Alguns historiadores associam o surgimento da brincadeira do
Bumba-meu-boi à expansão, no Nordeste, do chamado “Ciclo do Gado” – quando, a
partir do século 17, o animal ganhou grande importância nas fazendas da região.
Apesar de o Bumba-meu-boi ser uma manifestação típica do folclore brasileiro,
ele lembra um pouco os autos medievais – encenações simples, com linguagem
popular e, em geral, falando da luta do bem contra o mal.
“O boi é um dos folguedos mais representativos da cultura
brasileira, pois reúne traços de três grandes ramos da formação do nosso povo:
europeu, indígena e afro-negro”, afirma Américo Pellegrini Filho, folclorista
da Universidade de São Paulo (USP). A apresentação, que ocorre principalmente
em festas juninas, mostra as relações desiguais entre senhores de engenho,
escravos e indígenas, numa sutil crítica social.
Contado e recontado através dos tempos, na tradição oral
nordestina, e depois espalhada pelo Brasil, a lenda adquire contornos de
sátira, comédia, tragédia e drama, conforme o lugar em que se inscreve, mas
sempre levando em consideração a estória de um homem e um boi, ou seja, o
contraste entre, por um lado, a fragilidade do homem e a força bruta do boi e,
por outro lado, a inteligência do homem e a estupidez do animal.
Do ponto de vista teatral, o folguedo deriva da tradição
espanhola e da portuguesa, tanto no que diz respeito ao desfile como à
representação propriamente dita, tradição de se encenarem peças religiosas de
inspiração erudita, mas destinadas ao povo para comemorar festas católicas nascidas
na luta da Igreja contra o paganismo. Esse costume foi retomado no Brasil pelos
jesuítas em sua obra de evangelização dos indígenas, negros e dos próprios
portugueses aventureiros e conquistadores, por meio da encenação de pequenas
peças.
No seu livro “Folclore do Brasil”, Luís da Câmara Cascudo
joga um pouco mais de luz sobre o surgimento da brincadeira:
“Bumba-meu-boi,
Boi Kalemba, Boi de Reis, Folguedo do Boi, Boi-Bumbá no Maranhão, Pará,
Amazonas, Três Pedaços em Alagoas (Porto da Rua, Porto de Pedras), Boi de Mamão
em Santa Catarina e Paraná, é um dos mais tradicionais autos, conservados pelo
povo do norte e nordeste do Brasil. Está decadente, mas continua ambientado
pela assistência mais humilde, competente nos aplausos, seguindo o grupo para
contemplar o espetáculo secular. Irradiou-se das zonas açucareiras e pastoris
para o extremo norte, onde a pastorícia ausente pareceria incompreendê-lo na
primária e sugestiva movimentação temática.
Em 1859 Avé-Lallemant encontrava-o
em Manaus, “enorme e leve arcabouço de um boi, com chifres verdadeiros”. Baila,
seguido de fantasias indígenas, guiado por um pajé. Morre ao estrondar do
batuque e vão enterrá-lo para que volte a viver e repetir a farsa noutra parte,
“morrendo cinco ou seis vezes na mesma noite”, anota o alemão.
Aparece num
breve, leve, singelo e grotesco bailado, como começou o boi guaque ou boi
huaco, em Nicarágua.
A mais
antiga menção encontro num mal-humorado registro do padre Miguel do Sacramento
Lopes Gama, no Carapuceiro, janeiro de 1840, no Recife:
“De quantos recreios,
folganças e desenfados populares há neste nosso Pernambuco, eu não conheço um
tão tolo, tão estúpido e destituído de graça, como o aliás bem conhecido
bumba-meu-boi. Em tal brinco não se encontra um enredo, nem verossimilhança,
nem ligação: é um agregado de disparates. Um negro metido debaixo de uma baeta
é o Boi; um capadócio, enfiado pelo fundo dum panacu velho, chama-se o
Cavalo-Marinho; outro, alapardado, sob lençóis, denomina-se Burrinha; um menino
com duas saias, uma da cintura para baixo, e outra da cintura para cima,
terminando para a cabeça com uma urupema, é o que se chama a Caipora; há além
disto um outro capadócio que se chama Pai Mateus. O sujeito do Cavalo-Marinho é
o senhor do Boi, da Burrinha, da Caipora e do Mateus.
Todo o
divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer dançar, ao som das
violas, pandeiros e de uma infernal berraria, o tal bêbado Mateus, a Burrinha,
a Caipora e o Boi, que com efeito é o animal muito ligeirinho, trêfego e
bailarino. Além disso o Boi morre sempre, sem quê nem para quê, e ressuscita
por virtude de um clister, que o pespega Mateus, coisa muito agradável e
divertida para os iudiciosos espectadores.
Até
aqui não passa o tal divertimento de um brinco popular e grandemente
desengraçado, mas de certos anos para cá não há bumba-meu-boi, que preste, se
nele não aparece um sujeito vestido de clérigo, e algumas vezes de roquete e
estola, para servir de bobo da função. Quem faz ordinariamente o papel de
sacerdote bufo é um brejeirote despejado e escolhido para desempenhar a tarefa
até o mais nojento ridículo; e para complemento do escárnio, esse padre ouve de
confissão ao Mateus, o qual negro cativo faz cair de pernas ao ar o seu
confessor, e acaba, como é natural, dando muita chicotada no sacerdote!”
Começaria
nos engenhos, entre negros, mamelucos, mestiços, na forma inicial boi canastra,
armação de vime, coberta de pano pintado, cabeçorra bovina, ampla cornadura,
unicamente destinado a dispersar e afugentar os curiosos atrapalhantes de uma
função representada ao ar livre. Era assim na Espanha e Portugal, o falso boi
chifrando diante dos cortejos mascarados e mesmo fazendo rir ao monarca. Havia
touradas cômicas com esses touros de junco, as tourinhas.
É o que se observa
nos velhos autos que Sílvio Romero coligiu, como o Reisado da Borboleta, do
Maracujá e do Pica-Pau. É o boi que Max Schmidt vê em Rosário, Mato Grosso, no
derradeiro ano do século XVIII. Que Alceu Maynard Araújo encontra em 1951
afastando os foliões de São Luís de Paraitinga, São Paulo, resguardando a
gravidade hirta da gigantesca Miota. Foi a forma primária que tivemos da
Península Ibérica, o boi amedrontador dos meninos inquietos. É uma tradição
também sertaneja e viva no vocabulário dos cantadores de desafio: “Esse véio
Serradô / De apelido João Festino / Quando se vê agastado / E fica no seu
destino / Faz mais medo a cantado / Do que boi faz a menino”
Mesmo
na segunda metade do século XIX muitos outros autos concorriam na popularidade
da assistência. O Cavalo-Marinho, que vemos na informação de Lopes Gama, sendo
o dono do folguedo, denominava a função, e Sílvio Romero ainda diz o mais
apreciado de Pernambuco. Ora, o bumba-meu-boi, já em janeiro de 1840, aliás bem
conhecido, na catilinária d’O Carapuceiro recifense, dominava o Maranhão, como
registou Celso de Magalhães. Derrotara o Cavalo-Marinho. Fora aglutinando as
personagens mais favoritas dos autos vulgares, criando assunto, determinando episódios.
Como o "rancho" da burrinha era o predileto na Bahia. Em janeiro de
1840 estava autônomo e o Cavalo-Marinho, embora dono, não batizava o auto que
era o bumba-meu-boi. Seguiu atraindo outros elementos, ampliando a área de
função, seduzindo as atenções populares, alistando-se como uma homenagem à
festa da Natividade, habeas corpus do pagode verbal.
No
Dicionário do Folclore Brasileiro, verbete bumba-meu-boi, está uma exposição
que julgo suficiente de como o auto se formou e veio vivendo, pela assimilação
incessante de temas vitais de outros autos mais permeáveis, incorporando damas
e galantes que bailavam nas procissões do Corpo de Deus em Portugal, fazendo
surgir os vaqueiros negros, Birico ou Fidélis, e Mateus, centros de comicidade
plebéia, ficando horas em cena, improvisando diálogos calorosos, monologando,
dizendo disparates, sacudindo o riso do auditório, inesgotáveis da verve que o
povo ama e festeja. Depois, à volta de 1910, apareceu a negra Catirina,
faladeira, destabocada, respondona.
As
figuras do bumba-meu-boi variam de província para província e, nas próprias
regiões da exibição, sofrem modificações, desaparecimentos, substituições,
acréscimos, novidades, experiências que duram ou não resistem ao desgaste do
contato popular, eliminando-se por insuficientes. Damas e galantes dizem loas,
versos sérios, declamados monótona e dignamente, sempre na intenção religiosa,
indo e vindo numa marcha mecânica e superior aos companheiros burlões. Mateus e
Birico são sempre funcionalmente divertidos, arremedadores, caricaturando a
solenidade das damas e galantes, espavorindo os monstros que aparecem,
enfrentando a longa série humana e zoológica realizadora do programa do
bumba-meu-boi. Nos velhos alagoanos havia Rei e Rainha.
Auto
do Natal (exceto no Pará onde o boi-bumbá é pelo São João) preenche para o povo
as horas longas de espera da Missa do Galo, à meia-noite. Dispunha do tempo,
não apreciável para o povo. Os papéis eram estudados, ouvidos ou explicados,
mas a dupla negra, ou pintada de negro, era surpreendente de vivacidade,
prontidão nas respostas à participação anônima do auditório, na graça picante e
clara da vulgaridade legítima. Todos ou quase todos os acontecimentos
reapareciam nos diálogos dos dois vaqueiros, Pasquino e Marfório, nos limites
da tolerância policial, fazendo rir sem rancor e mágoa.
Há
bois dançantes por todas as regiões pastoris do mundo, África, Ásia, América
Austral, Central e do Norte, pela Europa inteira. O bumba-meu-boi, na espécie,
auto-formação, intenção, força defensiva e valorizadora popular,
anti-demagógica pela ausência do plano político imediato e útil a uma facção,
existe sozinho; lirismo, sinceridade, arrojo, no mais pobre, simples e natural
dos autos brasileiros. No Maranhão o folguedo tem uma indumentária de alto gosto.
É o único made in Brazil em quase todas as suas peças e no próprio dinamismo
lúdico.
Só a figura do boi é que viajou de Portugal, mas no Brasil pastoril
desdobrou-se, infinitamente longe da limitada habilidade de espalhar os
curiosos às cornadas, como começara sua existência no folclore nacional, meados
do século XVIII, segundo deduzo. Inútil, para mim, expor o boi como expressão
religiosa, mítica, cultos da força fecundadora, acordando os colegas egípcios,
o Boef Gras francês, o boi processional dos vanianecas do sul de Angola, o boi
bento de São Marcos, o boi estudado por Gubernatis. Outros desígnios e destinos
diversos na intenção popular, modeladora de suas preferências no plano da
função divertida.
Quando
reaparece o Cavalo-Marinho, espécie de centauro, cavalo da cintura para baixo,
tratado por Capitão! e dando ordens, já se sabe que é o velho auto pernambucano
ainda autônomo mas agregado ao bumba-meu-boi.
Ao
lado das figuras permanentes passam as novas e morrem as velhas, Capitão de
Campo, o Padre-Vigário, a Caipora, o Arlequim, o Bate-Queixo, o Corpo-Morto, Zé
do Abismo, o Cobrador de Imposto, o Doutor-Médico, antigos ajustes de contas,
anônimos e ferozes. Até certo ponto o bumba-meu-boi, boi kalemba, funciona como
as antigas revistas de costumes, sacudindo o teatro nas gargalhadas
comunicantes. Ninguém se revia na exposição maliciosa. Nenhum outro auto
popular possui essa vocação satirizante, incontida, lógica, realizada no meio
da mais pobre das assistências compreensivas. Até há poucos anos, Birico e
Mateus eram profissionalmente analfabetos. Daí a originalidade das imagens,
conclusões psicológicas, o inesperado depoimento coletivo nas vozes autênticas
dos dois vaqueiros, engraçados e rústicos.
Curioso é que o boi kalemba tratado,
vestido e limpo, organizado, com um conjunto musical audível, ensaiado,
recomendado, é de uma banalidade automática e roncante. E quando arrastam o
elenco aos microfones, todo o humor esfuziante daqueles atores que representam
descalços e pisando na areia, ao ar livre, pintados, rasgados e sujos,
desaparece, e se tornam gagos e tristes, como malandros iniciantes depondo na
polícia.
De um desses bumba-meu-boi, maravilhoso e legítimo, fazendo as
alegrias do auditório de todas as categorias, por mim levado a uma estação
emissora, para programa anunciado com ampla "cobertura" entusiástica
e ansiosa, assisti o mais completo desmoronamento das memórias, vivacidade e
graça feiticeira nos remoques e perguntas. O estúdio retirou-lhes a faculdade
de respirar normalmente. Prometi jamais reincidir.
O
enredo desse legitimíssimo auto popular gira em torno de um boi, guardado pelos
vaqueiros e por eles sacrificado, por variadas razões. Morto o animal, tendo
antes dançado e espalhado a gente, aplicam remédios e fazem promessas e
oferecimentos para restituir-lhe a vida. Algumas vezes ocorre esse episódio,
voltando o boi a viver e bailar. Noutras regiões, fazem a partilha, original e
cômica, das vísceras, peça por peça, em versos, destinando-as aos figurantes do
auto ou pessoas estranhas mas conhecidas pelo auditório.
Esse pormenor existe
em autos e festas populares pela Europa e América Latina, sem nenhuma relação
com o enredo do nosso folguedo. São, lá fora, cenas hilariantes, independentes
de sequência temática, partilhas de asnos, galos, pássaros insignificantes,
convergindo no Brasil para o boi kalemba, mas tendo vivido anteriormente em
situação autônoma, como vemos no Reisado de Antônio Geraldo, que Sílvio Romero
registou em Sergipe (Cantos populares do Brasil, I, 347, Rio de Janeiro, 1954).
Naturalmente articulam a partilha do bumba-meu-boi com um repasto totêmico,
divagação erudita dispensável para quem recorda o tantas vezes milenar costume
da divisão convencional da peça de caça aos caçadores, conforme a maior ou
menor intervenção no êxito cinegético. Creio, anotando o citado Reisado, ter
exposto suficientemente o assunto. O mito etólio de Meleagro responde, numa
antecipação milenar, a W. Robertson Smith.
Durante
o decorrer do auto os compères, variando topograficamente, dialogam e recepcionam
os incontáveis participantes que vão aparecendo, todos cantando e dançando. Vez
por outra, comedidos e graves, vêm as damas e os galantes, entoando loas a lo
divino, imperturbáveis às facécias, vestidos de branco. Birico e Mateus são os
"permanentes". Mateus é mais nacional; do Pará a Santa Catarina e
pelo interior de Pernambuco e Alagoas ambos os vaqueiros são Mateus. Catirina
era velha figura na Bahia e recente no Nordeste. Em Alagoas denominava uma
réstia de cebolas com que Mateus se armava.
O auto
finda, como no século XVI, por uma dança geral, em que todos os personagens
voltam ao público para a farândola terminal. Noutras paragens, acabam todos
bailando em forma de carrossel, tear, moenda ou cantando desafios.”
Pelo texto do folclorista Luís Câmara Cascudo, chegamos à
conclusão de que o Bumba-meu-boi, tal como o conhecemos hoje, era apenas uma
parte menor do auto do Cavalo Marinho, mas que acabou evoluindo por conta
própria e se transformou em uma brincadeira autônoma.
O certo é que, ao espalhar-se pelo país, o Bumba-meu-boi
adquiriu nomes, ritmos, formas de apresentação, indumentárias, personagens,
instrumentos, adereços e temas diferentes. Dessa forma enquanto no Maranhão,
Rio Grande do Norte e Alagoas é chamado Bumba-meu-boi, no Pará e Amazonas é Boi-Bumbá
ou Pavulagem, em Pernambuco é Boi Calemba ou Bumbá, no Ceará é Boi-de-Reis, Boi
Surubim e Boi Zumbi, na Bahia é Boi Janeiro, Boi-Estrela-do-Mar, Dromedário e
Mulinha-de-Ouro, no Paraná e em Santa Catarina é Boi-de-Mourão ou Boi-de-Mamão,
em Minas Gerais e Rio de Janeiro é Bumba ou Folguedo do Boi, no Espírito Santo
é Boi-de-Reis, no Rio Grande do Sul é Bumba, Boizinho, ou Boi-de-Mamão, e em
São Paulo é Boi-de-Jacá ou Dança do Boi.
Figura mitológica nas mais diversas culturas, o boi era
visto por escravos negros e indígenas como companheiro de trabalho, símbolo de
força e resistência. É por isso que toda a encenação gira em torno dele. A
pessoa que veste a fantasia do animal é chamada de “miolo” ou “tripa”.
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