Por Vinicius Duarte
Fui renovar minha CNH achando que, nesses tempos de internet
e poupatempos, seria uma grande moleza. E acabei descobrindo que a profissão
mais necessária no Brasil é a de despachante. Deveria até existir um curso
profissionalizante no Senac. “Sem despachante, o Brasil não anda”, o
despachante é mais necessário que a Kombi.
Fui a um CFC (aka autoescola) para fazer o “curso” de
direção defensiva (uma prova), pois eu fui habilitado em 1983 e o Estado
descobriu agora que, durante todo esse tempo, eu fui um psicopata do volante.
Tudo bem, regras são regras. Mas o moço da autoescola disse que o “sistema”
mudou (bem na minha vez, claro) e eu teria que agendar uma “coleta biométrica”
(tocar piano eletrônico) no Detran. “É que tinha muita fraude, os caras dos
CFCs tiravam molde de silicone da mão dos candidatos e faziam a prova por
eles”. Brasil, sem limites para a falcatrua (e os burocratas vão ao delírio).
Frustrado, voltei para casa e entrei no site do Detran pra
agendar a tal coleta biométrica (e ver todos os procedimentos necessários para
a renovação). Lendo a portaria que disciplina o assunto e lembrando de muitas
desventuras nos balcões de atendimento, cheguei a algumas conclusões sobre
repartições públicas e normas em geral:
1 – Toda boa norma deve ter uma regra simples e 3 milhões de
exceções complicadíssimas; uma boa norma pública deve ser IMPOSSÍVEL de ser
representada por um fluxograma;
2 – Na parte das exceções (99.99% do texto), uma boa norma
contém, entre uma exigência e outra, dezenas de “E” e “OU”, aleatoria e
estrategicamente situadas para confundir o cidadão.
3 – Normas oferecem ao cidadão muitas opções, mas são
escritas de forma a parecerem obrigações. Com isso, o pobre contribuinte fará
inúmeras tarefas redundantes e/ou desnecessárias;
4 – O uso indiscriminado (e sorrateiro) de “DEVERÃO” e
“PODERÃO” no texto (dica do @emendesjf, obg) também surte efeito altamente
complicador na cabecinha da pessoa: se ela entender UM “deverão” como
“poderão”, o objetivo será inapelavelmente frustrado; se entender o inverso,
ela verá o diligente funcionário público, com ar de desdém, dizendo “pra que o
sr. trouxe isso, nem precisava!”, atirando ao lixo toda papelada que você
passou HORAS para conseguir;
5 – É de bom tom também usar a informática: faça o trouxa
preencher quilométricos pré-cadastros via web: isso dá um ar de modernidade ao
serviço público. IMPORTANTE: ENCHA o formulário de “códigos CAPTCHA” (um em
cada bloco – quanto mais ilegíveis, mais seguros-), e deixe o coitado ir
preenchendo cada bloco de dados SEM CORRIGIR os erros no final daquele bloco;
quando ele chegar ao final do formulário, aponte TODOS os erros de uma vez,
direcionando-o para o primeiro bloco e fazendo-o digitar NOVAMENTE todos os
códigos captcha (mesmo que o erro esteja no último bloco).
6 – O “protocolo do pré-cadastro” deverá sempre ser
impresso, para garantia. E o “número” de protocolo deverá ter, no mínimo, 36
caracteres hexadecimais e aleatórios (usar, por exemplo, o número do RG+data é
coisa pra amadores e não dá “segurança” ao sistema).
6 – Claro que, quando o infeliz encostar a barriga no
balcão, o servidor dará a ele OUTRO cadastro idêntico, só que de papel (pra
ficar “documentado no processo”).
7 – Agendamento via web é a bolsa Louis Vuitton do serviço
público: toda repartição chique deve ter. Mas o bravo servidor não precisa se
preocupar em cumprir o horário marcado (afinal há muito serviço e pouca gente
pra fazê-lo). E é CLARO que o contribuinte não pode atrasar UM minuto sequer,
pois será punido com a necessidade de “reagendar” um novo horário (que sempre
terá uma “carência” de vários dias ÚTEIS para ser novamente efetuado);
8 – Exigem sempre mais documentos que o necessário; o que
abunda, não prejudica. E “evita fraudes”.
9 – O bom servidor público sempre usará seu “poder
discricionário” para interpretar a norma como bem lhe aprouver (geralmente,
para negar o atendimento). Não raro, existem 384 interpretações diversas sobre
um mesmo tema, e o sucesso depende do cidadão ter a sorte de ser atendido por
um funcionário que concorde com ele na interpretação da portaria.
10 – Painéis eletrônicos e papeletas de senha são a
coqueluche do momento na administração pública: o importante é deixar o
dispensador de papeletas no local mais improvável possível. Deve também ser
criado um tipo de senha para cada sub-sub-tipo de serviço (a probabilidade do
caboclo pegar a senha errada aumenta consideravelmente). Também é legal colocar
um painel para cada tipo de senha, pois aí o infeliz fica olhando no painel
errado e a vez dele nunca chega. Quando ele vai reclamar da demora, o servidor
só diz “o sr. é que não prestou atenção, já chamaram seu número faz tempo!”
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