Por Luiz Carlos Miele
Elis Regina foi a única artista com cujo talento eu não me
acostumei. Mesmo no último dia do show que fizemos durante nove meses nos
teatros do Rio e São Paulo, eu me surpreendia emocionado, na coxia, enquanto
esperava a minha vez de voltar ao palco.
Meu entusiasmo chegou ao limite numa entrevista que dei ao
jornal O Globo. Quando a repórter perguntou quais eram as três maiores cantoras
do Brasil, eu respondi: “Elis Regina”. A garota do jornal achou que eu não
havia entendido, mas eu confirmei:
– Entendi sim. Acho que a Elis é a primeira, a segunda e a
terceira maior cantora do Brasil.
Essa declaração me deu a maior dor de cabeça, pois eu
dirigia outros espetáculos, nos quais participavam outras excelentes cantoras.
Mas acho que elas também concordavam, pois nenhuma reclamou.
Na segunda vez que Elis foi para o Olympia de Paris, eu fui
também, para gravar para a TV Record um programa especial sobre ela. Na sua
primeira apresentação, Elis fazia apenas três números, entre um domador de
ursos e um grupo de ciganos enganadores.
As programações do Olympia seguiam o mesmo padrão, 30
minutos de “variedades” – urso, Elis, cigano etc –, 30 minutos do que eles
chamam etoile américaine, uma hora de
um grande cartaz francês: Aznavour, Becaud etc…
Na primeira vez da Elis, a estrela principal era Zizi Jean
Maire. Na sua segunda participação, ela já era a tal américaine. Eram 30 minutos muito bem cuidados, com o quinteto
liderado pelo Menescal e a orquestra francesa conduzida pelo Erlon Chaves.
Alguns dias antes da estréia, Elis foi convidada a
participar de um programa que apresentaria três atrações: Barbra Streisand,
Charles Aznavour e ela. Cheguei com a notícia de que a gravadora já havia
providenciado o intérprete e, para minha surpresa, ela ficou admirada:
– Ué, Miele, intérprete pra que? Já passei duas semanas aqui
no ano passado, e já cheguei há quase um mês. Será que eu sou alguma idiota que
não aprendeu a falar francês?
E foi e fez a entrevista de dez minutos. Sem sotaque, é
claro.
O Olympia sempre foi uma sala de espetáculos populares. Em
Paris, existe a Salle Playel, que exibe apenas espetáculos de música clássica
ou então um popular extremamente sofisticado.
Paralelamente à temporada da Elis, apresentava Art Blakey,
baterista extraordinário, líder do Jazz Messengers. Tinha chegado da África,
onde ficou muito tempo pesquisando os ritmos da parentada. Voltou cheio de
idéias, mas achou que faltava alguma coisa para dominar todos os ritmos.
E essa alguma coisa estava nas mãos e, principalmente, nos
pés de Wilson das Neves, que era o baterista da Elis. O pulo do gato, a
diferença do samba entre os bateristas brasileiros e americanos, está no uso do
bumbo e do contratempo do pé esquerdo. E foi isso que o Art Blakey foi checar,
lá no Olympia.
Seu show começava mais cedo. Ele chegou e nem quis ficar na
platéia. Ficou lá na coxia, mesmo, para ver de lado a performance do Das Neves.
Depois do show, fomos jantar, e ele, que tinha ido apenas para ouvir a batida
do samba, ouviu a Elis.
– Essa menina que canta com vocês é muito boa. Acho que ela
é uma das dez maiores cantoras brancas do mundo.
Como todos os músicos americanos, ele também fazia essa
distinção:
– Barbra Streisand, Peggy Lee são grandes cantoras, mas são
“brancas”, Carmen McRae você sabe que é negra na primeira nota.
Ele voltou na noite seguinte, daí sentou na platéia, viu o
show todo. Depois comentou comigo:
– Lembra do que eu falei sobre o fato da menina ser uma das
dez melhores cantoras brancas do mundo? Diga a ela que negra também.
Negros e brancos estavam em guerra feia naquele momento nos
Estados Unidos, com a movimentação do temível e violento grupo dos Panteras Negras.
Enquanto isso, em Paris…
Fazia parte do show, no Olympia, um grupo de balé americano.
O arranjo de orquestra, bem como a regência, era de Cy Oliver, que já havia
feito dois álbuns com Frank Sinatra. Achando que faltava alguma coisa no
número, ele ligou para os Estados Unidos, pedindo um trio vocal feminino.
Chegaram dois dias depois, três mulheres negras e lindas. Uma delas, ex-esposa
de Sammy Davies Jr. Não se conheciam. Encontraram-se pela primeira vez ali no
ensaio, receberam as partituras e saíram fazendo um vocal maravilhoso. No ato.
Então, partimos para o segundo ato. Todos os participantes
do espetáculo hospedavam-se no Hotel Pasquier. Tipo pensão, com a dona dando
injeção na gente etc. Bruno Kokariks, dono do teatro, queria que a Elis ficasse
no Plaza Athenée, mas ela não queria se afastar do grupo, e ficamos todos
juntos.
Na noite seguinte, alguns da nossa turma saíram com as
garotas do tal trio vocal. Elas não tinham os cabelos black power dos panteras, mas usavam as perucas que identificavam o
movimento.
Na França, porém, acho que houve uma pausa político-racial,
e parte do nosso grupo se deu muito bem. Na manhã seguinte, no café da manhã, o
resultado. As três moças apareceram bem machucadas. Um lábio cortado, um olho
roxo etc.
“Poxa (pensei eu), foi corpo a corpo mesmo”, mas não era
nada disso. Indignado com a confraternização, o coreógrafo responsável pelas
americanas aplicou o que chamamos aqui de “corretivo”.
Ficou um clima péssimo, e eu fui encarregado de conversar
com ele, mentir um pouco sobre a falta de preconceito racial no Brasil, mostrar
que o nosso grupo era formado de branco e negros.
Ele não quis conversar no começo e marcou comigo um encontro
num daqueles bares com o leão-de-chácara abrindo a janelinha da porta, ouvindo
o nome de quem me esperava e liberando a minha entrada no salão onde eu era o
único branco. Africanos, argelinos, americanos. E, no fundo da sala, ele
esperando por mim.
Não foi um papo muito confortável, mas, no fim, ele topou
uma trégua. Mas sem a autorização para que a nossa turma voltasse a mexer nas
perucas das moças. A gente não mexia nas perucas delas e elas não mexiam nas
nossas…
Bom, deixa pra lá. De qualquer maneira, foi bom ele ter
concordado. Pois era um cara enorme. No tamanho e no talento. Cantava e dançava
à frente do grupo. Chamava-se Lester Wilson. Fiquei seu fã, e depois, ao
assistir ao filme Os Embalos de Sábado à
Noite, li nos créditos finais que ele foi o coreógrafo dos números do
Travolta.
E mais tarde, outro filme, com a prova definitiva de seu
talento. Quando ele montou os números musicais de Whoopi Goldberg, aquele show
com as freiras em Mudanças de Hábitos.
Mas estávamos em Paris também para trabalhar e gravei lá um
programa de trabalho. A equipe de gravação se resumia a Miele e um operador de
câmera. Sem iluminação ou iluminador, o som direto na câmera, tínhamos que
aproveitar a luz do dia para as cenas externas: Elis na Torre Eiffel, Elis no
Louvre, Elis no Sena. E gravar às escondidas do sindicato francês no Olympia.
Monsieur Kokariks entrou no jeitinho brasileiro e gravamos
um número por noite, com a câmera no meio do público. Mas era apenas um
documentário. Preparamos um roteiro com textos gravados. Era uma grande viagem
da Elis, em todos os sentidos. Ficou muito bonito, a TV Record exibiu num bom
horário, mas a fita se perdeu num daqueles incêndios da emissora.
Elis, Miele & Bôscoli realizaram bons trabalhos juntos.
O mais importante de todos, na TV Globo, Elis
Especial. Ganhamos vários prêmios com esse programa. E Elis, sem saber,
participou diretamente da minha entrada em cena.
Durante uma festa, creio que na casa de Olivia Hime, ela
estava brincando ao piano com Luizinho Eça. De repente, como acontece quando
dois grandes talentos se encontram, aconteceu um daqueles grandes momentos.
Elis cantando Minha,
uma canção maravilhosa de Francis Hime e Ruy Guerra, Luiz Eça no piano de
cauda. Como num filme, a festa foi ficando em câmera lenta, as pessoas foram se
aproximando encantadas. Quando ela terminou, aplausos quase religiosos.
Eu, na sala ao lado, sem ter percebido o que acontecia,
conto uma piada para a Wanda Sá, que ri muito alto, eu também começo a rir. E
alguém reclama e grita:
– Pô, que chato, Miele, está atrapalhando. Se você quer
aparecer, vem logo contar essa história aqui.
E eu, completamente irresponsável, fui. Cheguei perto da
nossa maior cantora e disse:
– Elis, senta aí um pouquinho que eu vou contar uma
historinha pra rapaziada.
Era um sacrilégio. Alguns pensaram: “O Miele enlouqueceu de
vez.” O Luizinho ia sair correndo do piano, mas eu o segurei:
– Guenta aí, Luizinho que eu preciso que você me ajude no
som de um maestro alemão.
Enquanto o pessoal resolvia se me arrancava dali à força ou
me entregava o Oscar de idiota do ano, a própria Elis resolveu a questão. Em
lugar de ficar indignada como deveria, sentou no chão e ordenou:
– Péra aí, turma. Vamos ouvir o Miele. Vai ver, é engraçado
mesmo.
E riu, e aplaudiu, e me salvou.
No dia seguinte, quando eu e Ronaldo pensávamos em quem
iríamos convidar para fazer o show ao lado da Tuca, cantora com muito talento,
também como comediante, Ronaldo olhou para mim e disse:
– Quer saber de uma coisa. Não vamos chamar ninguém, não.
Você faz aquelas bobagens que fez ontem na festa, bolamos outras tantas e
pronto: Com vocês, pela primeira vez no palco, Luiz Carlos Miele.
Colocamos um título que ficou feliz: Uma noite perdida com Tuca & Miele. Foi um sucesso.
Marta Alencar, atual senhora e na época namorada de Hugo
Carvana, escreveu uma coluna para o jornal Última Hora e, de pura molecagem,
comentou que eu deveria ser candidato ao prêmio de melhor ator do ano.
Sergio Bittencourt, que tinha uma coluna no jornal O Globo,
ficou indignado, e respondeu: “Pode ser que Miele, que estreou agora, esteja
até se divertindo no show, ao lado da Tuca, mas chamar o Miele de ator é no
mínimo um desrespeito com Ítalo Rossi, por exemplo.”
Não era. Era só uma brincadeira da Martinha, mas as duas
notas provocaram a curiosidade de muita gente que foi ao show para conferir, e
o espetáculo teve uma carreira bem interessante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário