Trata-se de uma manifestação popular típica do universo
amazônico e que têm origem indígena, segundo Luís da Câmara Cascudo. Ela se
inicia com um cortejo que acompanha uma ave ornamental com cânticos e
coreografias, tendo como pano de fundo a morte do pássaro por um caçador e sua
posterior ressurreição por um pajé ou doutor. Por se apresentarem sempre no mês
de junho, são também conhecidos como “Pássaros Juninos”.
Um dos primeiros registros sobre Cordões de Bichos
amazônicos foi feito por Henry Walter Bates, naturalista inglês que chegou a
Belém em 1848 e permaneceu na Amazônia por onze anos, realizando pesquisas
sobre a fauna e a flora para o Museu de Londres.
Bates relata um Cordão de Bicho que se apresentou em 1850
durante os festejos de São João, na cidade de Ega (atual Tefé): “A maioria dos
mascarados se fantasiam em animais, touros, veados, magoaris, onças, etc., com
auxílio de leves armações, cobertos de velhos panos (...)”
A história básica dos Cordões de Pássaros está centrada em
torno de um pássaro de estimação que é ferido ou morto por um caçador ou
passarinheiro. O infrator é perseguido e preso pelos índios que o entregam ao
responsável pela guarda do pássaro (capataz, guarda-bosque), que o leva à
presença do dono. Esse, ao ver o pássaro sem vida, aplica uma punição severa ao
caçador.
O caçador então implora pelo perdão para seu ato insano e
recebe uma chance de redenção de seu crime, caso consiga curar ou ressuscitar o
pássaro. O caçador parte à procura de um médico ou pajé para ter sucesso em sua
missão.
No final do espetáculo, o médico ou o pajé consegue salvar o
pássaro, que ressurge dando vida nova e esperança a todo o cordão. Em linhas
gerais, os personagens, em ordem de importância no auto, são o pássaro, o
jardineiro, o caçador, o delegado, o pajé, a cigana, o soldado, o filho do
caçador, a fada, a florista, a pastora e o coro.
O pássaro é o patrono do grupo. Ele é representado pela
escultura do pássaro homenageado (tucano, corrupião, japiim, uirapuru, etc). O
pássaro sempre fica numa posição de destaque durante toda a brincadeira e as
cenas se desenvolvem à sua volta.
O jardineiro é o brincante responsável pela movimentação do
pássaro e do arvoredo – armação com flores e vegetação, que tanto pode
simbolizar um jardim, um bosque ou uma floresta. Além de ser construído com
muito capricho, há que haver muito cuidado no seu transporte e no seu
posicionamento durante a brincadeira.
O caçador tem o papel principal no auto, visto que tem a
função de matar o pássaro para alimentar sua família. Requer que o brincante,
para um bom desempenho, tenha boa voz e seja engraçado.
O delegado é a autoridade maior no auto, na medida em que é
ele que determina a prisão e a soltura do caçador. Curiosamente, esse papel é
quase sempre desempenhado pelo “dono” do Cordão de Pássaro, o equivalente ao
Amo do boi-bumbá.
O pajé é o responsável pela cura do passarinho. Para
desempenhar esse papel, quase sempre é escolhido um brincante que tenha
facilidade em fazer gracejos e provocar muitos risos na audiência. Nos grotões
do interior, o pajé, xamã ou curandeiro é o individuo que tem poder de realizar
curas físicas e espirituais, o que lhe garante respeito e temor dentro da
comunidade.
A cigana é chamada para curar o passarinho, mas como não
consegue realizar a façanha, indica os serviços do pajé. Em tempos passados,
ela era uma personagem bastante disputada pelas brincantes, porque durante as
apresentações recolhia o dinheiro do público e ficava com a metade do
arrecadado.
Segundo o dono do Pássaro Corrupião, Benedito Brito Costa, o
“Dedeca”, “a cigana não tem função na brincadeira, porque a função da cigana é
pedir dinheiro. A primeira que entra na encenação é a cigana. Ela entra cantando
e os músicos acompanham a cigana. Ela usa uma fita para laçar alguém da plateia
e tem um verso pronto para cada pessoa que laça. Ela laça o cara com a fita e
pede dinheiro, sempre cantando, e depois vai laçar outro. Quando a cigana entra
no cordão é que começa o auto dos pássaros. Os músicos cantam outra música para
conferição do dinheiro da cigana. Uma parte é da cigana e a outra do arvoredo.
Só depois é que entra a jardineira.”
O soldado é o responsável pela prisão do caçador. Suas
músicas e falas são sempre muito engraçadas. O filho do caçador é outro
personagem de destaque. Ao lado do pai, ele sai pela floresta com uma baladeira
para caçar o passarinho, mas como não consegue, pede ajuda ao pai. É ele também
que vai buscar ajuda para curar o pássaro e se torna o responsável pela
libertação do pai.
A fada é uma personagem saída dos contos de fada europeu.
Suas vestes são Imaculadamente brancas e ela traz como adereço a varinha de
condão das fadas madrinhas. Geralmente é uma das personagens encarregadas de
ressuscitar o pássaro.
A florista é a dona do passarinho e, no último ato da
brincadeira, leva uma cesta de flores de papel com as quais presenteia todos os
presentes. A pastora cuida do jardim onde se encontra o pássaro. Ela não
permite que ninguém cace no local e tem o figurino na cor verde, representando
a floresta. Sua canção relata a consternação pela morte do pássaro.
O coro também pode ser considerado um personagem da
brincadeira, na medida em que dialoga com o caçador, o pajé e muitos outros. Esse
fato remete ao coro do teatro grego, que tinha a função de questionar os
personagens agindo como se fosse sua consciência, sempre a favor das boas
ações.
O coro é formado por todos os brincantes e se manifesta
sempre através do canto. Exemplificando: “Olha lá caçador/ não faça isso não/
Não mate meu passarinho / que é prenda do meu cordão”. Os brincantes que apenas
dançam são chamados de bailantes, malhantes ou dançarinos.
Tal como ocorre no boi-bumbá, o enredo do Cordão dos
Pássaros vai se modificando ao sabor das circunstâncias, de pássaro para
pássaro, mas sempre mantendo alguns pontos em comum com a história original.
Isso pode ser percebido na encenação do Pássaro Japiim, que
surgiu em Manaus, em 1930, pelas mãos da senhora Inês Ayres da Silva, moradora
do bairro da Aparecida, que comandou a brincadeira por 38 anos seguidos.
Segundo ela, a brincadeira teria tido origem em Belém do Pará, por meio de um
ex-escravo africano chamado Elias.
No livro “Alguns aspectos da antropologia cultural do
Amazonas” (Casa Editora Madrugada, 1978), o artista plástico, folclorista e
escritor Moacir Andrade descreve o enredo da brincadeira, tal como lhe contou a
dona do Pássaro Japiim:
A estória começa em um antigo castelo onde vivia uma família
real constituída de um príncipe, uma princesa, um vassalo, um casal de
camponeses e um amo. Num belo dia, houve um baile real, ocasião em que a
princesa ganhou como presente um belo pássaro a quem deu o nome de japiim. O
presente foi acompanhado de apresentações de exímios bailarinos. Passaram-se,
assim, muitos meses e cada vez mais a princesa criava amizade pelo pássaro.
Entretanto, certo dia o pássaro desapareceu. O príncipe, muito preocupado,
mandou o camponês ir procura-lo, que logo o achou.
A princesa, vendo o pássaro em perigo, encontrou-se com o
caçador que há muito queria namora-la e pediu-lhe que não matasse a ave. Todas
as manhãs o japiim real dava o seu passeio pelo bosque do palácio. O caçador,
então, penetrou no bosque à caça do belo passarinho. No caminho encontrou-se com
a fada. Esta lhe perguntou o que fazia por aquelas paragens e o caçador
contou-lhe a sua história. A fada, que tudo adivinhava, vendo o perigo para o
caçador pediu ao mesmo que não matasse o pobre passarinho, porém, o caçador não
atendeu ao pedido da fada, que por isso deu-lhe um castigo.
O caçador seguiu seu caminho e, andando de um lado para
outro à procura do japiim, é surpreendido pelo guarda do bosque que lhe dá voz
de prisão. O caçado resiste e ameaça matar o guarda que, com medo, se torna seu
amigo. Desejoso de saber onde encontrar o japiim, pergunta ao guarda, que não
lhe responde. Deixando-o para trás, o caçador segue caminho até encontrar as
borboletas encantadas, as quais engana dizendo que não quer matar o japiim.
Numa tarde de verão, passa pelo castelo uma cigana. Chamada
pelo vassalo para ler a mão da princesa, diz-lhe que brevemente ela terá uma
grande tristeza, pois seu japiim morrerá. A princesa aflita pergunta-lhe quem
será o traidor que vai matar o japiim. Mas a cigana nada revela e apenas diz
que será uma pessoa que mora no castelo. A princesa manda chamar a camponesa,
que finge nada saber. O caçador, que ainda não encontrara o passarinho, vai à
casa da feiticeira para pedir sua ajuda. A bruxa entrega-lhe uma bala
enfeitiçada. Saindo dali, num bosque, o perverso caçador vê o passarinho e,
atirando, mata o pobre japiim.
A fada, ao ouvir o tiro, manda as borboletas encantadas
avisarem à princesa da morte do pássaro. A princesa ficou muito triste. O
vassalo pede ajuda ao amo, que comunica ao guarda, que vai correndo à maloca dos
índios que moram no bosque e estes prendem o caçador. Mas a feiticeira aparece
e oferece uma bebida encantada aos índios que logo adormecem e assim salva o
caçador. Porém, o efeito da bebida passa logo e os índios, furiosos, prendem a
feiticeira e levam-na à presença da princesa. Lá chegando, a feiticeira diz que
o pássaro não está morto, mas apenas adormecido. A princesa manda chamar o
doutor, que apesar dos esforços nada consegue descobrir sobre a morte do
pássaro. Então, é chamado o pajé, que com uma mágica faz o pássaro acordar.
O Pássaro Japiim, como todas as manifestações folclóricas,
tem suas danças os seus cânticos para momentos apropriados. Quando o grupo
desfila pelas ruas da cidade ou quando está chegando a uma residência onde vai
realizar uma exibição, canta a marcha de chegada: “Aqui vem chegando o japiim /
vem espalhando alegria no jardim / neste dia festivo e primoroso / estamos
festejando nosso belo japiim / a mocidade nesta vida de primores / assim
brincamos todos os louvores / outra alegria de qualquer um passarinho / não
vale tanto como nosso japiim / brincamos neste dia primoroso / é de alegria só
pode ser mesmo assim / neste dia festivo e primoroso / estamos festejando o
nosso belo japiim”.
Na sequência, vem a marcha de apresentação (“Apresentamos a
todos com prazer / o passarinho que é o rei da simpatia / o nosso querido
pássaro japiim / apresentamos com muita alegria / apresentamos todos com prazer
/ e alegria a nossa saudação / pedimos à plateia a gentileza / que nos aceite
com muita atenção / senhores, boa noite, nós chegamos agora / pois já está na
hora de nos apresentar / o grupo que já está no coração do povo / a nossa fama
nunca cairá”.
De acordo com o desenvolvimento do texto, novas marchas vão
sendo cantadas pelos brincantes, como a marcha de chamada (“Toda a cidade
amanheceu risonha / toda a floresta amanheceu em flor / as passaradas vão
cantando / o japiim é um grande rei cantor / assim também, ó minhas
companheiras, / entoaremos belas canções / fazendo roda na fogueira / em louvor
a São João”) e a marcha de louvor ao passarinho (“O japiim não é daqui / o
japiim é do Pará / A, B ou C, o japiim também sabe ler / meu formoso japiim /
sai na roda pra dançar / o japiim é passarinho galante / campeão deste lugar /
quem te ensinou a dançar? / o glorioso São João, São Pedro ou São Marçal”).
No
encerramento do espetáculo, os brincantes cantam a marcha da despedida: “Adeus,
está na hora da partida / o japiim já se despede / com a dor no coração /
levando a alma amargurada / de saudade trespassada / devido à separação /
adeus, adeus, adeus, / quem fica com saudade / com certeza vai chorar / o
japiim já vai embora / prometendo a esta plateia / para o ano ele voltar”.
Em artigo publicado no jornal “A Gazeta”, de São Paulo, em
1º de junho de 1957, intitulado “Cordões de Bichos e Pássaros”, o jornalista
Rossini Tavares de Lima nos forneceu novas pistas sobre essa importante
manifestação cultural:
Ultimamente,
quem melhor tratou dos folguedos populares da Amazônia, os cordões de bichos e
os pássaros, foi o folclorista e etnólogo Edison Carneiro. Em seu último
trabalho, “A conquista da Amazônia” (Coleção Mauá, Ministério da Viação e Obras
Públicas, Serviço de Documentação, 1956), assim ele comenta os primeiros: “Os
cordões de bichos são uma alegoria popular, que resulta numa defesa da flora, e
da fauna da região norte. Constituem, em palco armado nas cidades do interior,
a representação dramática-burlesca que gira em torno de um caçador, que ora por
inadvertência, ora por maldade, alveja, mortalmente, um pássaro encantado. Da
trama fazem parte pajés e fadas, matutos e índios, estes como perseguidores do
caçador e sentinelas da floresta”. Para encerrar, entretanto, o pássaro
ressuscita e o caçador “ganha o perdão da tribo ou se vê exposto à execração pública”.
Os
pássaros, segundo ainda o mesmo autor, são o prolongamento em roupagem urbana
dos cordões de bichos. Folguedos do ciclo joanino como estes, se apresentam às
vésperas de São João, em cinemas, circos e palcos populares de Belém, no estado
do Pará. Seu argumento é “uma estranha mistura de novela de rádio, burleta e
teatro de revista, a que não falta certa cor local”. E aí aparecem fidalgos à
moda do século XVI e XVII, cenas jocosas de matutos, danças de belas jovens
seminuas, etc.
Em
1954, o grupo do Passáro Tentém, que conquistou, em Belém, o primeiro lugar, no
concurso patrocinado pela prefeitura, apresentou o entrecho dramático, assim
resumido por Edison Carneiro: “O senhor duque opõe-se terminantemente ao
casamento da filha com um plebeu. Este recorre à feiticeira, que faz pajelança
contra o fidalgo. Ao surpreender a filha em colóquio com o namorado, o senhor
duque bate-se com ele a espada. Durante o duelo, o caçador desarma o duque,
mas, num gesto cavalheiresco, entrega-lhe novamente a espada. Num golpe
infeliz, o duque atinge e mata a filha. Há um coro de lamentações. A boa fada,
a pedido da selvagem branca, liberta o namorado das suas angústias e dos
índios, que o deixam moído de pancada, ao encontrá-lo desorientado na floresta.
A desgraça cai sobre a família fidalga. O duque enlouquece, a duquesa
transforma-se em mendiga. Novamente, intervém a fada – e o duque e a duquesa se
reconciliam e o nobre dá à selvagem branca, que reconhece como a filha que
perdera anos antes, em casamento ao caçador”.
Também
conta Edison Carneiro, que “infinitamente mais apreciadas do que o drama são as
cenas de matutos, que servem de entreato no desenrolar do enredo dos pássaros,
com que guardam certa relação remota”. Delas participam artistas profissionais,
muito conhecidos do público e suas apresentações terminam com a interpretação
de “cançonetas típicas de teatro de revista – maliciosas, apimentadas, com
gestos bem eloquentes para os mais tardos de compreensão – em que todos os
figurantes cantam e dançam”.
Outro
entreato dos pássaros é o bailado, chamado mesmo “ballet”, no qual Edison
Carneiro viu qualquer coisa de cabaré da Lapa, de teatro de revista da praça
Tiradentes e das Folies Bergére de Paris, nas meias de malha preta, nos chapéus
de abas largas, nos biquínis e nas luvas de canhão alto, com que as bonitas
jovens chegam ao palco e, ao som de música excitante, requebram o corpo, de
frente e de costas para a plateia. Mas, acrescenta o folclorista, estas moças
do ballet não têm mais do que a malícia própria da sua adolescência em flor – e
muitas vezes são parentas bem próximas dos “donos” da representação.
A
parte essencial dos pássaros, como no cordão dos bichos do interior, é sempre a
história do caçador, que chega a matar o pássaro e mesmo o bicho de estimação da
sua prometida, e às vezes, até um príncipe encantado, que a boa fada finalmente
ressuscita. O pássaro ou bicho é representado por uma criança, que o traz,
quando ave, numa gaiola, presa à cabeça, quando bicho, colocado ao peito.
Os
pássaros, em geral, não apresentam cenários decorativos. As diferentes cenas
decorrem ao ar livre e, frequentemente, com um pano de fundo a imitar uma
floresta povoada de índios. Estes são mocinhas, que usam imensos cocares e
saltitam sem descansar, colocando a todo momento o ouvido em terra. Também
cantam e, às vezes, falam com os brancos, chamando-os de “cariua”.
Cada
ano, os pássaros ensaiam uma peça nova, escrita de encomenda e paga ao autor na
média de mil cruzeiros; outra pessoa, também profissional, escreve a música ou
adapta uma outra à peça. Em 1954, a organização custava aos “donos”, como se
diz em Belém, 30 a 40 mil cruzeiros, e durante o período de apresentação havia
uma despesa fixa de 2 mil cruzeiros por dia. Por isso, para saldar os
compromissos, os “donos” cobravam entradas para os espetáculos, cujo preço
variava de 8 a 12 cruzeiros.
Entre
os mais famosos pássaros de Belém, os quais, com mais propriedade, deveriam se
chamar, como no interior do Pará, cordões de bichos, destacam-se na crônica
daquela cidade o Galo, Gato, Uirapuru, Xincuã, Japim, Pirarucu, Encantado,
Caitetu, Guariba, Rouxinol, Periquito, Quati e o já mencionado Tentém.
Em Manaus, nos anos 60 e 70, havia dezenas de cordões de
pássaros – Japiim, Papagaio, Bem-te-vi (da mãe-de-santo Joana Galante, de São Jorge), Uirapuru, Rouxinol, Garça, Jacu, Tucano, Gavião
Real (do Velho Raimundo, de Petrópolis, que exibia um gavião real de verdade!), Periquito Roxo, Guará, etc – mas aparentemente
a brincadeira foi deixando de ser interessante para as novas gerações e hoje
praticamente só existem três grupos na cidade: Bem-te-vi, Curió e Beija-flor. Desculpem o trocadilho infame, mas é uma pena!..
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