O compositor e
jornalista Ronaldo Bôscoli (à esquerda) e Miele (de barba, em pé) com a banda
de Luiz Carlos Vinhas
Por Luiz Carlos Miele
Elis com Miele & Bôscoli
no Teatro da Praia. Era o título do espetáculo com o qual iríamos inaugurar
o teatro. Como esse show, segundo a crítica, “Elis deu o salto”. Ela dançava,
sapateava, fazia humor, e principalmente, é claro, cantava.
No começo era para ser apenas uma performance dela, mas Elis
pensou em trocar de roupa entre alguns números, e Ronaldo sugeriu que eu
entrasse no palco e contasse uma história qualquer.
Bem, eu entrei e contei a primeira, a Elis se divertiu
muito, sugeriu outras participações minhas, e eu acabei quase dividindo o show
com ela, o que considerava um absurdo, em face da condição de estrela que ela
tinha.
Mas era tudo uma grande festa, entre mim, Elis, Ronaldo,
Menescal e o conjunto, e acredito que isso tenha sido passado para o público,
pois ficamos em cartaz durante nove meses, cinco no Rio, quatro em São Paulo,
no Teatro Maria Della Costa.
Durante esse período, fomos a segunda bilheteria da cidade,
perdendo apenas para a peça Hair, que
era uma superprodução.
Mas a nossa “produção” começou de uma maneira muito
irresponsável, como era a nossa vida. O prédio onde se instalava o Teatro da
Praia, no Rio de Janeiro, estava ainda em fase final de construção.
Eram treze andares inacabados e, na cobertura, eu e Ronaldo
instalamos um precário local de trabalho, pois tínhamos que acompanhar de perto
os detalhes de acabamento do teatro.
Algumas caixas de cervejas faziam às vezes de cadeiras (é
claro que nós mesmos esvaziávamos as caixas, pois, afinal, tínhamos que sentar
em algum lugar). Aquela tampa de mesa com cavaletes, um fio de telefone de
vinte e cinco metros que vinha do andar de baixo e, para completar a decoração,
montes de areia, pilhas de tijolos, sacos de cimento, ferramentas etc. Um luxo.
Uma tarde, em meio ao sagrado e sofrido processo de criação
artística, toca o telefone. Enquanto Ronaldo pensava em como Elis ficaria
maravilhosa vestida de Carlitos, eu atendi.
– Monsieur Miele está, por favor? Aqui é da presidência da
Air France.
Como, pelo menos para a Air France, eu não devia nada
naquela época, estranhei um pouco, mas ela (a voz com sotaque), explicou:
– Aqui é a secretária de monsieur Joseph Halfin, o
presidente da companhia, que quer conversar com os senhores Miele &
Bôscoli.
Enquanto eu chamei a atenção do segundo dos “senhores”, que
era o Monsieur Bôscoli, o presidente foi me explicando que havia ouvido boas
referências sobre o nosso projeto e, como já era um grande fã de Elis, gostaria
de estudar a possibilidade de o nosso show fazer o encerramento da festa de
entrega do prêmio Moliére aos laureados do ano em teatro e cinema no Brasil.
Era uma oportunidade excepcional. Até então, o prêmio era
encerrado com todas as estrelas da TV Record, mais de dez artistas se
apresentando, e depois de nós, os grandes astros franceses, como Legrand,
Aznavour, Becaud, Distel, Montand vieram como as grandes atrações.
Ainda um pouco assustado, pergunto como iremos nos
encontrar, e aí começa uma das aventuras mais absurdas da dupla Miele &
Bôscoli.
Eu:
– Ronaldo, é o presidente da Air France que quer comprar o
show e vir ao Rio para tratar do assunto, pessoalmente, em nosso escritório.
Ronaldo:
– Chuta que o nosso escritório está sendo reformado lá na
avenida Rio Branco, avisa que os móveis ainda não chegaram da Oca, aquela loja
chiquérrima porém pouco pontual, e que estamos atendendo provisoriamente aqui
mesmo, no teto do edifício do teatro, que outros irresponsáveis também ainda
não terminaram.
Acertado o encontro para o dia seguinte, eu e Ronaldo já nos
encontrávamos nas nossas instalações, Ronaldo olhava o mar, do alto dos treze
andares, e propôs uma instigante questão:
– Miele, será que se eu soltar uma galinha daqui de cima,
ela voa até a praia?
– Claro que não voa, Ronaldo. Galinha não voa essa distância
e dessa altura. (Quatro quarteirões até a praia, vão prestando atenção.)
– Claro que voa, Miele. Galinha é pássaro, ave, sei lá.
– Não voa, Ronaldo.
– Claro que voa, porra.
Voa, não voa, aproxima-se o contrarregra do teatro, que
tinha ido comprar cervejas.
Contrarregra:
– Com licença, chefia. Galinha voa, sim senhor. Eu já
trabalhei em granja, e tô por dentro.
Ronaldo:
– Falei que voava, porra.
Miele:
– Não voa, Ronaldo. Esse contrarregra entende menos de
galinha do que de teatro.
– Voa.
– Não voa.
– Aposto que voa.
– Tá legal. Vale cem pratas.
E mandamos o contrarregra até a esquina, para comprar uma
galinha. Enquanto isso, chega o presidente da Air France, Joseph Halfin.
Nós já havíamos nos esquecido um pouco do encontro, em face
do fascinante tema posto em questão. Nós o recebemos com toda fidalguia que
marcava o comportamento Miele & Bôscoli.
Monsieur Halfin era o único presidente da Air France em todo
mundo que não era francês. Não era francês, mas era romeno, quer dizer, era europeu,
culto e extremamente educado.
Ficou instantaneamente horrorizado com a chegada às nossas
“instalações”, naquele elevador de obra com as grades de ferro, em companhia do
crioulo descalço, com a lata de cimento na cabeça, que dividiu a chegada com ele.
Desceu do elevador, tentou tirar a poeira daquele terno
caríssimo, aceitou com européia relutância o caixote que lhe foi oferecido para
sentar, recusou avec elegance a cerveja e o café da térmica, e passamos a
discutir o evento, profissionais que éramos do show business.
Enquanto nos detínhamos nos pormenores, Ronaldo recusando a
passagem de primeira classe da Air France, explicando ao presidente da
companhia que tinha horror de avião, chega o contrarregra com a galinha
embrulhada num jornal, e faz um sinal de que tem de ser agora, porque vai
escurecer.
Imediatamente, como era um assunto da maior seriedade,
pedimos licença ao contratante:
– Monsieur, dá licença um minutinho que a gente vai até ali
o parapeito e já volta.
Miele:
– Bom, Ronaldo, casa aí as cem pratas na mão do contrarregra,
e joga a galinha.
– As cem pratas tão aqui. Mas joga você a galinha.
– Você que falou que voava. Joga a galinha, porra. Mas eu
garanto que não voa.
– Voa.
– Não voa.
A essa altura, Monsieur Halfin não suportou a curiosidade e
veio até o parapeito.
Ronaldo:
– Monsieur Halfin, há aqui uma aposta. O senhor acha que
galinha voa ou não voa?
Monsieur Halfin (já antecipando a tragédia e razoavelmente
preocupado):
– Não tenho a menor idéia, senhores. Mas acho que não voa.
– Tá vendo, Ronaldo. Joga, mas não voa.
Ronaldo:
– Não jogo. Mas voa.
Contrarregra:
– Deixa que eu jogo.
Não voava.
A galinha tentou um vôo de mais ou menos um metro para a
frente do parapeito, veio de volta para o andar de baixo, deu azar, pois a
janela estava fechada, com aquele vidro com o “x” traçado a cal.
Voar, não voou, mas deu um mergulho fatal até a marquise,
sob os aplausos dos operários, que não contavam com aquela canja inesperada. A
não ser, talvez, o contrarregra, que mentiu, porque já sabia da autonomia de
vôo da pobre galinha, e queria mesmo era comê-la.
– Falei que não voava, Ronaldo, passa as cem pratas.
E completamente alienados daquela selvageria, convidamos Monsieur
Halfin a voltar aos nossos caixotes para continuarmos nossa negociação (ele, um
tanto ofegante e pálido, reconheço).
Até o dia seguinte não tive idéia da opinião que ele possa
ter formado a nosso respeito, mas, de qualquer maneira, recebi uma passagem
para São Paulo e fui até lá para os últimos detalhes.
Na chegada ao elegante edifício da rua São Luiz, toda
diferença do primeiro encontro. O elevador exclusivo da presidência, a
recepcionista que me conduziu ao elegantíssimo escritório com a foto do Arco do
Triunfo atrás da mesa presidencial, o gentil oferecimento de champagne (por mim
recusado, já que ele também não havia aceitado o café e a cerveja).
E um novo diálogo.
Mousieur Halfin:
– Senhor Miele, o senhor tem pressa?
Miele:
– Absolutamente. Estou em São Paulo às suas ordens, só para
tratar do show do Moliére.
– Ótimo.
No interfone:
– Monique, faça, por favor, entrar o Mr. Thompson.
Entra um senhor muito mais elegante do que ele.
Mousieur Halfin:
– Senhor Miele, este é meu amigo, Mr. William Thompson,
presidente do Banco da Inglaterra. Peço que o senhor repita para ele a história
da galinha, pois, durante o nosso jantar de ontem, ele me chamou de mentiroso,
dizendo que era impossível que aquilo pudesse ter acontecido durante uma
reunião sobre o espetáculo do prêmio mais importante do teatro brasileiro.
Bem a história aconteceu, o show também, e foi um enorme
sucesso.
Creio que Joseph Halfin acreditou que aquela insanidade
fizesse parte do processo criativo dos brasileiros e levou em consideração
apenas o nosso trabalho. Tanto que eu permaneci como o mestre-de-cerimônias do
prêmio Moliére por mais de 10 anos.
Mas sem a galinha.
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