Andrade, Trio &
Tambo, Luiz Carlos Vinhas e a maioria dos instrumentistas que deram início ao
movimento da Bossa Nova, hoje reconhecido internacionalmente.
Simonal
era crooner de boates como Drink e Top Club. Impressionados com o seu sucesso
na noite, fomos convidá-lo para estrear um show. Ele era a estrela principal,
claro. Foram dois shows, o primeiro deles em companhia da atriz Darlene Glória,
e, no segundo, já estabelecido como grande atração, Simonal lançou a cantora
Rosa Maria. Os shows tiveram a participação do Bossa 3, formado por Luiz Carlos
Vinhas, Otavio Baily e Ronye Mesquita.
Em
pouco tempo, Simonal tornou-se um dos artistas queridos do Beco da Garrafas.
Assim como os demais artistas que serão aqui citados, dentre as pessoas que
ainda estão entre nós, todos os testemunhos podem ser facilmente identificados.
O Beco
das Garrafas ficou pequeno para Simonal. Fomos para o Teatro Santa Rosa, onde
produzimos (Miele & Bôscoli... sempre!!!) o primeiro show de MPB
apresentado em teatro, com roteiro e textos especiais. Além do Bossa 3, a
bailarina Marly Tavares completava o elenco.
Nesse
espetáculo Simonal, além de cantar, fazia várias imitações, contava piadas,
enfim, era o início da sua afirmação como grande showman. Em pouco tempo foi
contratado pela TV Tupi para apresentar o programa Spot Light, dirigido por
Aberlado Figueiredo.
Depois,
veio a TV Record, onde passou a liderar o programa Show em Simonal num momento
em que os movimentos musicais no Brasil tinham suas tribos absolutamente
separadas, como o samba de raiz, a Bossa Nova, a Tropicália, a Jovem Guarda. O
show de Simonal era absolutamente aberto a todas as vertentes da melhor música
popular, dos Vips a Nara Leão e a Ciro Monteiro. Sem preconceito. Nem mesmo o
preconceito musical.
Simonal
tornou-se, então, um dos maiores cartazes do Brasil, dividindo o primeiro lugar
entre os cantores com Roberto Carlos. Já durante a fase de grande sucesso,
depois de um ensaio, ele me chamou para irmos a uma sauna. E partimos para a
sauna Leblon, que ele não conhecia. Quando chegamos, houve uma grande correria,
tanto de funcionários quanto dos clientes.
Afinal,
na semana anterior, Simonal havia feito um sucesso extraordinário no
Maracanãzinho, ao reger o que a imprensa chamou de “o maior coral do mundo”,
quando 30 mil pessoas cantaram com ele o “Meu limão, meu limoeiro”.
Portanto,
naquela tarde na sauna, Wilson Simonal de Castro foi recebido como um rei.
Autógrafos, fotografias ao lado dos funcionários etc. Depois de observar
detalhadamente o imóvel onde a sauna estava localizada, ele perguntou:
“Miele,
qual é o endereço daqui?”
“Rua
Carlos Góes, 84”, respondi:
“Miele,
minha mãe foi cozinheira da família que morava aqui, e como eles não admitiam
empregada com filhos, enquanto a família estava à mesa, almoçando, ela fazia um
prato para mim e colocava no fundo do quintal. Eu pulava o muro, almoçava
escondido e pulava o muro de volta para minha dureza.”
É
evidente que a mudança de situações serviu para desenvolver uma série de conflitos
na personalidade de Wilson Simonal. Na ocasião em que foi roubado por um dos
contadores do seu escritório (contador que confessou o roubo na polícia),
Simonal, em lugar de recorrer às providências oficiais, aceitou a sugestão de
dois policiais, dos muitos que frequentavam as boates onde fazíamos os nossos
shows.
“Simonal,
deixa que a gente dá um aperto nele e ele entrega tudo...” Assim foi feito,
assim o fato veio a público. Simonal foi detido e acredito que, em um de seus
momentos de ingênua soberba, teria afirmado nada temer, pois tinha apoio e
relacionamento com as autoridades que dominavam o país, todas elas fãs de seu
talento. Num momento em que muitos artistas exerciam uma grande militância
política, sofrendo por isso pesadas repressões, a atitude de Simonal foi
considerada um verdadeiro ato de traição. O que lhe valeu o banimento do meio
artístico.
Essa é
a versão que eu conheço e na qual acredito, como, aliás, passaram a acreditar
vários de seus acusadores e órgãos de imprensa, depois que Simonal amargou anos
de exílio pessoal e profissional que culminaram com a sua morte.
É da
profissão dos diretores de espetáculos definir o comportamento, atitude e
caráter dos personagens que dirige. É inevitável que esse trabalho nos leve à
apreciação da sensibilidade do homem que vive o personagem. E eu, e os outros
profissionais citados nesse depoimento, não podemos ter nos enganado todos em
relação a WILSON SIMONAL.
Atenciosamente,
Luiz
Carlos Miele.
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