Augusto Nunes
Durante a crise de maio de 1968, Charles de Gaulle mostrou
que o presidente da República, aos 78 anos, continuava tão lúcido, destemido e
coerente quanto o general que comandara a luta pela libertação da França na
Segunda Guerra Mundial.
Confrontado com o que começou como rebelião estudantil e se
transformou em insurreição de dimensões nacionais depois da adesão dos
sindicatos, entendeu a mensagem remetida das barricadas em Paris.
Se os jovens combatentes exigiam mudanças radicais no país e
num regime político moldados por De Gaulle, estava claro que o inimigo
principal e imediato era ele.
O chefe de Estado poderia ter tentado vencer os rebeldes
pelo cansaço.
Também poderia ter dividido responsabilidades com o
primeiro-ministro George Pompidou, chefe de governo.
Em vez disso, preferiu apanhar sozinho a luta atirada pelos
líderes do movimento e amparar-se na arrogância formidável.
“A França sou eu, a República sou eu”, reiterou em 30 de
maio, quando anunciou a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de
eleições gerais.
No dia seguinte, cantando a Marselhesa, 1 milhão de
partidários do presidente se juntaram à passeata que parou Paris, liderada pelo
escritor André Malraux, herói da resistência à ocupação nazista e ministro da
Cultura.
Vitorioso na eleição de 23 de junho, De Gaulle encerrou
democraticamente a rebelião de 1968.
Mais uma vez, mostrou que, sobretudo quando o horizonte está
nublado, estadistas devem pensar nos interesses do país e nas próximas
gerações.
Passados 45 anos, os pais-da-pátria que infestam a República
brasileira confirmam a lição fazendo o contrário do que fez Charles de Gaulle.
Governantes de quinta categoria só conseguem pensar nos
próprios interesses e na próxima eleição, reitera a reação dos sacerdotes do
lulopetismo à onda de manifestações de protesto que começaram em 6 de junho.
A revolta da rua escancarou o abismo que separa o Brasil
Maravilha inventado por Lula e aperfeiçoado por Dilma do Brasil real onde vive
a gente comum.
Lá, tudo anda tão bem que, se melhorar, estraga. Aqui, o que
se vê é a corrupção impune, a Copa da Ladroagem, a educação e a saúde em
frangalhos, a litania das promessas jamais cumpridas, o cinismo exasperante dos
políticos ─ a procissão de afrontas parece fila em posto de saúde.
O país que presta perdeu a paciência de vez.
Cansou-se de ser tratado como um viveiro de imbecis
resignados.
E reduziu a farrapos a fantasia tecida desde janeiro de
2003.
Tanto o ex-presidente que não desencarna quanto a sucessora
que nunca exerceu de fato a chefia do governo já entenderam que estão muito mal
no retrato redesenhado pelas multidões inconformadas com a duração da farsa.
Em queda livre nas pesquisas de popularidade, Dilma foi
vaiada na abertura da Copa das Confederações e não apareceu na final no
Maracanã para escapar da reprise constrangedora.
No encontro de prefeitos em Brasília, a plateia vaiou a
convidada ausente na sessão de abertura e vaiou a governante que resolveu dar
as caras no dia seguinte.
Lula emudeceu e saiu de circulação no primeiro minuto da
primeira passeata.
Só recuperou a voz para contar lorotas na África.
Ambos sabem que estão na origem das manifestações.
Mas fingem que não.
As imagens da revolta em curso neste inverno brasileiro são
mais perturbadoras, muito mais agressivas e menos românticas que as produzidas
na primavera europeia de 1968.
Tal constatação ganha contornos sombrios quando se compara
os atores em cena.
A França tinha De Gaulle na presidência e George Pompidou na
chefia de um governo que incluía homens como Malraux.
O Brasil tem no Palácio da Alvorada uma inquilina sem juízo
e sem rumo.
E o Planalto continua assombrado por um Lincoln de
galinheiro que vive de bravatas e morre de medo na hora do perigo.
Nesta terça-feira, Lula e Dilma se encontraram secretamente
em Brasília “para trocar ideias”. Como se tivessem alguma para trocar.
Ele tem soluções para tudo, menos para problemas que o
afetam.
Ela não consegue formular sequer uma frase com começo, meio
e fim.
Também parecem ter sumido da paisagem a tribo dos políticos
que, armados apenas de sensatez, ajudaram a debelar tantos incêndios
semelhantes.
Em contrapartida, nunca se viu tamanho ajuntamento de
ineptos, vigaristas e farsantes fantasiados de conselheiros do reino.
Sozinha, Dilma já admitiu que é capaz de fazer o diabo.
Com Lula soprando ordens e mercadantes sussurrando palpites,
tem provado que é uma incapaz capaz de tudo, menos de fazer o precisa ser
feito.
Multidões exigem em coro, por exemplo, o fim das
bandalheiras.
Dilma oferece uma Constituinte natimorta e um plebiscito de
múltipla escolha, com questões aparentemente extraídas de uma assembleia no
hospício.
A redescoberta da rua avisa que milhões de brasileiros enfim
passaram a enxergar as coisas como as coisas são.
O palavrório triunfalista virou coisa de senador do Império.
A Praça dos Três Poderes ficou mais antiga que as pirâmides
do Egito.
O monarca e a rainha estão nus no trono em ruínas.
A farsa acabou, mas os canastrões seguem recitando o script
que pareceu funcionar direito até maio.
Aliviados com a pausa enganosa, a turma acampada no coração
do poder está cochilando.
Como nenhum dos motivos da revolta foi removido, pode ter o
sono interrompido pelo primeiro estrondo de agosto.
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