Por Luiz Carlos Miele
Numa das alegres noites da Fiorentina, eu e Ronaldo
estávamos dividindo um horroroso filé de baleia, prato mais barato da casa,
quando o garçom anuncia: “Telefonema para o Bôscoli. É a dona Maysa de São
Paulo.” Encrenca na certa. Ronaldo vai atender e volta com a notícia de que
Maysa ia para a Europa no dia seguinte, sonhou que o avião ia cair e queria
vê-lo pela última vez.
Como muitas das nossas estrelas, Maysa foi apaixonada pelo
Ronaldo. A turma o chamava de sabonete Lever: “Nove entre dez estrelas usam
Ronaldo Bôscoli.”
Noivo da Nara Leão, paixão da Maysa, marido da Elis, Ronaldo
foi o maior conquistador que conheci. Uma tarde, na redação da Última Hora,
Nelson Rodrigues mostrou mais uma vez a vida como ela é, sentenciou:
– Ronaldo Bôscoli, você é a última vamp do Brasil.
Durante muito tempo fiquei sem saber de onde vinha seu
grande poder de sedução e sua técnica infalível, até que um dia ele me
confessou:
– Miele, eu já passei por um período de grande neurose,
fiquei internado numa clínica durante dois anos, fui liberado da clínica, mas
não das neuroses, e fiquei mais um ano trancado em casa, sem passar da porta da
rua. Durante esse período, fiquei acumulando as informações que sobravam das
conversas da minha irmã Lila com sua amiga mais íntima, que era Danuza Leão.
Duas mulheres avançadíssimas para a sua época. Aliás, para
qualquer época. Modernas, independentes e cheias de bom humor, vestiram-se uma
vez de mendigar e foram pedir esmolas na frente do Copacabana Palace, onde
receberam algumas moedas de várias figuras da sociedade carioca, que não as
reconheceram, e com quem as duas provavelmente tomaram um drinque nessa mesma
noite.
Lila casou-se com Vinicius de Moraes, Danuza com Samuel
Weiner, o que prova o bom gosto e o know-how delas sobre os homens. Elas
falavam muito de como conquistavam ou eram conquistadas, e o Ronaldo ali, só
ouvindo e registrando os macetes que depois iria usar na formação de seu futuro
elenco, ou harém.
– Miele, quando eu botei o nariz para fora da porta, não foi
só o nariz, não. Quando encontrei a primeira mulher, disse a ela tudo que ela
queria ouvir. Sucesso total, graças à minha irmã e à Danuza, que ainda não
havia escrito Na sala com Danuza, mas
me deu todas as dicas para eu iniciar a minha fase de “Na cama com Ronaldo”.
Ele estava me contando essas vantagens e tentando me
convencer a ir com ele para São Paulo para o tal encontro com a Maysa. Contou
que explicou para ela que eram duas horas da madrugada, que estava sem dinheiro
e que o banco só abria às 9 horas da manhã, que ele teria que passar no banco
antes de ir para o aeroporto – afirmações, aliás, que não tinham a menor
importância, pois não tinha um tostão de saldo e tinha pavor de avião.
Maysa sugeriu então que ele tomasse um táxi no Rio de
Janeiro, ela emprestava o dinheiro para ele em São Paulo, depois ele devolvia
etc.
Temendo pelo pior, tentei argumentar que tinha uma gravação
no dia seguinte, mas não houve jeito:
– Miele, você não vai me largar sozinho nessa. Você é meu irmão,
pombas. Vai ser legal. Vamos nessa.
E fomos. Pra quê?
Foi o início de “As loucas aventuras de Miele &
Bôscoli”.
Contratamos a viagem com um táxi que estava na porta da
Fiorentina. Quando falamos da ida a São Paulo, ele pediu 20 minutos e foi trocar
de carro:
– Os senhores me aguardem que eu vou buscar o carro do meu
irmão, que é zerinho.
Zero era também o que tínhamos no bolso, ou quase. Sobraram
umas 10 pratas depois do tal bife de baleia, mas o Ronaldo garantiu a história
da Maysa. No meio da viagem, aquela parada para café e banheiro, gastamos uns
seis cruzeiros. Ficamos com quatro pratas. O preço da corrida do táxi era de 20
mil cruzeiros, atenção para o suspense.
Na chegada a São Paulo a crônica da tragédia anunciada tem
início. Na Rua Boa Vista, centro da cidade, fura o pneu do táxi, e o motorista
sugere:
– Bom, os senhores me pagam aqui mesmo, e tomam outro táxi,
que já estamos no centro da cidade, eu vou me virar para trocar o pneu, que o
estepe também não está legal.
Ronaldo pede para ele esperar um momento, desce apavorado,
liga para Maysa e fica mais apavorado ainda, quando a empregada avisa que “dona
Maysa não está, não senhor, saiu bem cedinho. Acho até que ela já viajou”.
Eu ligo para minha casa, minha família toda foi para Santos.
Lembro de um borracheiro que ficava perto da casa de uma tia minha, que eu não
via desde os 14 anos de idade. Mentimos para o motorista que resolvemos voltar
com ele para o Rio, pagando mais cinco mil. Para ele é lucro, pois não vai
voltar vazio.
Deixamos o táxi estacionado e levamos o pneu em outro táxi,
para o qual também não tínhamos dinheiro.
Quando entro na casa da minha tia, ela grita de susto, até
que eu consigo me identificar:
– Poxa, tia, sou eu, o Luiz Carlos, filho do Dino.
Quando consigo convencê-la, tomo um dinheiro dela, o que a
faz ter certeza, afinal, de que sou o mesmo garoto. Com parte da grana,
mandamos o motorista almoçar e nos apanhar de volta mais tarde, depois de
consertar os pneus etc.
Novos telefonemas, nada da Maysa, vamos à luta. No meio da
rua, continua o absurdo. Um rapaz me pára e pergunta:
– O senhor sabe dar laço em gravata? É que eu tenho que
tirar uma foto para os documentos.
Dou o laço firme, braço forte e vamos até a RCA, quem sabe a
Maysa não passa lá na gravadora. Não passou. Mas encontramos Caetano Zama,
compositor e diretor da RCA, que nos empresta uma grana para voltarmos de
ônibus para o Rio. A essa altura, o motorista, que voltou à casa da minha tia,
sacou que tinha levado uma volta, em vez de voltarmos com ele.
Saímos da gravadora, no botequim do andar térreo, paramos
para uma caipirinha, que ninguém é de ferro, o dia continua Fellini puro. O
português, dono do bar, apostou com um empregado que ele não comia uma travessa
com duas dúzias de ovos cozidos. Eu e Ronaldo chegamos na altura do sétimo ovo.
O crioulo, já meio verde, prosseguia numa estranha
estratégia bolada por ele. Pegava o ovo, mergulhava no azeite, colocava na
boca, engolia inteiro, tomava um gole de água tônica. Outro ovo, azeite, água
tônica. Quando ele vai começar a segunda travessa, nós já bebemos as
caipirinhas e as passagens, e ficamos a perigo novamente. Lembro da minha
passagem pela TV paulista e vamos até lá.
Chegamos pouco antes do início de um programa da Hebe, Maiôs na passarela. Alguém reconhece
Ronaldo como o compositor de O barquinho
e Lobo bobo e, graças ao sucesso do
início da Bossa Nova, somos convidados para o programa.
Ao redor da piscina no estúdio, aqueles copos que fingem um
uísque, mas eu suborno um contrarregra, meu velho conhecido, e nossos copos vêm
com um aditivo bastante interessante. Já completamente no embalo, deixamos a
Hebe completamente enlouquecida com a revelação inédita, de que o verdadeiro
autor daquela batida da Bossa Nova era Silvio Caldas, que ensinou tudo para o
João Gilberto.
Hebe então inaugurou a famosa frase “que gracinha” e não fez
mais nenhuma pergunta para aquela dupla no bar do lado. Novos telefonemas para
a casa de Maysa. Mas ela já tinha ido viver sua vida com outro bem. Era tudo
uma vingança de algum mau momento que tinha passado com Ronaldo. E embarcou
para a Europa rindo um bocado, segundo nos confirmou anos depois.
Mas fomos salvos por outra cantora maravilhosa. A Marisa
Gata Mansa nos emprestou o suficiente para duas passagens de ônibus.
Finalmente, já esquecidos do táxi, que passou a tarde com a polícia na casa da
minha tia, tomamos o ônibus de volta. Lugares, só naquele último banco de cinco
pessoas. No meio, eu, Ronaldo e um japonês.
Os solavancos e o Ronaldo querendo botar pra fora a angústia
surrealista daquele dia, assim como as caipirinhas, é claro. Escolhe o japonês,
encosta no ombro dele e deixa cair. Explicou depois que tinha que ser assim,
encostado e devagarinho:
– Se não quica no ônibus todo.
Eu acordo com o mau cheiro e saltamos apavorados em Austin,
antes da chegada no Rio de Janeiro, deixando o japonês acordando todo premiado
e já cheio de moscas. Eu querendo matar o Ronaldo. Corajosamente tomamos novo
táxi, mas aí já deu tempo para passar na Manchete e apanhar o pagamento.
Quando finalmente vamos chegando ao apartamento do Ronaldo,
o motorista do táxi Rio-São Paulo está na porta do prédio, onde havíamos
passado antes da partida para apanhar umas camisas. Nem lembrávamos que duas
valises nossas estavam no porta-malas. Calmamente, Ronaldo exclama: “Deixa
comigo.”
E começa a esculhambar o motorista, como é que ele nos deixa
em São Paulo sem as nossas roupas, então ele não tinha entendido que era para
nos apanhar na Rua Boa Vista, em lugar da casa da minha tia, como é que ele
cometia uma irresponsabilidade daquela, e que o dinheiro dele estava ali (lá se
foi o pagamento da Manchete).
Como se fosse possível, o português (ah, bom!) engoliu toda
aquela cascata, pediu desculpa e durante várias noites, enquanto beliscávamos
nossa baleia, perguntava: “Então, ô rapazes, quando é que vamos a São Paulo
novamente?”
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