Por Luiz Carlos Miele
No auge da sua carreira, Wilson Simonal era a estrela dos
comerciais da Shell. A companhia resolveu colocar mais um aditivo na campanha e
contratou Sarah Vaughan, uma das mais famosas cantoras norte-americanas, para
fazer um show em São Paulo, ao lado do Simonal.
O show foi realizado no teatro do Tuca, e eu e Ronaldo contratados
para dirigi-lo. A cantora faria uma participação especial. Além do seu repertório,
cantaria duas músicas com ele.
Ela chegou como uma grande estrela e eu fui procurá-la no
hotel para combinar sua participação. Durante os três dias que anteciparam a gravação,
ela não me recebeu. Tudo o que eu conseguia era ligar da portaria.
Segunda-feira: – Ah, o senhor desculpe, mas hoje ela está
muito fatigada com a viagem.
Terça-feira: – Oh, infelizmente, Ms. Sarah hoje tem
cabelereiro e entrevista coletiva.
Quarta-feira: – Ah, como é o seu nome mesmo?
– Eu sou o Miele.
– Excuse me?
– Miele, como honey,
mel em inglês, mel em italiano e francês. Miele. Eu vou dirigir o show.
– OK. Ela pediu para o senhor deixar o roteiro na portaria.
Botou uma banca tremenda. Era a sua primeira visita ao
Brasil e, embora não tivesse encontrado cobras nas ruas, não levava a menor fé
na produção brasileira, nem em seus músicos e cantores.
Mandou avisar que o trio que a acompanhava devia estar na
abertura do show, com a orquestra brasileira. Deu azar. O arranjador era Erlon
Chaves, o trio que acompanhava Simonal era o Som Três, com o magnífico Cesar
Camargo Mariano no piano, Toninho na bateria e Sabá no contrabaixo.
Eu fiz o maior veneno com a turma, ficou todo mundo mordido
e resolvemos salvar a honra nacional. Chamamos músico por músico. Os melhores
quatro trombones, os melhores quatro pistons, os melhores cinco saxofones. Ficou
uma banda superstar, é claro.
Uma abertura supercomplicada foi escrita a quatro mãos pelo
César e o Erlon. Três dias de ensaio para dificultar mesmo. O primeiro encontro
com a Diva foi no palco, na própria tarde do show. Discretos cumprimentos, a
orquestra superensaiada, a gente fingindo que era o primeiro encontro, todo
mundo se apresentando etc.
Distribuídas as partes, o trio dela a postos, acontece o
milagre. Sarah Vaughan tinha trazido com ela um dos poucos bateristas
americanos que era péssimo leitor. Quando ele viu a partitura, deu um olhar de
tal maneira angustiada para o pianista que nos deixou radiantes. Além do mais,
o arranjo tinha vários andamentos, num samba rasgado, e até aquela época, os
americanos ainda não tinham pego o pulo do gato da percussão brasileira.
Tentamos duas vezes. Não deu pé. Eu, respeitosamente,
dirigi-me à nossa estrela:
– A senhora vai me desculpar, mas nós temos pouco tempo, a
gravação é logo mais à noite. É melhor nossos músicos assumirem.
E assim, o Toninho-Calça-Justa, do bairro da Casa Verde em
São Paulo, sentou-se à bateria para substituir o Albert Henck Jr., que quebrou
a cara com o nosso suingue.
Sarah Vaughan percebeu que tinha sido uma armação, mas, para
nossa surpresa, achou a maior graça e ficou supersimpática. Pediu um drinque
horrível para dar um clima ao ensaio. Conhaque com coca-cola. Só perdia para
cerveja com ginger-ale, que eu tive que mandar buscar para a Dionne Warwick
noutra ocasião.
Como não havia conseguido encontrá-la antes do ensaio, eu e
Ronaldo preparamos um quadro em que ela só tinha que dizer “Yes” e, em seguida,
“No” a cada pergunta do Simonal.
– Boa noite, Sarah Vaughan. Bem-vinda. É a sua primeira vez
no Brasil?
– Yes.
– Já conhecia aqui a rapaziada da música brasileira?
– No.
– Quer conhecer?
– Yes.
– Então, vamos lá no meu apartamento logo mais, que eu te
mostro as últimas novidades.
– No.
E assim, entre as molecagens do Simonal e as respostas dela,
foi estabelecido um divertido diálogo entre os dois. Que melhorou muito, é
claro, quando passou para o diálogo musical. Cantaram juntos três músicas, ela
dividiu os improvisos com ele, ficou muito bom.
No momento do espetáculo, ela apareceu com uma peruca
estranhíssima e o Ronaldo não perdoou:
– Está a cara da mãe do Simonal.
No dia seguinte ao espetáculo, no aeroporto de Congonhas,
ela mandou me chamar para dizer que tinha sido a melhor coisa que ela havia
feito fora dos Estados Unidos.
Daí pra frente, gravou um disco só com músicas brasileiras,
produzido pelo Aloysio de Oliveira, com arranjos do Edson Frederico.
Daí pra frente, ficou íntima da rapaziada, trocou aquele
conhaque-com-coca-cola pela caipirinha e, não faz muito tempo, foi descoberta
de alpargatas Roda, comprando chuchu e abóbora-moranga na feira de Petrópolis.
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