Por Ivan Lessa
E outra coisa boa de estar há anos
fora de casa é que a memória vira seletiva. Quer dizer: a gente – eu vou lá e
pego a parte que me interessa. Permitam-me utilizar símile carnavalesco para
ilustrar o fenômeno.
Imaginemos que a vida de cada um
de nós é um pedaço de serpentina. Tem uma tira de tantos metros, cor-de-rosa,
que corresponde aos nossos sete primeiros anos. Outra de alguns centímetros,
amarela, que corresponde aos últimos quatro anos. E outra de tal tamanho e
outra de tal cor e assim por diante. Tudo espalhado no meio do chão, do salão.
Rolo por rolo da serpentina, um após o outro, embrulhadinho e ainda dentro da
embalagem, esse é nossa vida completa, esse é aquele que aparece – e apenas aos
outros – quando morremos e acabamos.
Mas enquanto se participa dos
folguedos de viver, como um grande baile carnavalesco, com todos os seus altos
e baixos, a gente – eu de novo – dou uma espiada, vejo jogado no chão o pedaço
de serpentina de minha preferência, apanho, examino, guardo um pouco, ou jogo
de volta para o meio da confusão.
Então aí, no Brasil, os pandeiros
já foram esquentados, as pastoras encaminham-se para a Avenida, os bilhetes se
esgotaram, as fantasias prontas, o zunzum no ar, talvez até mesmo um folião
nostálgico, feito eu, antigão, tenha conseguido um lança-perfume ilegal e,
infelizmente, em vez de jogar nas pernas das morenas, taca no lenço, cheira e
cai pra trás.
Como vêem, como ouvem, mal eu
comecei a me preparar para empregar minha “memória seletiva”, catar o pedaço de
serpentina que me despertou a atenção, e já me vejo a meio caminho andado,
subido, das escadas do Municipal, diante da patuléia delirante ante minha
fantasia de Catedral – de Winchester? – Submersa.
Olha a primeira serpentina.
Eu de legionário – aquele azul e
branco, e não o cáqui – na Praça do Lido, em Copacabana, louco para entrar na
parte do salão reservada aos marmanjos e não à petizada. Marmanjo era aquele
cara com 16 anos.
Eu ainda de legionário, mesmas
cores, no baile – sempre de tarde – do Botafogo, pulando com uma linda havaiana
que me deu seu nome e endereço: Gilda, Rua Voluntários da Pátria, aos domingos
ia sempre ao cine Star. Nunca mais a vi. Até hoje não posso ouvir aquele samba
da porta-bandeira: “O meu lugar foi a Gilda que ocupou.”
Eu de pirata estilizado entrando
no meu primeiro baile à noite. Ex-Cassino Atlântico. ABBR em 1950, mas sempre o
Baile do Cassino Atlântico. Carreguei no buço para aparentar mais idade. Do
contrário não entrava. Se não me engano, reforcei as olheiras. Sei lá por que,
achei que olheira era coisa de gente de mais de 18 anos. Pirata estilizado era
assim: calça de smoking emprestada do pai, camisa de cetim feita pela mãe de
meu melhor amigo, um único brinco na orelha, lenço de cetim vermelho – ou não?
– na testa.
Os piratas se separavam no salão e
ia cada um para um lado tentar ver que havaiana, baiana, pescadora, ou cigana
lhe caía do alto de alguma popa no colo – ou, para ser mais preciso, lhe caía
nas costas. O que a gente queria mesmo era uma garota sentada com os coxões em
torno de nosso pescoço, o casal com os braços erguidos, suor, risos e
fotografia no Cruzeiro da semana seguinte.
Eu me lembro de beber meia cerveja
pelo gargalo, derramar o resto em minha própria cabeça, peruar aqui e ali, o
tempo todo fazendo cara de quem está exausto e não aguenta mais, ficar bem
perto da orquestra pra sentir nas vísceras as vibrações enlouquecedoras e
depois voltar para onde estava o amigo – ou amigos –, e então mentir que “foi
um lourão que deu umas puladinhas com a gente – comigo! – e depois desapareceu
na multidão!”.
E depois... e depois... e
depois...
Depois tanta coisa que eu, como
então, me digo exausto de abaixar e catar serpentina feito um gari. Me abaixo
para apanhar o jornal do dia. Lá está: eleições suplementares em Greenwich,
vitória de quem?, dívida externa, moratória parcial. Um carnaval. E eu nem mais
preciso reforçar o buço ou fazer olheiras.
Nesse ponto, folião de raça,
continuo pirata estilizado. Só que não mais da areia de Copacabana, mas dos
tijolinhos vermelhos de Londres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário