Por Luiz Carlos Miele
Depois de uma temporada de grande sucesso do espetáculo Gemini V, que tinha no elenco Leny
Andrade, Pery Ribeiro e o Bossa 3 (Luiz Carlos Vinhas, Otávio Baylli e Rony
Mesquita), o Porão 73, casa noturna onde se realizava o show, foi comprado pelo
Alberico Campana, ex-proprietário de duas casas no imortal Beco das Garrafas, o
Little Club e o Bottle’s.
Mudou o nome do Porão para Le Bilboquet. Poderia também facilmente
ter o nome mudado para O Boquete, pois o som da Bossa Nova foi substituído pelo
alarido de alegres e descontraídas senhoritas da noite carioca, que encontraram
ali um espaço para continuar a exercer a mais antiga profissão.
Mas era apenas uma solução temporária, pois na verdade o
Alberico queria mesmo era vender a loja para levantar dinheiro e inaugurar uma
nova casa de shows, ao lado da dupla Miele & Bôscoli, que sonhava com isso
há muito tempo.
Por alguma razão, a jogada das meninas não funcionou muito
bem. Não era falta de competência delas, fizemos vários testes vocacionais para
comprovar as aptidões das candidatas, mas não funcionou.
Foi preciso então criar uma nova motivação, para provocar o
interesse de possível futuros candidatos à compra do imóvel. Inventamos então
um show intitulado Nous. Queria dizer
“nós” em francês, é claro, mas deixava também uma lembrança da casa anterior,
ou seja, “Todo mundo nu”.
O elenco era, digamos, bastante heterogêneo: Luiz Carlos
Miele, Darlene Glória, Luizinho Eça e Luiz Carlos Vinhas. Conseguimos dois
pianos de apartamentos, daqueles bem baixos, de maneira que os dois pianistas
ficavam um de frente para o outro, com uma interessante diferença de estilos. O
Vinhas com seu suingue alucinado, e o Eça com a categoria clássica de quem
estudou com os mestres de Viena. Baixo, bateria e tumbadora completavam a
banda.
Como solistas (solistas?!), Miele e Darlene. Eu contando
algumas piadas e fazendo algumas imitações, e a Darlene com uma blusa de metal
que deixava os dois seios de fora (na verdade o grande sucesso do show),
dizendo uns textos loucos do Ronaldo, que contavam mais ou menos a sua vida.
Tipo: “Eu sou a Emília de Monteiro Lobato que desde criança já cheirava mato.”
Apesar da incontestável qualidade musical e literária do
espetáculo, não conseguíamos nos livrar da imagem anterior da casa e o público,
além de reduzido, era de pouca qualidade, tanto intelectual quanto financeira,
ou melhor dizendo, “pé de chinelo”.
Até que uma noite, Samuel Wainer, dono do Última Hora, apareceu por lá, levando um
grupo de amigos. Adorou o show, mandou fazer uma reportagem de primeira página
(no Segundo Caderno, é claro), elegendo show e boate como o novo programa
“underground chic” do Rio de Janeiro. Sugeriu delicadamente a seus colunistas
que prestigiassem o evento, e da noite para o dia, ou melhor, da noite para a
noite, a casa lotou.
Mas algumas noites antes do nosso ingresso na agenda
elegante da noite carioca, fomos visitados por um cliente peculiar.
Era um dos tipos mais fortes que eu já havia visto, tipo
aqueles armários das lutas internacionais de vale-tudo. Quer dizer, um
adversário impossível, a menos que seu sobrenome seja Gracie.
O segurança da casa havia sido chamado de urgência por seus
colegas de viatura para atender a um chamado religioso numa das nossas
paróquias, e o tal armário entrou na casa, em companhia de um jogador de
futebol, de pouca técnica em campo, mas um negrão do tipo “também somos seres
humanos”.
Bom, o gigante estava de bermuda, sapato e meias, o que,
somado à camisa aberta no peito, mais as correntes de ouro, e um anel com a
imagem de um touro, formava um quadro assustador. Mas o pior é que assustador
mesmo é o que ele queria ser. E cada piada que eu contava, ele fazia um
comentário simpático, tipo: “Porra, Miele, essa merda eu já conheço, não tem
nada mais engraçado não?”
Quando a Darlene entrou, com os seios de fora, ele levantou
da cadeira e anunciou para a distinta platéia suas intenções para com a estrela
do show, durante o resto da noite. Criou-se um clima horrível entre palco e
plateia, e eu, que àquela altura estava completamente desmoralizado, me
preparei para morrer.
Eu fazia um número com um banquinho enfiando na cabeça,
imitando um capacete de astronauta, que eu interpretava em câmara lenta. Brigar
com ele simplesmente era completamente impossível. Os dois Luízes, Vinhas e
Eça, responderam aos meus olhares indagadores com o tradicional: “Me inclua
fora dessa”. O percussionista, chamado Laudir, que depois foi tocar com o Chicago,
me deu uma esperança bem fraquinha:
– Miele, no final desse número, você dá com o banquinho no
nariz dele. Tem que ser no seu nariz mesmo, que quebra, dói paca, e atordoa por
alguns segundos. Daí a gente embola com ele, e quem sabe, com sorte, dá para
não morrer no bolo.
Preparei-me portanto para esperar a ajuda da providência
divina, quando surgiu uma providência (com todo o respeito) muito melhor, ou
seja, Mariel Mariscot.
Do palco, eu vi a figura salvadora adentrar o gramado, em
companhia de um colega de profissão chamado Tigrão. Vinham cansados, depois de
um exaustivo dia de trabalho, o que deve ter custado caro à saúde de alguém.
Mariel nessa época namorava a Darlene, e os dois viviam uma
grande paixão. Mariel foi sendo informado pelos garçons do que estava
acontecendo e, no último acorde do último número, “chegou junto” no gigante:
– Escuta aqui, companheiro, você está perturbando todo
mundo. Qual é a sua, afinal?
Bem, o gigante não deu a menor bola para o retrospecto fatal
do Mariel e respondeu:
– A minha, Mariel, é que eu estou a fim dessa loura.
E o Mariel:
– Mas ela já está a fim de mim. Como é que vai ficar?
Aquele clima dos saloons
dos filmes americanos. A essa altura, eu já estou providencialmente seguro por
três garçons maravilhosos que me impedem de resolver logo aquela parada. Pois
assim que eu vi o Mariel, fiquei muito motivado para a luta.
E, então, quase profissionalmente, eles resolvem se vão
brigar ali dentro mesmo, ou no beco atrás da boate. O Mariel argumenta que não
tem mais tempo para ficar brigando (ainda mais com alguém daquele tamanho,
imagino) e sugere partirem logo para os finalmentes, o que no caso dele era mesmo
uma solução final.
Em face da nova proposta, o gigante alega que está
desprevenido, pelo menos para o momento. Não tem problema, responde o Mariel. E
gentilmente sugere:
– Tigrão, vê uma arma para o rapaz.
E eu, os garçons e a turma do show (o público todo saiu
voando) presenciamos a incrível cena da “45” sendo empurrada por cima da mesa
da direção do gigante.
Ele pensou duas, três, quatro, cinco vezes. Numa delas, por
ser do ramo, deve ter pensado, como eu pensei depois: “Será que está
carregada?”
Terminou tudo por ali. Não em pizza, mas no delicioso caldo
verde da Lindaura, no Beco da Fome. De qualquer maneira, a temporada do show
continuou com sucesso, a casa foi vendida “na alta” e partimos para novas “Reinações
de Miele & Bôscoli”.
Começamos a preparar a inauguração da tão sonhada casa de
espetáculos. Com dois andares, palco e bar no térreo, e o restaurante no andar
de cima. Estamos pensando no nome da casa, cada um dando uma sugestão, quando
chega da Europa o Nelsinho Motta. Traz um livro que joga em cima da mesa e diz:
– Oi, rapaziada. Olha aí o nome da casa de vocês.
Talento que foi descoberto por acaso, quando, nos seus
primeiros dias de vida, foi colocada numa bacia, para o banho. Encheu d’água no
ato. Tinha um problema no reto que a medicina da época não conseguiu resolver.
Como aquilo não tinha cura, Pujol fez do seu defeito uma habilidade e preparou
um show sem precedentes.
Apagava velas a distância, conforme mostravam as fotos do
livro, fazia vários sons com seu próprio instrumento, agora instrumento de
trabalho mesmo. Como grand finale de
seu espetáculo “tocava” a Marselhesa.
Como, na época, era impossível divulgar esse tipo de
performance, Pujol ficou ignorado fora dos limites do Moulin Rouge, até que,
numa atitude tão patriótica quanto o encerramento de show, seu filho fez uma
petição ao governo francês, reclamando que seu pai fora um artista único e merecia
reconhecimento. Com o mesmo espírito de patriotismo, a França, que ao contrário
do Brasil (segundo eles), é um país sério, editou o livro.
Claro que o Ronaldo comprou a idéia na hora, mas o Alberico
temeu um pouquinho pelo sucesso do batismo:
– Mas vocês acham que alguém vem comer num restaurante que
tem o nome de peidador?
Combinamos, então, que as fotos do artista ficariam só no
andar de baixo, no bar e local do show. O restaurante ficaria bem comportado. E
assim foi feito.
Alberico foi buscar um chef
português que o Juscelino Kubitschek trouxe de Portugal e depois levou para
Paris, para cozinhar durante os dez dias em que o nosso presidente lá
permaneceu.
Como todo mundo sabe, a qualidade da cozinha francesa é
muito suspeita, e assim nada mais natural do que levar na comitiva um
cozinheiro, não se justificando, portanto, a grita da imprensa nesse episódio.
De qualquer maneira, Manoel Cerdeira, o chef em questão, perdeu essa boca, e foi trabalhar no restaurante
Monte Carlo, de onde passou para o Pujol.
Garantida a cozinha, partimos para o show, e fizemos alguns
shows bem divertidos. No início, eu fazia um número contando a história do
personagem que deu o título à casa. Sem usar os mesmos recursos, pois jamais
consegui dominar a técnica.
Músicos formidáveis passaram por lá, fiz meu primeiro show
com a Sandra Bréa, depois de um show com a Valéria, em que, pela primeira vez
no Brasil, um travesti era tratado sem as piadas de costumes, cantando um
repertório sofisticado, eu de smoking fazendo uns duetos com ela.
Depois, Elke Maravilha me disse que eu tinha de conhecer um
grupo chamado Dzi Croquetes, que fazia um show num cabaré da Lapa. Mas não fiz
imediatamente contato com eles. Algum tempo depois, chamei Lennie Dale, um
artista realmente extraordinário, para fazemos um show juntos.
Ele me convenceu de que tínhamos que fazer algo novo, e me
disse que agora estava coreografando e liderando um grupo revolucionário.
Novamente a citação dos Croquetes.
Marcamos um encontro para que ficasse conhecendo o grupo. No
dia e hora marcados, eu chego ao Pujol, o Lennie está sentado triste nos
degraus da porta de entrada. E me diz com aquele sotaque:
– Meu amor, genti non apariceu. Nenhum deles. Non si podie
confiar nesses bichas. Vamos faz show nós mesmos.
Fiquei decepcionado, é claro, mas quando o Lennie abriu a
porta da boate, o sonoplasta soltou um play-back
e aqueles loucos maravilhosos estavam pendurados pelos lustres, deitados na
escada, espalhados pelo palco, completamente vestidos (ou despidos) e
maquiados.
O impacto que o Lennie sabia que causaria funcionou
perfeitamente comigo, e marcamos a estréia naquele momento mesmo.
Foi uma temporada extraordinária. Liza Minelli viu o show e
se apaixonou por eles, foi madrinha do grupo em Paris, onde eles fizeram grande
sucesso. Não lembro de todos eles, mas o Wagner era a “tia” do grupo, do qual,
depois, Cyro Barcelos, Paulette e Cláudio Tovar partiram para brilhantes
carreiras e deixaram o Monsieur Pujol marcada como uma opção diferente na noite
carioca.
Lembro da Alcione como crooner
e com ódio da gente, que exigia que, além de cantar, ela tocasse pistom, como
se não bastasse o talento da cantora. (A noite era uma beleza. Flag, Number One
e o 706, onde os cantores que se revezavam das 10 da noite às 5 da manhã eram
“apenas” Emílio Santiago, Joana e Djavan.)
Vários artistas internacionais começaram a frequentar a
casa. Uma noite, Dionne Warwick se apresentava no Copacabana Palace e seu
empresário era o Marcos Lázaro, que era também nosso representante, assim como
da Elis, do Simonal, do Roberto etc. Portanto, foi na nossa casa que Dionne
veio jantar depois do seu show.
Fui buscá-la no Copa; ela, elegantérrima e simpática, não se
negou a cantar no bar e tal. No dia seguinte, o Marcos ligou e me disse que ela
tinha adorado, queria voltar, mas fazia questão de que eu fosse buscá-la.
Opa... Lá fui eu para o Copacabana Palace, não sem antes avisar uma galera
abonada: “Vão para lá que a Dionne vai cantar.”
Chego no Copa, recuso com elegância o convite para um
drinque depois do show, quero mesmo é voltar com ela correndo para o meu bar.
Chegamos, eu fazendo o latin mais lover possível, até que ela pega o
microfone e canta Alfie. Olhos nos
olhos etc. Grande sucesso, é claro.
Madrugada, as pessoas vão indo embora, ficamos eu e ela, o
bar vazio, grande e clima. Mas eu, infelizmente, numa das minhas piores
performances, havia exagerado no alpiste, como diz o Billy Blanco, e fico
totalmente fora de combate.
Ela, uma fera (soube depois, é claro), ajuda o meu porteiro
a me colocar num táxi, recusa o auxílio do mesmo porteiro e sai para tomar um
táxi sozinha. Na direção da praia do Leblon, às cinco horas da manhã. Sozinha e
a pé. Imagino com qual impressão ela ficou do Machus brasiliense. Durante muitos anos, nunca mais a vi.
Tempos depois, eu como diretor de eventos do Metropolitan do
Rio, fui recebê-la antes do show que ela iria apresentar lá. Elegantemente, ela
optou por não me reconhecer. Umas noites são memoráveis, outras para a gente
esquecer.
E outras surpreendentes. Numa delas, eu estava aproveitando
o jantar da “diretoria”, como é chamado o que os cozinheiros fazem para a
brigada da casa. No tempo em que a noite ia até a manhã seguinte, a casa tinha
que servir dois jantares para a rapaziada, um às sete da noite, quando se
prepara a abertura, e outro no fim do expediente. Mas a violência encurtou a
noite.
Nossos shows começavam a uma e meia da manhã. Bons tempos.
Hoje, você não pode fazer nada depois das onze, pois ninguém mais quer ficar na
madrugada. Bem, o tal jantar da madrugada é quase sempre trivial, mas reserva
boas surpresas, como um mocotó, uma rabada etc. Pratos que não fazem parte do
cardápio. Muitas vezes, alguns fregueses descobriram e ligavam pedindo para
reservar para depois do show. Mas isso também era antigamente.
Bem, estou lá com meu caldo de mocotó, quando liga, para meu
espanto, o Marcel Marceau, o maior mímico do mundo, que está fazendo uma
temporada no Teatro Municipal. Ele era amigo do Luiz de Lima, ator brasileiro,
e ficou intrigadíssimo quando viu no jornal o anúncio do Monsieur Pujol.
Comentou com o Luiz que essa história era pouco conhecida mesmo na França e
resolveu fazer uma reserva para o jantar.
É claro que foi recebido com todas as honras. Mandei na
tarde seguinte um serviço para o camarim dele, ele mandou de volta o convite
para um camarote. Voltou ao bar na noite seguinte. Na tarde seguinte mandei
para ele umas abotoaduras feitas pelo genial Caio Mourão, com aquele diploma
com lacre etc.
Gentilezas de lado a lado, o Ronaldo diz que eu e o Marceau
já estamos quase namorando, mas eu estou escaldado com aquela história da
Dionne Warwick e mantenho tudo no campo da arte. Ele reserva, então, vinte
lugares para um jantar de encerramento de sua temporada.
Então, eu e Ronaldo preparamos uma festa. Leny Andrade e
Pedrinho Mattar, as estrelas do mês, Simonal, Ivan Lins e Elis Regina (senhora
Ronaldo Bôscoli, na ocasião). Esse elenco formidável improvisa duplas, o
público que está ali, pagando por uma noite normal, delira. O nosso convidado
especial também.
Caipirinha e champagne, quando misturadas, tem estranhos
resultados. Marcel Marceau é informada de que eventualmente estou no palco e me
convida para fazer um número com ele em cima do piano, para desespero de seu
agente, que não quer vê-lo trabalhando de graça.
Mas eu também estou no embalo, e sem o menor pudor de
colocar a serviço do meu número a mímica mais famosa e cara do mundo, improviso
um discurso no qual coloco as minhas mãos para trás, e o Marcel (já estou
íntimo) faz de suas mãos as minhas.
Mas eu tinha combinado que iria fazer o discurso em
português, e assim, como ele não entendia o que eu ia dizendo, tinha que
confiar nas minhas reflexões, no meu tom de voz, para fazer o enamorado, o
triste, o alegre, o encolerizado etc.
Eu comecei direitinho, mas, para ter um resultado ainda mais
divertido, fui mudando a interpretação para confundi-lo. Assim, eu dizia
“aquela filha da puta” com a maior doçura. E “meu amor” aos berros. Ficou
hilário, é claro.
A tribo da noite acaba sabendo o que está acontecendo em
cada casa, e às duas da manhã não cabia mais ninguém. Mandei trancar a porta.
Mas o segurança vem me avisar que o senhor Mário Priolli está lá fora com cinco
crioulo, gringos.
Mais do que dono do Canecão, o Mário é meu irmão e eu vou
até a porta para buscá-lo. Dos cinco crioulos, quatro deles são os músicos, e o
quinto, o líder do grupo: Stevie Wonder. Antes de qualquer coisa, ele me diz
que está muito louco:
– I must sing, man.
E assim, eu feliz, vou ao microfone e anuncio.
– Sras. E Srs., depois de Leny Andrade, Pedrinho Mattar,
Wilson Simonal, Ivan Lins, Elis Regina e Marcel Marceau, o Pujol tem o prazer
de apresentar Stevieeeeeeeeee Wonder.
E ele ataca
For once in my life. Depois eu
soube que aquela noite ele estava supersimpático, mas é muito temperamental, e
de volta para os Estados Unidos, brigou com o Ray Clarles. Romperam
definitivamente a amizade. Não podiam nem se ver.
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