Por Luiz Carlos Miele
Em 1950, eu cheguei aos estúdios da TV Tupi de São Paulo, no
Sumaré. Usava calças curtas e vinha da rádio Excelsior de São Paulo, onde havia
terminado uma série de programas escritos por Mario Donato intitulados Meu filho, meu orgulho.
O programa contava a história de grandes figuras da vida
brasileira, como Carlos Gomes, Santos Dumont etc. Eu era o filho, ou seja, o
orgulho quando criança, e estava muito contente com aquela estréia no rádio,
que me assegurava o apelido de “Luiz artista” no time infantil do glorioso
Esporte Clube Rubens Sales, na Vila Clementino.
Mas minha mãe, que era cantora e rádio-atriz, Regina Macedo,
recebeu um convite da rádio Tupi e me incluiu no pacote. Assim, eu estava
jogando bola no quintal da emissora, ao lado de três garotos prodígio daquela
época: Walter Avancini, que saiu daquelas peladas para se transformar no mais
temido diretor da TV brasileira pela esquerda (festiva) e Régis Cardoso, de
tantos sucessos com as novelas da Globo (ele dirigiu a nossa primeira novela em
cores), na lateral direita.
Mas nós, naquele tempo, estávamos mesmo em preto e branco,
tanto que o centroavante era o Erlon Chaves, no futuro um tremendo maestro e
arranjador, preso, anos depois, exatamente por ser negro. Ele fez um enorme
sucesso num dos festivais da canção com a música Eu quero mocotó, que o Jorge Ben (que ainda não era Benjor)
escreveu para ele.
Em meio às apresentações, uma loura lindíssima deu-lhe um
beijo na boca, o que indignou várias senhoras brancas e mal-humoradas, e também
a senhora de uma alta patente de nossas forças armadas. A tal senhora achou um
absurdo a loura beijando um negão daqueles no horário nobre. Isso valeu ao
Erlon uma inesperada visita durante os ensaios do programa de Flávio
Cavalcanti, na TV Tupi do Rio de Janeiro.
Quando Erlon ia começar o ensaio com a orquestra, um dos
rapazes preocupados com nossa ordem política e social gritou “um instante,
maestro”, enfiou um saco na cabeça do próprio, jogou-o no banco de trás da
viatura e o levou para alguns dias de férias num daqueles simpáticos quartéis
da zona norte do Rio de Janeiro. Depois de alguns dias, Flávio Cavalcanti descobriu
o paradeiro do maestro e conseguiu soltá-lo.
A prisão não adiantou nada, pois, algum tempo depois, outra
loura maravilhosa apaixonou-se perdidamente por ele. Erlon já se foi, a loura
transformou-se numa das maiores estrelas da nossa TV e cinema, e continua a
brilhar até hoje em nossas telas.
Viram só? Em menos de uma página, passei de uma TV Tupi para
outra, com 25 anos de diferença. Como não havia videoteipe naquele tempo, nós
ainda não sabíamos editar muito bem as “imagens que continuam povoando nossa
imaginação”, como diria o autor de uma novela de segunda.
Corta novamente para a pelada da Tupi do Sumaré, no
intervalo de um programa chamado Clube do
Canguru Mirim, quando, de repente, interrompendo nosso recreio, a televisão
chega ao Brasil.
Conforme Hebe Camargo pode confirmar, pois estava presente,
Assis Chateaubriand comemorou o evento quebrando uma garrafa de champanhe numa
das duas câmeras presentes. Quebrou a garrafa e a câmera, inaugurando assim, na
verdade, a esculhambação.
Bendita esculhambação, que formou toda uma geração de
profissionais. Sem nenhuma escola, foram obrigados a descobrir uma linguagem
própria e, começando pela Tupi, criaram uma espécie de tupi-guarani na TV
universal. Programas e programas de índio, a TV brasileira colocou-se em
diversas oportunidades entre as melhores do mundo. Mas que o começo foi
divertido, ah, isso foi. Corte ou fusão para TV Continental (Rio).
Teledrama Três Leões apresenta Orfeu do carnaval, direção de David Conde. No final, Eurídice
Maximira Figueiredo morre. Sonoplastia sobe música de Tom e Vinicius: “Mulher
amada, martírio meu. É madrugada, sereno dos teus olhos já correu.” Eurídice
devia estar completamente morta, como convém aos que morrem. Mas não. Na queda
da nossa heroína, parte das suas lindas coxas ficou à mostra. E, enquanto a
câmera avançava para o final emocionante, Eurídice, morta, mas preocupada com a
censura da época, ajeitou a saia para cobrir aquele pingo de erotismo.
No teledrama seguinte, tivemos o cuidado de encerrar o
programa com um cadáver que usasse calças compridas, e o escolhido foi
Francisco Negrão, grande praça, grande amigo, ótimo ator e péssimo dentista.
Pois não é que, no final da apresentação, depois de permanecer o mais morto
possível, no momento em que entraram os créditos de encerramento, o cadáver
simplesmente se levantou, limpando a poeira da roupa e perguntando: “Então,
como é que eu fui?” Foi para onde todo mundo o mandou, é claro.
Novo corte para o canal 5 de São Paulo.
TV Paulista apresenta Hit
Parade, direção de Leonardo de Castro. A música colocada em terceiro lugar
é Babalu, na interpretação de Johnny
Mathis. É claro que não havia grana para os cachês internacionais, a Ângela
Maria estava em Portugal, o negócio era alguém dublar a música. Eu fui o
escolhido. Escolhido e maquiado de mulato, vestido com aquelas blusas com as
mangas bufantes. Cubano, pero no mucho.
Como eu conhecia tudo de Mr. Mathis, foi mole. E eu lá:
“Babalu, babalu ayé”. No fim daquela maravilhosa interpretação, alguém me puxa
pelo braço e me enfia numa Kombi:
– Vai direto pro Pacaembu, que faltou um locutor a
comercial.
O jogo era Brasil e Argentina, estréia do Pelé na seleção.
Assim que eu chego na cabine, me avisaram:
– Ô garoto, cada vez que a bola sair pela linha de fundo,
você lê o seu texto.
E eu lá, maquiado de mulato, vestido de rumbeiro e dizendo:
“Pneus Goodyear, triple temperado 3T”. Mas a torcida, que já me viu – a cabine
é pertinho do público – não perdoa: “fala, veado”.
De volta aos estúdios. Na noite seguinte, foi a vez da
apresentação de um drama de guerra, que mostrava a campanha brasileira na
Itália. Numa das cenas de batalha, eu, que fazia uma pequena participação como
ator, tive de matar um nazista. O rifle falhou na hora, quer dizer, eu mirei
certinho, mas o tiro, cujo ruído deveria vir de fora de cena, não pintou. O
jeito foi improvisar:
– Meu capitão, o inimigo foi abatido. A coronhadas, mas foi.
Foi melhor do que aconteceu em outra série, quando, depois
de falharem faca e revólver, um dos atores deu um pontapé no bandido, que
brilhantemente retrucou enquanto desabava no chão: “Maldito, tu me mataste com
tua bota envenenada.”
Também no programa da guerra, os pracinhas deixavam a cidade
da Itália depois de uma vitória na cena final. Os heróis principais acenavam para
o povo a bordo de um jipe. Um sargento, meu amigo, garantiu que emprestava um,
mas só podia chegar na TV depois do primeiro ato. A guerra terminando, e nada
do jipe chegar, todo mundo nervoso: “Como é que é, Miele, cadê a porra do
jipe?”
Faltando cinco minutos para a cena final, a porra do jipe
não chegou mesmo. Eu saí correndo na rua, parei um táxi, que entrou no estúdio
e levou para casa os bravos pracinhas que agitavam no táxi a nossa bandeira.
Bandeira 2, é claro. Alguns anos depois, quando voltamos da guerra, chegamos ao
Rio de Janeiro.
TV Continental apresenta Os
Dez Mandamentos, direção de Antonino Seabra, produção de Gilberto Bréa (tio
da Sandra). Realmente, Cecil B. de Mille ficaria besta. A cena era a abertura
do mar vermelho. A TV Continental tinha uma piscina no meio do estúdio. Ela
ficava vazia e era onde deviam cair os filisteus (acho que eram filisteus). O
efeito do mar se abrindo era conseguido através de uma rudimentar superposição
de imagens. Mas o Gilberto desconfiou que alguns dos tais filisteus iam ficar
com medo do tombo e, depois de vestir-se de Moisés, muniu-se de um imenso
cajado feito de cabo de vassoura.
Não deu outra. Na hora em que o mar se abriu, alguns dos
figurantes, que deveriam ser tragados para o fundo, se agarram na beira da
piscina. Ou seja: se agarraram na água do mar. Insatisfeito com aquele
“milagre”, o Gilberto ia passando e dando uma cajada nas mãos dos infiéis, que,
finalmente, desabavam aos gritos para o vazio.
Dos dez mandamentos, acharam melhor desistir a partir do
primeiro. Entrou mais um filme do Jim das Selvas, que substituía todo programa
que saía do ar. A gente tinha duas opções: Johnny Weismuller ou os desenhos do
Pica-pau.
O que não deixava de ser melhor do que alguns vexames da
atual programação da tarde em nossa televisão.
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