Por Isabelle Barros
Durante décadas, as músicas que fizeram a alegria do
Carnaval passaram longe do que se convencionou chamar de politicamente correto.
Foliões de todo o Brasil já cantaram com todas as forças músicas com letras que
se tornaram desconfortáveis à luz dos direitos conquistados por mulheres,
negros e do segmento LGBT. No Rio de Janeiro, no período pré-carnavalesco deste
ano, blocos já se tornaram foco de bate-boca por cantarem músicas como Maria Sapatão, Teu cabelo não nega ou Cabeleira
do Zezé. Mesmo no frevo, há canções caracterizadas por apresentarem um
conteúdo que parece incompatível com a militância social observada nos dias de
hoje. Mas boicotar esse tipo de música é a solução ou é inútil, dada a
longevidade dessas canções?
Para o premiado compositor J. Michiles, autor de sucessos
como Diabo louro, é o povo quem tem
de escolher. “Eu sempre digo o seguinte: é difícil fazer o fácil, ou seja, uma
música que se ouve pela primeira vez e já se sai cantarolando. Quanto ao tema,
cada um tem seu gosto. Essa coisa de temas mais engraçados e de duplo sentido é
mais vista em marchinhas cariocas, apesar de existirem frevos com essa
característica. Eu não gosto de compor canções assim porque esse tipo de música
geralmente passa logo. Se você refinar mais sua composição, ela dura mais na
mente das pessoas. Um compositor que não frequenta o Mercado de São José, os
becos, as calçadas, as festas de Olinda, não pode fazer música. Eu simplesmente
sinto essa emoção e retribuo”.
O médico, ator e compositor Reinaldo de Oliveira, por sua
vez, afirma que o carnaval atual precisa ter uma palavra que já se tornou
clichê quando se fala do período momesco: irreverência. Assim como J. Michiles,
Reinaldo identifica motivos simples e fatos cotidianos como grande fonte de
inspiração, tanto dos frevos quanto das marchinhas cariocas que fizeram tanto sucesso
em carnavais passados. “O duplo sentido cabe sim hoje em dia, mas a poesia
ainda tem o seu lugar. As músicas eram
inocentes, não eram ofensivas. Dou o exemplo com uma marcha de Jorge Veiga: A
história da maçã / é pura fantasia / maçã igual àquela / o papai também comia /
eu li num almanaque / que um dia de manhã / Adão tava com fome / e comeu a tal
maçã / comeu com casca e tudo / não deixou nem a semente / depois botou a culpa
/ na pobre da serpente. Este duplo sentido é francamente aceito e foi muito
cantado".
Há 50 carnavais, Reinaldo, junto com Gildo Branco, também
deram sua contribuição às marchinhas politicamente incorretas, ao compor a
música Ela sabe. A letra era uma
resposta ao sucesso Cala a boca, menino,
de Capiba, lançada em 1966. Os dois primeiros versos já traziam palavras
polêmicas: o homem tem que dar todo dia na mulher / para ela ficar do jeitinho
que ele quer. “Fizemos a música em duas partes e, na segunda, havia a resposta
feminina com o Duo Aymoré, senão eu ia apanhar das mulheres”, lembra o ator e
compositor. “Havia uma marcha em um ano e, no carnaval seguinte, havia uma
resposta. Assim, as pessoas se entendiam sem se desentender. Éramos todos
amigos, havia essa procura por um bom sentido das músicas”, completa.
O jornalista e historiador Leonardo Dantas Silva, por sua
vez, contemporiza a questão afirmando que as músicas tidas como politicamente
incorretas foram produzidas a partir da dinâmica social do passado. “Isso
relembra uma época específica e não vejo motivo para tanto cerceamento. Nem nos
anos de chumbo se via isso. Infelizmente, querem que o Brasil tenha esse ranço
e censure tudo. Acho essa uma falta de criatividade da atual geração, pois
nunca mais se viu um compositor popular encher a boca de todo o país. Os
sucessos do Carnaval ainda são canções compostas nos anos 30 e uma forma de
medir essa aceitação eram as paródias criadas”.
Leonardo exemplifica as composições de duplo sentido
voltadas para o Carnaval com criações dos Irmãos Valença. “Eles eram craques
nisso. Fizeram músicas como Quem furou
sua cuíca, referência a uma moça que foi pular carnaval e perdeu a
virgindade. Outra deles tinha o verso Vou
pedir a papai para casar com você, referência a uma vizinha de ambos. Era
uma maneira de dizer, de forma cifrada, que ela estava grávida”. Segundo o
pesquisador, as diferenças entre as marchinhas e o frevo, por exemplo, têm mais
a ver com a antiga posição de centralidade política do Rio de Janeiro, um dia
capital do país. “Havia uma tendência para fazerem marchinhas e paródias de
figuras políticas, como Washington Luiz”.
O pesquisador musical Renato Phaelante, por sua vez, chama à
reflexão sobre o teor das músicas carnavalescas de forma mais equilibrada.
“Cantar músicas como essa é uma faca de dois gumes. As opiniões sobre o certo e
o errado sempre vão existir na humanidade, mas no Carnaval tudo aflora. Acho
muito difícil uma censura a esse tipo de música funcionar, embora haja
componentes nelas impossíveis de se aceitar hoje em dia. Como historiador e
como pesquisador, acho importante elas serem tratadas como algo de seu tempo. O
frevo também tinha o mesmo processo. Nelson Ferreira, por exemplo, era um
repórter do cotidiano”.
O fator mobilizador das canções lançadas para o período
momesco, segundo Phaelante, é importante para entender o quanto elas
conseguiram atravessar gerações, mas o pesquisador aponta que também é preciso
abrir espaço para uma visão mais contemporânea a respeito dessas composições. “A
música é uma forma de opinar sobre a política e o social e o Carnaval é época
das sátiras, de despertar o humor. Se a música faz parte da história da MPB,
por que omitir? Disseram que Rui Barbosa mandou rasgar documentos da
escravatura e isso foi prejudicial para a história. Acho que a música, em si, é
um documento, e pode vir a interferir na sociedade em seu tempo. Era uma coisa
natural do começo ou de meados do século 20. O que não faz sentido é compor,
nos dias de hoje, uma música naqueles mesmos moldes, porque estamos em um tempo
no qual os preconceitos estão sendo derrubados”.
MULATA E MARIA SAPATÃO?
O carnaval parecia ser o último refúgio para palavras como “mulata”
ou “sapatão”, que ainda sobrevivem nas marchinhas mas passaram a ser malvistas
no resto do ano. A primeira, por ter uma conotação racista e de objetificação
da mulher. A segunda, por depreciar a orientação sexual das homossexuais
femininas. Os compositores, ao menos de marchinhas cariocas ou de samba,
passaram a levar essa questão em conta na hora de criar, mas este ainda não é
um ponto pacífico para quem tem o auge de suas atividades no período momesco.
No Rio de Janeiro, a escola de samba Porto da Pedra, que vai
desfilar no sábado de Carnaval no Grupo de Acesso, vai homenagear as antigas
marchinhas de carnaval – até mesmo as mais polêmicas – este ano. “Carnaval é
brincadeira e deboche, as pessoas estão ficando muito chatas”, afirmou ao jornal
O Globo O carnavalesco Jaime Cezário. O desfile deste ano, com o samba-enredo Ó abre alas que as marchinhas vão passar.
Porto da Pedra é quem vai ganhar…seu coração, terá alas como as da Maria
Sapatão, no qual mulheres de jaqueta de general, botina e saia nas cores do
arco-íris. Já a música O teu cabelo não
nega, composta pelos Irmãos Valença e levemente modificada por Lamartine
Babo, vai ganhar um carro alegórico só para ela.
Até a cantora Ivete Sangalo entrou em uma brincadeira
proposta pelo humorista Marcelo Adnet, em um programa de TV, relacionada às
marchinhas de carnaval. Músicas famosas como Cabeleira do Zezé receberam um “raio empoderador”, ou seja, foram
parodiadas para atenderem a critérios mais humanistas. A letra original (“será
que ele é?”) virou “ele pode ser o que ele quiser”. O grupo É o Tchan e a
cantora Fafá de Belém também foram convidados a cantar versos como “Esse é o
som do século 21/não tem duplo sentido e nem assédio algum/eu tô falando do axé
politicamente correto/que não trata mulher como objeto”.
A discussão sobre o limite para a brincadeira nas composições
de Carnaval chegou não apenas às marchinhas ou ao samba-enredo, mas também foi
abraçada pelas rodas de samba. O compositor carioca Fernando Procópio compôs a
canção Eu vos declaro, e parte dela
tem os seguintes versos: “Eu vos declaro marido e marido / Eu vos declaro
marido e mulher / Hoje a união tem um novo sentido, tudo é permitido, casa quem
quiser / O filho da mãe não é filho do pai / tem dois pais, duas mães / quem é
quem ninguém diz / Olha, eu aprendi com a vida / Família bonita é família
feliz”.
Já o compositor carioca Thiago Vasconcelos criou a Marchinha do fim das marchinhas. O tema
é justamente a mudança da percepção dos foliões sobre o significado das antigas
músicas carnavalescas: “Mamãe, eu não quero mais nada / devolveram o coração do
jacaré / As águas que iam rolar secaram / e até cortaram a cabeleira do Zezé /
Pedi desculpas à mulata / E dos carecas elas não vão gostar / Marchinha com
hoje em dia não combina”.
AXÉ
Na Bahia, existe uma lei estadual, sancionada em 2012,
conhecida como Lei Antibaixaria. O texto prevê fiscalização, com circulação
pelos blocos a desfilarem no Carnaval e multa de R$ 10 mil para gestores
públicos estaduais que contratarem artistas com letras ofensivas às mulheres.
Outro alvo de polêmica foi um dos maiores sucessos da axé music, Fricote, dos baianos Luiz Caldas e
Paulinho Camafeu, lançada em 1985 contendo os versos “Nega do cabelo duro / que
não gosta de pentear”. O teor da música, apontado por movimentos sociais como
racista, chegou até a ser alvo de protesto em festas em Salvador.
O Viver também selecionou algumas canções com letras
consideradas, atualmente, como politicamente incorretas. Veja:
ELA SABE – Gildo Branco/Reinaldo de Oliveira/Irmãs Aimoré, em
resposta a Cala a boca menino)
O homem tem que dar todo
dia na mulher
pra ela ficar do jeitinho que ele quer
Ele pode nem saber porque está dando
mas ela sabe porque está apanhando
Sou obrigada a lhe censurar
pois a mulher foi feita pra se amar
fale quem quiser
eu não faço alarde
mas o homem que bate na mulher
é um covarde
QUEBRA CANELA (1931) – Música de Nelson Ferreira e letra de
Samuel Campelo
Se tu não quebra mulata
Na tua venta que é chata
dou tanto rela
que estira como embuá
Dou-te um tapa, mulata
Na venta chata
Que mais se achata
E até se encaixa
Como bolacha
Dentro da lata
Mulata quebra a canela
Se não eu te dou mais nela
Se não me dás esse enlevo
Na tua venta me atrevo
Dou tanto nela
Que espicha como socó
Faço-te um alto relevo
Na venta chôcha
Mulata frouxa
E te escrevo
Com tinta roxa
Mesmo no frevo
Mulata quebra a canela
Se não eu te dou mais nela
NEGA MALUCA – Linda Batista
Tava jogando sinuca
Uma nêga maluca me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo que o filho era meu
Não, senhor!
Toma que o filho é seu
Não, senhor!
Guarde que Deus lhe deu
Não, senhor!
Toma que o filho é seu
Não, senhor!
Guarde que Deus lhe deu
Há tanta gente no mundo
Mas meu azar é profundo
Veja você, meu irmão
A bomba estourou na minha mão
Tudo acontece comigo
Eu que nem sou do amor
Até parece castigo
Ou então influência da cor
DÁ NELA – Ary Barroso
Esta mulher
Há muito tempo me provoca
Dá nela! Dá nela!
É perigosa
Fala mais que pata choca
Dá nela! Dá nela!
Fala, língua de trapo
Pois da tua boca
Eu não escapo
Agora deu para falar abertamente
Dá nela! Dá nela!
É intrigante
Tem veneno e mata a gente
Dá nela! Dá nela!
O TEU CABELO NÃO NEGA – Irmãos Valença/Lamartine Babo
O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
Tens um sabor bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata mulatinha meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor
Quem te inventou meu pancadão
Teve uma consagração
A lua te invejando faz careta
Porque mulata tu não és deste planeta
Quando meu bem vieste à terra
Portugal declarou guerra
A concorrência então foi colossal
Vasco da Gama contra o batalhão naval
A reportagem foi publicada originalmente na Superedição do
Diario de Pernambuco dos dias 11 e 12 de fevereiro do ano passado
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