Por Ismael Benigno
Dona Jordana gemeu aqui, entre os
pratos do jantar e a privada do banheiro do corredor. Suada, às vezes tonta,
mas sempre muito cansada. Se queixou da vida, mas com aquela humildade pobre de
quem ainda assim agradece pela vida.
Dona Jordana faz faxina aqui em
casa uma vez por semana. Tem 59 anos, o que a impede de ter o passe livre no
ônibus. Tem 59 anos, mas vários netos, todos meio filhos, porque mãe de filhos
ocupados demais. Me contava, na sexta passada, sobre os exames que precisa
fazer. É diabética grave, do tipo que precisa medir glicose sempre, e perdeu
metade da pouca graça da vida que tinha por causa da dieta rigorosa e das
crises que a derrubam.
Já me peguei enciumado pelos
exames da Dona Jordana. Por que justo no dia da minha faxina? Por que tantos
exames? Eu sei, eu sou ruim.
E entendi, só muito depois, que as
pessoas não escolhem o que sentem. Nem como vão rastejar à espera do fim. Elas
simplesmente sobrevivem, enquanto eu me queixo de uma privada que eu podia
limpar.
Não sei a quantas anda o governo.
Já ouvi algumas coisas, boas e ruins, e não sei o que é real. Porque as classes
médias são os irmãos do meio, meio esquecidos, meio ignorados, entre os mais
velhos privilegiados cronologicamente e os mais novos favorecidos pela
fragilidade. A gente fica meio alheio a tudo, ocupado demais com inveja dos
ricos e o desprezo aos pobres.
Dona Jordana andou me contando
umas coisas. Uma delas é a tal “fila do exame”. O governador interino,
passageiro, tampão ou seja que nome tenha, teve a ideia de copiar outra ideia,
do prefeito de SP, de zerar a fila de exames da rede pública estadual.
Não sei o que pensar,
sinceramente. Porque me parece heterodoxo demais, pelo menos no caso
paulistano, essa coisa de ir misturando empresas com governo até o ponto de não
saber mais quem é paciente e quem é cliente.
Mas uma coisa eu aprendi. Dona
Jordana, de 59 anos, está conseguindo fazer exames que não conseguia. Pior,
ligam pra ela na minha casa, para confirmar datas e horas. E a informação é de
que a coisa realmente está andando.
A gente, classe média, tem certos
pesos que nos impedem de enxergar obviedades como o sofrimento alheio. Não
sabemos se nos queixamos do irmão mais novo, paparicado, ou do mais velho,
cheio de títulos herdados. Mas nos queixamos, até que Dona Jordana consiga
fazer seus exames, não sem desconfiar de que tem algo errado acontecendo.
Afinal, pobre não recebe ligação do governo em casa se não for cobrança.
Pois bem, Dona Jordana, 59 anos,
diabética, cheia de filhos e netos para criar com as diárias que faz, agora
anda falando do governo, sem saber – e sabendo só um pouco menos do que eu –
quem mandou, quem autorizou, quem errou para que ela fosse atendida.
Não ligo mais, numa boa, para
política. Muito menos a local. Porque não tinha acesso à vida da Dona Jordana,
que faz faxina todos os dias, pega netos – a pé – na escola, come restos do
almoço alheio e chora, copiosamente, pelos dramas de famílias que não são a
sua. Dona Jordana já me emprestou dinheiro. Dona Jordana já cuidou do meu
filho. Dona Jordana já passou mal na minha casa. Fez amizade comigo, com minha
cadela, com a minha vida.
E eu nunca fiz nada para isso. Mas
queria fazer o registro, seja lá sobre quem for, de que gostei de saber que o
atendimento público às pessoas melhorou, sem câmera de vídeo, sem ensaio, sem
cenografia e sem texto decorado. Dona Jordana não é figurante. É protagonista
da vida de dezenas de pessoas, mesmo tão cansada, mesmo tão doente. É de carne,
osso e diabetes.
E eu queria muito dizer que é
muito, muito bom saber que pode haver governo sem demagogia, transição sem
ócio, poder sem arrogância, atendimento sem festa. Pelo que soube, essa
transição dura até início de agosto, quando as sumidades de sempre vão disputar
os votos das pessoas que, de uma forma ou de outra, nessa entressafra de
salvadores da pátria, estão sendo atendidas. Finalmente. Vai acabar, mas eu
gostaria de registrar. Ou exatamente porque vai acabar, é importante registrar.
Dona Jordana está fazendo os
exames. Espero que tenha a medicação, os sorrisos que merece, os remédios de
que precisa. Espero que tenha forças para enfrentar o destino que lhe cabe, e
que o poder público pelo menos a deixe sofrer pelo que ela precisa sofrer:
filhos, netos, preocupações e pratos para lavar. Cabe ao governo de um estado
tão injusto e historicamente ausente pelo menos o favor de não atrapalhar uma
vida que já é suficientemente complicada.
Pois bem. O tal governo interino
decidiu não atrapalhar e, fazendo não mais do que sua obrigação, passou a
surpreender as Donas Jordanas prestando serviços essenciais que, agora, parecem
ser fáceis de conseguir. Eu sei que não são e não sei como foram conseguidos.
Mas, numa boa, para a dona Jordana isso não importa agora.
Ainda é cedo e talvez ao mesmo
tempo já seja tarde, para discutir se vale mais um político profissional ou um
gestor. Ou, nesse caso, se vale mais um suposto estadista eleito por
unanimidade ou um tampão cujo nome metade do povo desconhece.
Aprendi mais essa. A Dona Jordana
ainda não sabe a quem agradecer. E o fato é que ela não deve agradecer, todos
sabemos.
Mas que ela quer agradecer, isso
ela quer.
Porque veja só, suprema ironia, o
povo queria apenas ser atendido.
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